ESTÚDIO CONJUR

A democracia e a Ordem dos Advogados do Brasil

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1 de dezembro de 2020, 11h05

Em 1919, Max Weber escreveu: advocacia e democracia são realidades históricas inseparáveis. Em 2020, essa afirmação ainda vale?

Spacca
A advocacia foi uma das principais articuladoras da nossa redemocratização. Basta lembrar o papel da OAB na campanha pelas eleições diretas na década de 1980, presidindo o histórico comitê suprapartidário de membros da sociedade civil, entidades de classe, parlamentares e governadores.

A OAB é entidade única no desenho institucional brasileiro. Situa-se entre as esferas pública e privada, tem função corporativa — na garantia dos direitos e prerrogativas da profissão — e política — na defesa da Constituição e do Estado democrático de Direito.

Quanto à segunda função, a sociedade contemporânea assiste a uma crise de representatividade. Análises preveem o desparecimento da democracia representativa tal como conhecemos e falam em recessão ou fadiga democrática.

Considerando as eleições como expressão mais viva da democracia, vejamos o que processo eleitoral revela sobre as afinidades atuais entre essa e a OAB.

O voto é obrigatório. O voto no presidente da seccional (OAB estadual) elege também todos os conselheiros estaduais e federais. Num voto, o eleitor "escolhe" centenas de representantes. Em geral, sem saber quem são.

Em São Paulo, há cerca de 322 mil advogados habilitados a votar. Na última eleição (2018), 178.805 advogados votaram, abstenção próxima a 45%. Foi possível eleger-se presidente com cerca de 15% de apoio do eleitorado. Além da indiferença da advocacia em relação à sua instituição, essa abstenção é sintoma de um processo arcaico, fechado ao debate e imune à renovação e transparência.

Advogados são obrigados a viajar de uma cidade a outra para votar. No Ceará, os colegas de Salitre percorrem a distância de 288 quilômetros para cumprir sua obrigação eleitoral. No Pará, à cidade Capanema precisam se deslocar eleitores de 12 cidades. Em São Paulo, eleitores de Paranapanema viajam 160 quilômetros para votar em Avaré etc. Nas capitais há outros obstáculos: longas filas e dificuldades de mobilidade urbana tornam penoso o acesso aos poucos locais de votação, que ocorre em dia útil.

O voto pela internet resolveria esses problemas. Outras entidades já o praticam: conselhos de contabilidade, administração, odontologia, nutricionistas, arquitetura e urbanismo, de corretores de imóveis. Na OAB, o tema encontra forte resistência. Por quê? Na contramão da legislação eleitoral, a boca de urna não só é permitida, é agressiva e constrangedora. Envolve gastos elevados e favorece quem tem mais dinheiro ou usa a máquina e não quem tem as melhores ideias.

O debate é quase proibido: candidatos só podem se manifestar como tal 45 dias antes do pleito. Mas em São Paulo, por exemplo, o atual presidente já está em campanha para reeleição, em 2021; num momento em que a advocacia enfrenta dificuldades inéditas, seja para ser valorizada como atividade essencial de acesso à Justiça, seja para realizar tarefas cotidianas, como falar com um juiz, a pauta é reeleição.

Nas casas dos advogados, sedes regionais, é proibido que candidatos falem sobre a eleição durante o período eleitoral! Regra que não atinge os candidatos a reeleição, pois esses estão na gestão das casas. O impulsionamento pela internet, permitido pela Justiça Eleitoral, é vedado, limitando a divulgação de ideias daqueles que não têm acesso aos meios oficiais de comunicação.

Ao final desse processo eleitoral obsoleto, conselheiros federais eleitos nos Estados escolhem o presidente nacional em eleição indireta. Na entidade que presidiu o comitê pelas eleições diretas em 1984, a eleição nacional permanece indireta em 2020. Por isso, no mês passado, milhares de advogados e advogadas lançaram campanha pelas diretas na OAB. Sintomaticamente, a diretoria da OAB-SP silenciou. Não apoiou a campanha, embora siga empenhada na sua própria reeleição.

A crise de representação que assusta governos e instituições mundo afora repercute com mais força na OAB, talvez pelo seu lugar privilegiado na democracia brasileira.

Para além da conjuntura, a ausência de renovação afasta a OAB de seu papel político fundamental e enfraquece o livre exercício da profissão, que é fundamental para a pacificação social e para a continuidade democrática.

Para que a OAB reassuma seu papel histórico, precisa ampliar a participação de advogadas e advogados na vida institucional e construir uma agenda coletiva que sirva como referência para uma sociedade carente de justiça. A expansão do campo jurídico e o crescimento demográfico da advocacia trazem necessidades emergentes: mais transparência, mais participação, pluralismo.

É fundamental que a OAB renove práticas e não se esconda atrás de processos ultrapassados e antidemocráticos. Também, para afastar as crescentes suspeitas de uso da entidade para benefício pessoal, autopromoção e improbidade.

As velhas práticas políticas não têm mais lugar na sociedade contemporânea e a advocacia precisa sintonizar-se com esse processo de mudança para reassumir o protagonismo no debate público e recuperar o lugar que a Constituição Federal atribui à profissão: participante ativa da administração da Justiça e defensora da democracia.

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