Entrevista

"O Direito piora pois cada vez mais o Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é"

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1 de dezembro de 2020, 12h12

Lenio Streck contempla com atenção o cenário do Direito no Brasil em 2020 e, sinceramente, não gosta daquilo que vê. O nível do que é ensinado nas faculdades pelo país afora não lhe agrada, mas não é só isso. Segundo ele, um excessivo empoderamento do Poder Judiciário e do Ministério Público, em detrimento do Legislativo, tem ajudado a tornar mais pobre o Direito brasileiro. 

Spacca
Na análise do jurista gaúcho, uma das consequências danosas da "lava jato" para o país foi o enfraquecimento do Estado democrático de Direito, uma vez que o devido processo legal foi mal tratado pelos condutores da dita operação. "É preciso levar o Direito a sério, doa a quem doer, e que não se faça essa, digamos, ode ao consequencialismo. Ou se substitua que os fins justificam os meios. Isso não pode acontecer na democracia, porque o custo é muito grande", argumentou ele.

Em entrevista à ConJur, Streck falou sobre esses e vários outros assuntos. Ele comentou os ataques sofridos recentemente pelo Supremo Tribunal Federal e afirmou que a voz das ruas não pode ser ouvida por quem julga, pois "a Constituição é um remédio contra a maioria. A Constituição é exatamente invocada contra a voz das ruas".

Leia a seguir os principais trechos da conversa:

ConJur — O senhor escreveu recentemente uma coluna chamada 'do coronajúris'. Aproveito para lhe perguntar: como vai a saúde do Direito brasileiro?
Lenio Streck — "Coronajúris" é o vírus que assola e que gera pandemia no Direito. A questão toda é buscar uma espécie de CoronaVac-Júris, uma vacina contra isso. O que se apresenta num horizonte muito distante, muito difícil. Cada dia a coisa fica mais complexa. Nós acabamos criando essa ilusão tecnológica, o Direito 4.0. A "lava jato" praticou muito isso: Direito 4.0, com a velocidade maior do que as provas e do que o devido processo legal. Soma-se tudo isso à contingência, que é a própria pandemia, agora do coronavírus, que fez com que tivéssemos de fazer audiências por webinar. E se criou esse problema, para mim muito sério, de o Direito ficar ficcionalizado. Portanto, temos um longo trabalho pela frente para buscar uma vacina nesse "coronajúris" e a tarefa dos juristas, dos professores, aumenta a cada dia. A carga é a cada dia maior.

ConJur — O Direito brasileiro hoje está melhor do que há cinco anos, do que há dez anos, do que 20 anos atrás? Ou piorou?
Lenio Streck — O Direito piorou, por várias razões. Primeiro, a tecnologia não encurta a orelha de ninguém. O ensino jurídico tem caído. A faculdade de Direito é o paciente zero dessa pandemia. E nós estamos piorando o ensino. Como ninguém é filho de chocadeira, todos estudaram em uma faculdade. E aí o problema do ensino jurídico ruim… Concursos públicos com estilo "quiz show", de perguntas que fazem com que os cursinhos treinem os candidatos e que passe mais quem responde melhor ao treinamento. Isso tudo faz com que se enfraqueça o próprio papel da doutrina.

E, cada vez mais, isso é um problema sério no Brasil. Eu diria que o Direito está pior hoje porque cada vez mais o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é. Ou: se aceita que o Direito seja aquilo que os tribunais dizem que é. Isso faz com que isso empodere sobremodo o Poder Judiciário e o próprio Ministério Público.

Então, veja-se que quando o Parlamento faz leis, principalmente leis garantidoras, há uma enorme dificuldade para que o Judiciário aceite isso. Veja recentemente o problema das leis sobre a prisão preventiva. Houve uma reação enorme do Judiciário e do próprio Supremo Tribunal Federal, que acabou dizendo que essa questão dos 90 dias não era bem assim, quando o Parlamento, inclusive nas discussões de feitura da lei, deixou isso muito claro.

Mas o Judiciário acaba, no Brasil, redefinindo e reescrevendo aquilo que interessa, aquilo que o Parlamento acaba de aprovar. É muito difícil lidar com isso, principalmente quando são leis que trazem garantias, e aí se invoca a voz das ruas — isso é um problema. A Constituição é um remédio contra a maioria. A Constituição é exatamente invocada contra a voz das ruas. E no Brasil se invoca a voz das ruas como se fosse possível, como se a gente tivesse um aparelho para ouvir o que elas têm a dizer.

Esse é um argumento retórico que acaba enfraquecendo o papel do próprio Poder Legislativo. Nunca esqueçamos que na própria Constituição consta assim: "São poderes da República o Legislativo, Executivo e Judiciário". Mas, na prática, se tem que os poderes são Judiciário, Executivo e Legislativo. O Legislativo fica por último. Claro que o Legislativo também não se ajuda muito. Mas temos que manter aquilo que é o Estado democrático de Direito, que é a Constituição, que é o fator fundamental.

ConJur — Do acervo nacional de processos, apenas de 10% a 14% se referem a matéria criminal. Esses casos que apaixonam tanto a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, os crimes, vamos dizer, do bloco da corrupção, que são lavagem de dinheiro, malversação e tudo o mais, não chegam a 0,5%. Essa sua análise sobre o Estado, a saúde do Direito brasileiro, está falando de 99,9% dos processos ou dessa porcentagem mínima que se relaciona a essa matéria que encanta muito o MPF?
Lenio Streck —
Bom, esses 0,5% — o número é seu, não tenho bem esse número — dos casos que geram mídia e apaixonam, eles têm uma dimensão simbólica muito grande. O problema da crise do Direito é global. Mas aparece, claro, evidentemente, numa ponta mais sensível no Brasil.

Se nós fossemos fazer uma análise macro, de pronto teríamos de ver, por exemplo, porque só tem 33 ministros no STJ. Eu não gosto de comparar ovos com caixa de ovos. A frase é do Norberto Bobbio. Mas veja que lá a Corte de Cassação da Itália tem 350 ministros. É muito ou é pouco? Mas a Itália tem 70 milhões de habitantes. Nós temos 210 milhões de habitantes, com 33 ministros.

Então parece-me, de pronto, que essa é uma questão estrutural. É como o trânsito. O trânsito precisa de mais ruas, mas precisa sinalizar bem, que é a funcionalidade, e também precisa ter bons motoristas. Porque não adianta ter bom trânsito, boa estrutura, boa funcionalidade e péssimos motoristas.

Então, evidentemente que há um problema estrutural, há um problema maior, mas a questão principal aparece nisso que você disse, que é o problema da queixa que a mídia grande faz com relação à impunidade, como se houvesse uma impunidade no Brasil com relação aos grandes crimes, como se advogados mesmo ou a OAB, que sempre acaba também pagando o pato por isso… Há setores da própria advocacia que são contra a OAB, dizem que a OAB é de esquerda. Enfim, misturam-se problemas ideológicos na apreciação.

A sua pergunta é genial nesse sentido, porque ela faz com que a gente insira nessa pequena discussão a questão dos ataques que o Supremo vem sofrendo. Esse contempt of court, há pouco tempo, que o Supremo sofreu, atirando foguetes, gente fazendo passeatas na rua pelo fechamento, você lembra disso. Nós acompanhamos tudo isso fortemente. Fizemos inclusive um movimento de defesa do Supremo Tribunal. Eu fui às cerimônias de dois grandes encontros desse tipo.

O engraçado é que quanto mais o Supremo cumpre a Constituição, por exemplo, nesta área do 0,5%, enfim, que é a questão das garantias que mais aparecem para a grande mídia, mais ele sofre. A Rosane, minha mulher, no dia em que apareceu na televisão aquele ataque ao Supremo, com relação àqueles foguetes todos, ela olhou aquilo e disse: "Quantas decisões o Supremo acertou essa semana para ser tão atacado?". Acho que é uma boa frase para mostrar um pouco isso. Quanto mais acerta, mais é criticado.

ConJur — Esse cenário que o senhor acaba de relatar, ele mostra a intensa polarização do país. Quer dizer, aos olhos da multidão existe um lado que combate um crime, a polícia, os setores da polícia, do Ministério Público Federal, e os advogados criminais que se opõem. O senhor defende a corrupção, professor?
Lenio Streck — É uma ótima provocação. Eu respondo para você com o filme "A ponte dos espiões". Eu criei um "fator stoic mujic", que é a história que está dentro do filme. O advogado Sandoval é contratado. Ele é advogado de seguros, não sabe nada de Direito Penal. Mas ele é indicado para defender aquele espião russo que é preso em flagrante, praticamente indefensável. Aí o Sandoval acredita na coisa e começa a invocar prova ilícita, ele quer mandados. O juiz o xinga, esculhamba com ele. Ele vai para frente. O filho de 12 anos, oito ou nove anos, ou 12, chega e diz assim: "Papai, o senhor é comunista?". "Mas por que, meu filho?". "O senhor está defendendo um comunista". "Mas eu sou advogado, meu filho!".

Mas a parte mais incrível disso é quando ele vai à prisão visitar o espião e o espião pergunta para ele: "Doutor, o senhor nunca me perguntou se de fato eu era espião, se eu era culpado ou inocente". Ele responde: "Não importa. Eu sou seu advogado".

Então, criou-se no Brasil, insidiosamente, um discurso ambíguo. Ele não é claro e diz: advogado que defende corrupto defende a corrupção. Mas eles deixam insidiosamente. Alguns movimentos que vêm de dentro do Ministério Público, alguns mais radicais, falam em bandidolatria. Esses são radicais. Mas o mais insidioso, que parte de alguns setores da mídia e outros, faz com que as pessoas acabem confundindo o advogado com o seu cliente, o que obviamente é uma questão absurda.

Qualquer sujeito numa sociedade complexa como a nossa só sabe o valor da garantia constitucional quando é para ele. Veja o próprio Deltan Dallagnol, é um bom exemplo para isso. Deltan Dallagnol fazia tweets e escrevia: "A doença, o câncer da sociedade é a prescrição. A prescrição gera impunidade". Inclusive, eles capitanearam projetos para terminar com isso, queriam enfraquecer o Habeas Corpus. Eis que no meio do caminho tem uma pedra, e Deltan Dallagnol precisa da prescrição. A prescrição é uma garantia até para Deltan Dallagnol. Isso quer dizer o quê? Simbolicamente, e também num plano real, as pessoas só sabem que a Constituição e as garantias são indispensáveis para se viver em democracia quando bate na sua porta.

Por isso que eu tenho dito que cumprir a Constituição hoje, no Brasil, é um ato revolucionário. A Constituição é uma carta de direitos. No mundo todo, desde o século XIII. Por isso que não deve existir essa tese que inventaram de que in dubio pro societate. Os gregos já nos ensinaram isso desde a peça das Eumênides.

E, só para concluir essa parte do "fator stoic mujic", porque no final eu quero homenagear aqui os advogados, já que você perguntou como é que os advogados são confundidos com aquilo que fazem, com os seus clientes. Você brincou com a questão: "Você é a favor da corrupção?". No final, o espião diz para o Sandoval: "Doutor, o senhor me lembra um amigo do meu pai que era sindicalista, e vinha a polícia do czar e batia nele, batia fortemente. Ele caía praticamente desmaiado e, de repente, ele levantava. Eles batiam nele de novo, ele levantava. Eles batiam, ele levantava. Sabe por que que ele sobreviveu? Porque ele levantava. Porque se estivesse caído, eles matavam ele a pau. Como ele levantava, eles batiam mas não matavam. Ele resistia". 

ConJur — Nós vivemos no Brasil depois de o lavajatismo ter praticamente ser tornado um governo paralelo no país. Ele parece que está vivendo seu ocaso, ou pelo menos o seu desmascaramento. Não é motivo de preocupação que, ao se desmoralizar os falsos combatentes da corrupção, se desmoralize também o combate à corrupção e a gente viva um Estado em que o crime passa a ocupar um protagonismo que não tinha antes?
Lenio Streck — A raposa vai ao moinho e perde o focinho. E aí é um problema. Nós, exatamente, não podemos atirar a água suja com a criança dentro. É momento de se fazer efetivamente uma transição, colocando o Estado democrático de Direito, aquilo que é o devido processo legal, na sua essência, no sentido de levar o Direito a sério, doa a quem doer, e que não se faça essa, digamos, ode ao consequencialismo. Ou se substitua que os fins justificam os meios. Isso não pode acontecer na democracia, porque o custo é muito grande.

Eu tenho confiança que se possa tirar muitas lições dos erros que foram cometidos. A Justiça fica, o sistema fica, e as pessoas passam. Veja que o juiz protagonista de tudo isso agora é advogado e, que bom, bem-sucedido. E já mudou. Era juiz, passou a ser político, ajudou a eleger esse sistema e esse presidente, agora já é advogado, e assim vai indo. Logo, logo, provavelmente Deltan Dallagnol estará advogando, fazendo outras coisas. Então as pessoas passam. Eles passam, farão outas coisas. Mas o sistema fica. Nós não podemos fazer análises ad hoc, simplesmente. Nós temos uma responsabilidade. E aí vem a responsabilidade da comunidade jurídica, da universidade, dos advogados, dos grandes doutrinadores, de trazerem e fazerem uma reflexão sem que se atire fora a criança com a água suja junto. O rei está nu, mas temos de ter cuidado com isso, né? Aumenta a responsabilidade do mundo jurídico.

ConJur — Ainda se pratica com naturalidade o mau hábito de esconder do advogado e do acusado a acusação. O Supremo está analisando uma reclamação do ex-presidente Michel Temer contra o juiz Bretas e o Ministério Público por sonegarem as acusações. Ele tem de responder uma acusação que ele não sabe qual é. Nós temos aí um projeto no Congresso que, aliás, foi apelidado com o seu nome: o projeto Streck-Anastasia, que trata exatamente da não ocultação de provas ou de acusação contra os acusados. É esse mesmo o objetivo do projeto?
Lenio Streck — Exatamente. O projeto não é invenção minha. Nós estamos literalmente copiando várias coisas, juntando. Por exemplo, Alemanha. Artigo 160 do Código de Processo alemão. O Estatuto de Roma. Veja, o Brasil é signatário do Estatuto de Roma. As pessoas não leem o Estatuto de Roma. Alias, na "lava jato", várias vezes eu vi o Sergio Moro e outros citando o Estatuto de Roma. Só que se fosse mesmo citar o Estatuto de Roma, o Ministério Público, o artigo 54 do Estatuto de Roma diz: "O acusador tem a obrigação de investigar e buscar a verdade para ambos os lados, inclusive para a defesa". O que nada mais é do que está no 160 do Código de Processo Penal da Alemanha, do artigo 3 do Código da Áustria, que está na jurisprudência italiana, e está no famoso caso Brady versus Maryland, dos Estados Unidos, desde 1963.

O projeto Streck-Anastasia vem obrigar o Ministério Público do Brasil a se comportar como uma espécie de magistratura. As pessoas esquecem que juiz e promotor têm as mesmas garantias. E por que um tem garantias e tem de agir imparcialmente, que é o juiz, e o outro pode ser não isento, ou pode ser parcial, simplesmente? Poderia ele investigar, descobrir coisas a favor da defesa, e não as apresentar? Eis a questão do caso Brady versus Maryland, do Código de Processo Penal alemão, do Estatuto de Roma. É isso que nós estamos tentando.

ConJur — É inegável que o debate de Direito e Justiça no Brasil está permeado de emoções. Se isso for verdade, é preciso fazer um esforço em direção à racionalidade. Eu anoto aqui que, nos últimos meses, ou talvez até nos últimos anos, o maior tempo dedicado ao debate sobre a funcionalidade da Justiça está em torno da prisão preventiva, que submente hoje 40%, pelos números disponíveis, da população penitenciária. A outra questão bastante debatida é a da ficha limpa. E, por fim, a questão da prisão logo depois da segunda instância.

Pouco se tem discutido sobre o objetivo de abreviar o processo judicial. Se nós tivéssemos julgamentos abreviados como os que a gente tem conhecimento nos Estados Unidos, perderia totalmente o sentido da discussão das preventivas, da questão da ficha limpa, e se se deve prender ou não logo depois da segunda instância. Qual é a sua sugestão, professor, para que o processo judiciário seja mais expedito, seja mais curto?
Lenio Streck — Primeiro, de novo, não dá para comparar ovos com caixa de ovos. O sistema judiciário norte-americano é quase todo júri, mas também 90%, 95% de todos os feitos criminais redundam em acordos. Eles terminam por acordos. Plea bargain. Ora, essa é uma questão que é questionada hoje no próprio Estados Unidos, porque se forçam muitos acordos, se exagera na denúncia por uma negociação. Então isto é um problema sério que, no Brasil, nós teríamos uma grande dificuldade.

Veja as delações premiadas, do modo como isto foi tocado. Por exemplo, a maioria dos processos da "lava jato", 90%, até pouco tempo atrás, as delações não tinham nada documentado. Alguns caras como o Youssef mudaram sete vezes a sua delação. Eles foram adaptando. Porque não tinha sequer registros disso. Agora se exige registro. Então tudo é uma questão de não atropelar, de certo modo.

Essa busca, a ideia da prisão preventiva como um modo, um medo que o Judiciário, juízes e promotores têm, de que lá na frente isso acabe em impunidade ou algo assim, eu teria de… Nos teríamos de fazer um programa, uma entrevista só para isso. Porque isso demanda uma discussão que é sempre perigosa fazer em drops.

Eu fui promotor e procurador durante 28 anos, e eu quero dizer que entre 75%, 80%, 85% de todos os processos que vinham do primeiro grau — eu era procurador criminal — vinham com vícios, defeitos, e acabavam sendo modificados no segundo grau. É muito alto o percentual. Agora, se uma pessoa presa não tem a chance de buscar imunidades etc. no STJ, no STF, você de fato cria um modus operandi em que o Direito acaba fragilizado. É muito complexa essa questão.

Quando estava por ser julgado o caso da presunção da inocência, a Globo News, principalmente ela, mas também o Estadão e outros lugares, disseram que se soltaria no dia seguinte. Uns falavam em 160 mil, outros em 190 mil. Estupradores, corruptos. Quando terminou e nós ganhamos por seis a cinco, eu mostrei as estatísticas. Em 30 dias tinham soltado três no Rio Grande do Sul, oito na "lava jato", 23 pessoas no Rio de Janeiro. Eu estou procurando até hoje os 160 mil.

Eu estou dizendo isso porque a percepção que se tem sobre garantias, são percepções equivocadas. Não se pode, ao tratar da liberdade, lidar com pressa. Sim, tem de ser mais rápido. Eu também acho. Mas temos de ver os mecanismos. Por exemplo, por que uma ação gera embargos declaratórios? Porque é mal fundamentada. E aí tem que ser dita alguma coisa. Isso é duro de dizer. O Brasil admite, pelo Código de Processo Penal e pelo Código de Processo Civil, que uma sentença pode ser obscura, omissa ou contraditória. Porque os embargos de declaração são para suprir, logo, se autoriza. Bom, aí você multiplica o número de embargos. E aí temos um problema sério para resolver. Eu não tenho a saída. Mas eu tenho condições de demonstrar. Eu não sei qual é o caminho, mas eu sei por onde a gente não deve ir. 

ConJur — Ainda dentro da caixa de ovos, o que o senhor acha da adoção de júri para matéria civil?
Lenio Streck —
Bom, eu acho que o júri no Brasil tem de ser urgentemente alterado. Aliás, eu estou fazendo um estudo, o conselho da Comissão de Estudos Constitucionais, sobre isso. No Brasil, não se pode decidir a vida de alguém com um "não" dado por íntima convicção. A Constituição exige que você fundamente todas as decisões. O júri não fundamenta. Isso tem de mudar. É possível mudar isso sem mudar a Constituição. É o que eu estou pretendendo no projeto. E, obviamente, não creio que o júri seja uma solução para um país como o Brasil.

ConJur — Segundo o levantamento Justiça em Números, do CNJ, o maior problema levado ao Judiciário pelos brasileiros está nas relações de consumo. Eu costumo perguntar: quantos casos de pessoas perderam o seu emprego, que o senhor conhece, por corrupção? E quantos por incapacidade, incompetência, ineficiência? Então, se o meu raciocínio estiver muito errado, era o caso de se colocar um pouco de racionalidade nessas discussões, não? Agora, professor, a doutrina. O Brasil precisa de doutrinadores?
Lenio Streck — A primeira questão tem tudo a ver. O direito de consumidor virou uma grande ficção no sentido da resposta que ele acaba não tendo. As pessoas têm de entrar nos Juizados Especiais, que é um capítulo à parte do problema judiciário, porque também os juizados acabam sendo plenipotenciários, você não consegue recorrer das decisões das turmas recursais. Eu acho que o Direito do Consumidor, nesse sentido, precisaria ter punições mais exemplares e não transformar, por exemplo, aquilo que são visíveis danos, que é dano moral, e o Judiciário acaba dizendo que é um mero aborrecimento. Quantas pessoas sofrem e o Judiciário não dá resposta, por exemplo, no plano do mais simples direito consumidor, por exemplo, planos de saúde etc.?

Aí vem a pergunta que encaixa nisso. A minha resposta: a doutrina também tem de ter esse papel fortemente. Eu sou otimista porque acabo acreditando que é possível fazer mudanças. Porque a linguagem, como diz um jurista alemão, que é o Michael Stolleis, depende da realidade, mas muda a realidade quando a gente nomeia essa realidade. Então, nós temos bons exemplos do poder da doutrina. A doutrina tem de constranger. Esse é um bom caminho para o próprio direito consumidor: constranger.

A doutrina é um substantivo que tem de ter um verbo. Igual, doutrina doutrina. O substantivo com o verbo. A doutrina doutrina. Essa é o que me move. É o meu leit motif cotidiano para escrever.

ConJur — É evidente que existe um movimento pendular da polarização. Do século XVIII para trás, nós tínhamos uma valorização excessiva da acusação. Do século XIX, entrando pelo século XX, veio a valorização do direito de defesa. Até que, nos anos recentes, digamos, de 15 anos para trás, inverteu-se aquela ideia. Como o senhor acha que vai ser o encontro e o ponto ideal desse encontro entre o direito de acusação e o direito de defesa?
Lenio Streck — Na verdade, há um direito de defesa em face do poder do Estado de perseguir aqueles que transgridem a lei. O Direito é AM, a antes do mensalão, e DM, depois do mensalão. Antes da "lava jato" e depois da "lava jato". Então, quando se começou a fragilizar provas e colocar em prática a ideia do in dubio pro societate, se criou uma moralização do Direito. O primeiro passo do enfraquecimento de um Estado democrático é você substituir o direito por juízos morais. Se você substitui as garantias processuais por aquilo que é uma espécie de behaviorismo ou comportamentalismo dos operadores, juízes e promotores, você acaba tendo não mais o Direito, mas, sim, aquilo que se diz sobre o que as pessoas querem que o Direito seja.

Eu tenho lutado para que não se substitua o Direito por juízos morais, o que não quer dizer ser positivista, e as pessoas que me leem sabem disso. No fundo, a moralização do Direito é uma espécie de estupidez. O discurso da estupidez. Estupidez não simplesmente como ignorância, mas naquilo que o Mauro Mendes Dias fala sobre o discurso da estupidez. E a estupidez precisa de aliados para se manter, e há muitos. Por isso que a gente tem de ficar atentos.

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