Contas à vista

Como será 2021? Meta (in)flexível, 2ª onda (im)previsível, sob qual teto?

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1 de dezembro de 2020, 8h02

O que será o amanhã?
Como vai ser o meu destino?
Já desfolhei o mal-me-quer
Primeiro amor de um menino

E vai chegando o amanhecer
Leio a mensagem zodiacal
E o realejo diz
Que eu serei feliz, sempre feliz

Como será amanhã?
Responda quem puder
O que irá me acontecer?
O meu destino será
Como Deus quiser
Como será?

(Composição: Didi /João Sérgio)

Spacca
Dezembro de 2020 chega embalado, na minha memória musical, pelo samba-enredo da União da Ilha de 1978 (disponível aqui). Há dias me pego a cantarolar: "O que será o amanhã?" ou ainda "como será amanhã? Responda quem puder".

Ninguém sabe o que será o amanhã do nosso orçamento para 2021… Os incautos acreditam em mensagem zodiacal ou entregam a solução do problema para seja lá o que Deus quiser. Por outro lado, os mal-intencionados querem estrangular a impessoalidade das regras que regem o devido processo legislativo para pautar suas prioridades patrimonialistas, com vistas ao horizonte eleitoral de 2022.

O último mês deste ano se inicia sem que o devido processo legislativo orçamentário para o próximo esteja minimamente em curso. Vivemos sob uma deliberada cegueira orçamentária para o exercício financeiro de 2021, como esta articulista, Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel e Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata escrevemos aqui.

A despeito de terem sido cumpridos os prazos de envio dos projetos de lei de diretrizes orçamentárias (15 de abril) e de orçamento anual (31 de agosto) no nível da União, as deliberações no Congresso (em diálogo com o Executivo e com a sociedade) sobre como se dará nosso ciclo orçamentário para 2021 simplesmente se encontram interditadas.

Meses de inércia, imperícia e imprudência escoam por entre os dedos em meio aos efeitos sanitários, sociais e econômicos da pandemia da Covid-19. Perdemos mais de 173 mil vidas humanas até agora, sem garantia de que esse trágico saldo de mortes, de fato, vá se estabilizar em breve.

O desenrolar dos fatos clama reflexão, no mínimo, sobre as hipóteses de dano ao erário e responsabilidade objetiva do Estado por dano patrimonial e moral diante do risco de perda de quase sete milhões de testes do tipo RT-PCR, bem como diante do descumprimento da meta de distribuição de 46 milhões de testes. Como bem pontuado pela Folha, houve uma deliberada e frágil escolha por diminuir o ritmo de testagem no âmbito do SUS, descumprindo meta do próprio Ministério da Saúde e mesmo sabendo que tal iniciativa é a mais recomendada atual e internacionalmente para o controle da pandemia:

"Sete meses após anunciar a distribuição de 46 milhões de testes para diagnosticar o novo coronavírus, o Ministério da Saúde só entregou até agora 38% dos kits para exames a estados e municípios. São 17,6 milhões do total prometido.
O montante vai na contramão de cronogramas anunciados pela pasta no programa Diagnosticar para Cuidar. Era prevista a entrega e o uso de quase a totalidade dos testes até outubro, com volume menor até o fim de dezembro.
O objetivo era aumentar o rastreamento de possíveis casos da Covid-19. Desse modo, o poder público obteria maior controle da epidemia.
(…) Em junho, o Ministério da Saúde pediu à Fiocruz que suspendesse temporariamente a produção de 7,6 milhões de testes. A previsão era de entrega ainda neste ano.
O pedido ocorreu por causa do alto número de testes que a pasta já mantinha em estoque, segundo o próprio ministério, que pouco avançou na distribuição nos meses seguintes.
Para especialistas, a situação revela falta de planejamento e organização da pasta para o controle da doença.
'O Brasil tinha condições de fazer enfrentamento adequado da epidemia, mas não tem um plano completo para isso', diz o epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). 'É um problema logístico.'
(…) Até agora, o Brasil aplicou 5,7 milhões de testes do tipo RT-PCR na rede pública. O número representa só 23,6% do previsto para este ano nas metas do governo lançadas em maio. Era prevista, nesse modelo, a realização de 24 milhões de exames.
Também estava no plano a distribuição de 22 milhões de testes rápidos, considerados menos precisos. A pasta não informou quantos desses exames já foram feitos no SUS.
(…) Erno Harzheim, ex-secretário na gestão Luiz Henrique Mandetta, contesta a fala sobre herança.
'
A melhor forma de controle é testar-rastrear, e o gestor federal 'reclama' que tem muitos testes? Isso não é racional, é teatro do absurdo', diz.
Em nota, o Ministério da Saúde diz que os kits que deixaram de ser produzidos pela Fiocruz são planejados para 2021, quando também deve haver demanda.
ainda 7,1 milhões de testes estocados em Guarulhos (SP) —6,8 milhões com validade até janeiro. A pasta afirma ter recebido parecer que permite estender o uso por mais quatro meses"
 (grifos da autora).

Realmente é um "teatro do absurdo" chegarmos a dezembro expostos ao considerável risco de uma nova aceleração de contaminações (segunda onda?), enquanto sequer há clareza sobre os dados divulgados pelo Executivo federal, tampouco há um plano nacional de imunização a ser executado tão logo haja vacinas para a Covid-19 aprovadas pelas instituições regulatórias competentes.

Nesse contexto literalmente doentio, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a resolver ambos os impasses:

1) Ampla e impessoal transparência na divulgação dos dados, haja vista a cautelar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes foi referendada pelo Plenário nas ADPF’s 690, 691 e 692 (conforme noticiado aqui); bem como

2) Dever de formular e implementar impessoalmente planejamento da oferta estatal obrigatória de cobertura vacinal, uma vez que, nas ADPFs 754 e 756, a cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski deu prazo de 30 dias para apresentação do correspondente plano (cautelar disponível aqui).

Em todas essas ADPFs, o STF mandou cumprir o óbvio, cuja execução em nosso país infelizmente não é fácil. Perder tempo, desperdiçar recursos públicos, fomentar divergências federativas, tensionar aberta e recorrentemente a relação com os demais poderes e negar voz à ciência são posturas de quem se recusa aos deveres ordinários de planejar, executar conforme o planejado e prestar contas dos resultados alcançados.

Só estamos a nos perguntar tão angustiadamente sobre "o que será o amanhã?", porque o improviso tomou o lugar das políticas públicas e, com isso, abriu brechas profundas para a infestação do patrimonialismo.

Faltam praticamente 30 dias para o Réveillon e ainda nos ressentimos da carência de uma pauta ou plano estrutural qualquer que nos oriente o percurso e nos guie a ação daqui a poucas semanas.

A desculpa até o último domingo era a necessidade de aguardar o calendário das eleições municipais. É deveras sintomático e revelador acerca do nosso caos político-operacional, aliás, que tenham sido interditados todo o planejamento e o debate democrático do que nos espera no próximo ano para satisfazer apenas ao curtíssimo prazo eleitoral de alguns em detrimento de toda a coletividade.

Chegamos em pleno dezembro com uma série de omissões/ faltas/ lacunas no âmbito federal que, dada a dimensão da crise em que vivemos, ganha a alçada nacional:

— Ainda não foi instalada a Comissão Mista de Orçamento a que se referem os §§1º e 2º do artigo 166 da Constituição;

— Não foi implementado o devido processo de apresentação e deliberação sobre a inclusão (ou não) das emendas parlamentares nos projetos de lei de diretrizes orçamentárias e de orçamento anual;

— Não tem sido resguardada a transparência por meio de audiências públicas nos processos de elaboração e discussão dos PLDO e PLOA, como determina o artigo 48, §1º, inciso I da Lei de Responsabilidade Fiscal;

— Pende de aprovação e promulgação a Lei de Diretrizes Orçamentárias, sem a qual a máquina simplesmente restará totalmente paralisada em 1º de janeiro de 2021, mesmo em relação ao pagamento de duodécimos que compreendem despesas obrigatórias e serviços públicos essenciais;

— Falta acordo sobre a prorrogação da vigência do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e, por conseguinte, falta clareza sobre a continuidade da vigência da Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, bem como do orçamento de guerra a que se refere a Emenda 106, de 7 de maio de 2020;

— Donde, por arrastamento, resta interditado o debate do projeto de lei de orçamento anual para o próximo ano.

Não sabemos como será o nosso amanhã fiscal, porque as balizas em que ele se assenta são tão frágeis quanto previsões de cigana, bola de cristal, jogo de búzios, cartomante, zodíaco ou o que Deus quiser… Ora, qual é a diferença entre prever uma meta flexível de resultado primário (como feito pelo Executivo federal no PLDO/2021) e desfolhar uma flor de "bem me quer" (ou "mal me quer", como mencionado no samba-enredo que nos serve de epígrafe)? A rigor, ambas as atividades são exercícios de abstração dos limites da realidade, sendo certo que a meta flexível é punível por afronta à LRF, conforme recentemente alertado pelo Tribunal de Contas da União (conforme noticiado aqui)

Igualmente frágil é a quimera acerca do uso de créditos extraordinários em 2021, como subterfúgio para ultrapassagem do teto, dado pela Emenda 95/2016, na realização de despesas supostamente imprevisíveis[1]. O problema é que, agora em 2020, já sabemos que, no próximo ano, será necessário resguardar, por exemplo, a continuidade da renda básica emergencial, assim como a sustentação do custeio do SUS, que corre o risco de perder cerca de R$35 bilhões em 2021, caso haja a iminente retomada do teto como âncora fiscal (como alertado pelo Conselho Nacional de Saúde aqui).

Querer que a pandemia acabe com os fogos de artifício do Réveillon na virada de 31 de dezembro de 2020 para 1º de janeiro de 2021 é mais um artifício voluntarioso de fé propagado por quem defende a tese de extinção peremptória da calamidade no final deste ano e de retomada da plena vigência do novo regime fiscal no próximo.

Não é sem razão que soa a crendice apelar para o manejo de créditos extraordinários avulsos em 2021 para manter um teto em ruínas, enquanto se faz de conta que a pandemia passou e que o orçamento do próximo ano pode retirar estímulos bilionários da economia sem lançá-la em uma depressão profunda.

Quem generosa e pacientemente me acompanha nesta coluna "Contas à Vista" há de se lembrar que tenho defendido, desde o envio do PLDO-2021 (como se pode ler aqui), que precisamos de um plano bienal de enfrentamento da pandemia, com definição impessoal e federativa das responsabilidades intergovernamentais. Essa é uma tese que voltei a reforçar por ocasião do envio do PLOA-2021, como se pode ler aqui.

No apagar das luzes dos últimos dias deste ano, não é demasiado insistir que, se em 2020 tivemos um orçamento de guerra, precisamos adotar a cautela típica de um orçamento do pós-guerra para 2021, como suscitei aqui.

Até este 1º de dezembro vivemos ainda sob uma espécie de interdição do debate fiscal para 2021, remetendo a pergunta sobre "o que será o amanhã?" para o campo do puro e simples improviso. Até aqui temos sido empurrados para crendices como metas flexíveis e imprevisibilidade de despesas para cujo enfrentamento, desde já, deveríamos nos programar. Querem nos interditar o debate estrangulando nosso tempo de reflexão madura e republicana.

É precisamente por isso que temos de nos ocupar do questionamento sobre o que é preferível em 2021? Crendices, improviso e risco de patrimonialismo na gestão de créditos extraordinários que tendem a operar como cheques em branco, de um lado, ou planejamento impessoal e republicano com vistas ao fortalecimento federativo dos serviços públicos essenciais, de outro?

Desde abril tenho defendido um plano bienal de enfrentamento da pandemia com sustentação da renda básica emergencial e custeio adequado para os serviços públicos essenciais, notadamente para o SUS. É preferível um debate sistemático e íntegro das nossas regras fiscais a acatar a abertura de créditos extraordinários que tendem a fraudar os limites do artigo 167, §3º, da Constituição e do próprio teto dado pela Emenda 95/2016.

Nossos agentes políticos precisam ser obrigados a cumprir o basilar e óbvio mister que lhes foi incumbido constitucionalmente: que planejem, executem conforme o planejado e prestem contas dos resultados das suas ações e omissões, sem que eles possam clamar por mensagens zodiacais ou esperar pelo destino que Deus quiser.

O que será o amanhã? Se ainda formos um país minimamente civilizado e democrático, temos de nos comprometer com o exercício racional-legal do poder para planejar o futuro e construir soluções socialmente legítimas, conforme a integridade do nosso ordenamento constitucional.

Somente obrigando nossos agentes políticos ao planejamento é que seremos capazes de conter o destacado risco de soluções patrimonialistas, marcadas por seu curtíssimo prazo eleitoral. Quem espremeu o debate orçamentário brasileiro de 2021 para os últimos trinta dias de 2020 o fez por priorizar suas pretensões político-partidárias em relação às eleições municipais, para na sequência passar a cuidar das eleições diretivas das mesas do Senado e da Câmara e, em última instância, mirar-se para o processo eleitoral de 2022.

Assim será o nosso amanhã? Esse amanhã capturado custa quantas mortes evitáveis? O nosso destino será "como Deus quiser"? Ou nosso amanhã fiscal será como nós quisermos e soubermos democraticamente construir?

 


[1] À luz do artigo 167, §3º da Constituição de 1988, créditos extraordinários somente são admissíveis para socorrer despesas urgentes e que, concomitantemente, não sejam passíveis de antevisão durante a elaboração do orçamento anual.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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