Opinião

Análise econômica do Direito: um anel para todos e a tudo governar?

Autores

  • Vinicius Figueiredo Chaves

    é professor adjunto de Direito Comercial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)-(FND) e da Universidade Federal Fluminense (UFF-VR) doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pós-doutor em Direito pela USP.

  • Carolina Miranda Cavalcante

    é professora adjunta de Economia Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)-(FND) e doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense.

1 de dezembro de 2020, 19h16

Inicialmente restritas a círculos acadêmicos específicos, as abordagens a respeito das relações entre Direito e Economia galgaram maior espaço e reconhecimento no Brasil. Expandiram-se nos últimos anos além do ambiente acadêmico e a ponto de sua veiculação em plataformas de compartilhamento de vídeos, redes sociais, podcasts e, ultimamente, até mesmo em jornais de notícias de grande circulação.

Em recente e interessante coluna, intitulada "Fux consequencialista", Merval Pereira nomeia o atual presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, ministro Luiz Fux, como "o divisor de águas para uso de análise econômica do direito no STF" [1]. Apoiado no conteúdo de uma "tese de mestrado" (sic[2], o jornalista sinaliza que Fux "promove uma mudança de orientação no STF, agora favorável aos impactos econômicos e consequências práticas das decisões judiciais".

O presente artigo de opinião não versa sobre a complexa questão que gira em torno do consequencialismo na aplicação do Direito [3]. Tratamos de um tema subjacente que desponta na parte final do texto de Merval (e que, da mesma forma, revela-se explícita ou implicitamente em inúmeras abordagens sobre o assunto): a suposta existência de uma identidade de significados entre Análise Econômica do Direito (AED) e (relações entre) Direito e Economia.

Examinamos o assunto a partir da seguinte indagação: as relações entre Direito e Economia se encerram na análise econômica do Direito? 

Refletir criticamente sobre a questão demanda uma investigação retrospectiva de maior profundidade e abrangência, que impõe a observação e a compreensão da Economia como um campo ou disciplina do pensamento social.

Para tanto, necessário empreender uma apreciação de sua trajetória que abarca a linha do tempo das ideias econômicas e o seu desenvolvimento, apontados na literatura como a expressão da história do pensamento econômico (HPE). O seu estudo é determinante para ampliar e intensificar o conhecimento sobre a Economia e, por conseguinte, aprimorar o entendimento acerca das relações entre Direito e Economia.

Um olhar atento para a HPE revela que ao longo dos últimos 250 anos [4] surgiram e desenvolveram-se diversos tipos de abordagens econômicas, que enfatizaram diferentes aspectos de uma realidade complexa (o mundo real!): escassez, produção, distribuição, redistribuição, mercados, trocas, consumo, indivíduos, classes, firmas, organizações, instituições, custos de transação, bem-estar, informação, inovação, escolhas, crescimento, desenvolvimento, capacidades, liberdades, comportamentos, dentre outros.

Cada um dos enfoques realçou uma ou mais facetas dessa realidade, buscou previsões e explicações baseados em juízos de valor, concepções ético-filosóficas, pontos de vista políticos, construiu prognoses e diagnoses e, principalmente, alcançou/afirmou suas próprias respostas e conclusões a propósito das questões e problemas econômicos entendidos como fundamentais à vista de cada perspectiva em particular.

No final do século XIX, com a chamada revolução marginalista, lançaram-se as bases de uma tradição que seria responsável por uma alteração dramática em termos de entendimento a respeito da própria noção de Economia enquanto disciplina do pensamento social: a crença e a disseminação da ideia de existência de um tipo ou vertente única de teoria econômica, a neoclássica — defendida por muitos como uma abordagem supostamente livre de valores —, orientada por modelos simplificadores da realidade, postulados do individualismo metodológico e centrada primordialmente no exame das escolhas e ações/comportamentos dos indivíduos na tentativa de formulação de explicações universais para os fatos e fenômenos econômicos.

Também data do final do século XIX a proposta de John Neville Keynes — pai do britânico John Maynard Keynes — de uma separação conceitual e analítica da economia em positiva e normativa. A partir daquele marco se buscou construir uma teoria econômica positiva, presumidamente pura e liberta de juízos de valor — tentativa de simplificação das realidades e dos processos/fenômenos econômicos, concebidos segunda tal premissa para ocorrerem em consonância com determinados princípios supostamente universais, independentemente dos contextos social, político e jurídico em que ditas realidades e processos se inserem —, deixando-se para a economia normativa as asserções sobre o dever ser implicado no debate político.

Décadas depois, já no século XX, as bases das concepções neoclássicas consolidaram-se como a visão mainstream em Economia associadas e reforçadas pelas pressuposições e postulados da teoria da escolha racional sob escassez, de Lionel Robbins (1932). A teoria da escolha racional influenciou expressivamente pensamento e abordagens de inúmeros economistas, grupos e escolas. Não apenas moldou o que é considerado por muitos como ciência econômica, como também passou a ser utilizada em outras esferas da teoria social que analisam situações de maximização da utilidade e eficiências nos campos político, social, jurídico etc.

Menciona-se usualmente que a análise econômica do Direito (AED) começou a ser constituída a partir da segunda metade do século XX, por intermédio de trabalhos interdisciplinares de autores como Ronald Coase ("The Problem of Social Cost", 1960), Guido Calabresi ("Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts", 1961), Gary Becker ("Crime and punishment: an economic approach", 1968) e Richard Posner ("Economic Analysis of Law", 1973), entre outros.

Não se pode negar a importância dos referidos escritos. Todavia, a história da AED compreende outros acontecimentos que os antecederam, grande parte deles ligados à Universidade de Chicago, instituição que desempenhou papel de significativa contribuição não apenas para a sua gênese, como também para o seu desenvolvimento e disseminação.

Conforme relatado pelo próprio Coase, uma série de eventos ocorridos naquela universidade e precedentes à publicação de "The Problem of Social Cost" devem ser entendidos como fatos relevantes para o nascimento da EAD, como a interação entre o Departamento de Economia e a Faculdade de Direito que, tempos depois, levou à criação do programa de Direito e Economia [5].  

Mas para os fins da presente reflexão são menos valiosas as cogitações sobre o contexto ou as razões de surgimento da AED e mais importante a delimitação de suas bases informacionais: ela alimentou-se majoritariamente de pressuposições teóricas, conceitos e instrumentos de análise desenvolvidos em tradições de pensamento econômico como a neoclássica e a neoinstitucionalista, fortemente caracterizadas pelo uso de modelos matemáticos e observações baseadas em inferências estatísticas fundadas em dados publicados (secundários) e produzidos (primários) [6].

Composta por variadas tendências, a AED adotou como mecanismos principais de análise os chamados critérios de eficiência como a superioridade e a otimização de Pareto e o teste de Kaldor-Hicks, além de outros como o teorema de Coase e a teoria dos jogos, associados a argumentos teleológicos como a maximização de riqueza e da eficiência.

A AED não incorporou a aplicação das teorias econômicas em sentido amplo, mas de determinadas vertentes e suas respectivas concepções ético-filosóficas e pontos de vista políticos que as inspiraram, das quais capturou certos conceitos, postulados teóricos, mecanismos analíticos etc. Vale, sobre esse aspecto, conferir a obra "Efficiency Instead of Justice: Searching for the Philosophical Foundations of the Economic Analysis of Law", de Klaus Mathis.

Contudo, certamente a ciência econômica não se esgota na teoria da escolha racional e nas pressuposições teóricas e instrumentos de análise a ela associados ou dela derivados, que enfatizam tão somente preocupações com questões como escassez, comportamentos, eficiência, indivíduos, mercados, firmas, instituições, dentre outros.

Existe um amplo campo de teorias, ditas heterodoxas, que buscam inspiração em economistas e concepções que fornecem uma visão de mundo distinta daquela associada ao pensamento marginalista. Alguns exemplos são os marxistas, os institucionalistas influenciados por Thorstein Veblen, os pós-keynesianos que rejeitam leituras da obra de Keynes que utilizam a ideia de mão invisível.

A redução do espectro da ciência econômica à teoria da escolha gera não apenas uma cisão e uma invisibilidade artificial na história do pensamento econômico, mas principalmente deixa de aproveitar a grande diversidade conceitual e as múltiplas dimensões de abordagens existentes no âmbito da Economia.

Economistas como Ha-Joon Chang têm chamado atenção para a necessidade de cultuar-se um maior pluralismo teórico em Economia. Em primeiro lugar, uma visão múltipla da Economia deveria reconhecer a legitimidade de teorias não adeptas do paradigma da escolha racional como ciência econômica. Em segundo lugar, o cultivo de uma maior diversidade teórica permitiria um diálogo mais profícuo com outros campos do pensamento social como o próprio Direito.

É justamente nesse ponto que, em resposta à questão orientadora da presente reflexão, chamamos atenção para o fato de que as relações entre Direito e Economia não se encerram na AED, como muitas vezes se quer fazer crer, explícita ou implicitamente. A AED consiste, tão somente, numa forma particular (dentre muitas) de empreender tais conexões entre as referidas esferas do conhecimento e disciplinas do pensamento social.

Se, conforme acreditamos — e não estamos sozinhos nesta convicção! —, não há apenas um tipo de teoria econômica, existem diferentes maneiras de promover a articulação entre a Economia e o Direito. Uma visão plural destas possibilidades de intersecção deveria partir da premissa de que a AED constitui uma delas, não a única [7].

A AED, seja como teoria ou como método [8], tem suas vantagens e desvantagens, pontos fortes e fracos. Suas pressuposições teóricas (ou aquelas em que se ampara), narrativas e critérios/métodos de abordagem podem contribuir como subsídios instrumentais para o aperfeiçoamento do Direito e das instituições jurídicas caso entendidas simplesmente como fontes de informações a respeito de certos aspectos econômicos que demandam consideração (exemplos: liberdades econômicas e eficiência na alocação de recursos), sem que se lhes atribuam qualquer caráter exclusivo e, muito menos, determinístico (por exemplo, em relação aos processos de escolhas/proposições/elaborações ou revisões legislativas/normativas).

Tais conhecimentos, inputs e insights advindos do emprego do instrumental teórico/metodológico da AED, devem ser colocados sempre em perspectiva diante de outros elementos igualmente necessários de reconhecimento e atendimento, especialmente os princípios e valores que cabem ao Direito preservar. Afinal, "as realidades econômicas, o processo econômico em toda a sua complexidade, devem ser analisados no contexto social, político e jurídico em que se inserem" [9].

Como ressaltou Ha-Joon Chang ao enfatizar a diversidade de abordagens em matéria econômica, não se pode crer na existência de um enfoque único: "Não existe uma teoria capaz de explicar tudo melhor que outra — ou 'um anel para a todos governar'" [10].

Estejamos, portanto, atentos aos diferentes capítulos da HPE e à pluralidade de enfoques em matéria de teoria(s) econômica(s) para que sejamos capazes de pavimentar, no Brasil, um caminho mais rico de possibilidades de articulações entre Direito e Economia.

P.S.: A expressão anunciada no subtítulo do artigo, "um anel para a todos e a tudo governar", foi em parte tomada de empréstimo do economista sul-coreano Ha-Joon Chang (no original, "um anel para a todos governar", inspirada na obra "O Senhor dos Anéis").

 


[1] Disponível em: https://www.academia.org.br/artigos/fux-consequencialista. Acesso em: 20 out. 2020.

[2] As expressões usualmente utilizadas no ambiente acadêmico são dissertação de mestrado e tese de doutorado.

[3] Por sua especificidade, a matéria demanda análise particular e constituirá objeto de outro artigo de opinião a respeito da utilização do Consequencialismo nas tomadas de decisões (interpretação/aplicação do direito).

[4] Embora as primeiras tendências de pensamento econômico sejam vinculadas à Antiguidade, por intermédio da filosofia moral, não se vislumbravam organização e sistematização de ideias.

[5] A gênese e a trajetória de desenvolvimento da AED na Universidade de Chicago foram contadas em detalhes por Ronald Coase em palestra por ocasião da celebração do centenário da instituição (1992), na Olin Centennial Conference in Law and Economics at the University of Chicago, com versão escrita publicada no ano seguinte no Journal of Law and Economics. COASE, Ronald H. Law and Economics at Chicago. Journal of Law and Economics, Chicago, Vol. 36, No. 1, Part 2, pp. 239-254, abr. 1993.

[6] A escola neoinstitucionalista é definida por alguns como uma renovação do arquétipo neoclássico pela introdução de preocupação específica com os custos de transação e o aprofundamento das abordagens sobre o papel das instituições — sob determinados enfoques particulares — no crescimento econômico. Embora existam pontos de aproximação (comunicação, inclusive, valorizada por veículos como o Journal of Institutional Economics), há diferenças perceptíveis entre os fundamentos teóricos e históricos dos pensamentos neoinstitucionalista (Nova Economia Institucional) e institucionalista original (Institucionalismo Original, Institucionalismo Americano ou Velha Economia Institucional), este último caracterizado como uma voz crítica contra a crença desmedida no papel dos mercados e, também, contra o processo de "matematização" da economia como instrumento analítico e de predição.  

[7] Aliás, como bem ressaltou Celso Campilongo em prefácio à obra Direito e Economia em dois mundos. Em seu texto, apresentou um panorama geral de pelo menos duzentos anos de estudos e escritos recorrentes a respeito das relações entre Direito e Economia.    

[8] Há controvérsias sobre se a AED constitui: 1) uma teoria do Direito; 2) uma forma geral de aplicação da teoria econômica na explicação do Direito; 3) um método de análise; 4) um simples movimento teórico.

[9] NUNES, António José Avelãs. Economia e direito. Direito e economia. Belém: CESUPA, 2019, p. 331.

[10] CHANG, Ha-Joon. Economia: modo de usar — um guia básico dos principais conceitos econômicos. Tradução de Isa Maria Lando e Rogério Galindo. 1 ed. São Paulo: Portfolio-Penguin, p. 108.

Autores

  • é professor adjunto de Direito Comercial da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (FND) e da Universidade Federal Fluminense – UFF-VR e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

  • é professora adjunta de Economia Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (FND) e doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense.

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