Opinião

Justiça em números: a porta fechada e, pior: a chave por dentro!

Autor

  • Demétrio Beck da Silva Giannakos

    é advogado professor da Faculdade de Direito da Uniritter mestre e doutorando em Direito pela Unisinos sócio do escritório Giannakos Advogados Associados membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB-RS e associado do Ibradim e da Agadie.

31 de agosto de 2020, 16h16

Spacca
No dia  24/08/2020 foi publicado o Relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chamado de Justiça em Números. A despesa total do Poder Judiciário totaliza R$ 100.157.648.446, sendo a Justiça Estadual a mais cara, custando R$ 57.330.927.222 e a Justiça do Trabalho custando R$ 20.540.947.778 na segunda colocação.

Comparado com o Relatório de 2019 (referente ao ano de 2018), houve um aumento considerável do custo total do Poder Judiciário, tendo em vista que a despesa indicada no Relatório do ano passado perfaz a quantia de R$ 93.725.289.276.

Quanto ao número de ações judiciais, o ano de 2019 finalizou com 77,1 milhões de processos em tramitação, sendo 14,2 milhões suspensos e 62,9 milhões ações em tramitação. Desde 2017, iniciou a séria de redução do acerto de ações, que vinha crescendo desde 2009. No ano de 2019, em todo o Poder Judiciário, foram ajuizadas 30,2 milhões de processos.

O Brasil é incrível. Em média, a cada grupo de 100.000 habitantes, 12.211 ingressaram com ao menos uma ação judicial no ano de 2019. No mesmo ano, 10% do total das ações ajuizadas foram no formato físico, totalizando um percentual de 90% de utilização pelas plataformas de processos eletrônicos.

O Estado, em todas as suas formas (Estados, União, Municípios, Autarquias e Empresas Públicas) é o grande responsável pelo abarrotamento do Poder Judiciário. As execuções fiscais, por exemplo, representam 39% do total dos casos pendentes e 70% das execuções pendentes no Poder Judiciário.

Porém, quais são (ou seriam) os motivos que levam a um Poder Judiciário tão caro e abarrotado? Claro que, para chegarmos neste nível de judicialização, diversos fatores são determinantes. Dentre eles, nos ateremos a analisar um dos mais relevantes: o ativismo judicial, entendido aqui, para além do conceito tradicional, em outras palavras, a ausência de uma uniformização de jurisprudência.

Os autores já se debruçaram sobre o tema em outros artigos publicados[1] na ConJur, alertando sobre os perigos e problemas do ativismo judicial até mesmo para a nossa Democracia. Além do ponto de vista do Direito, a existência de respostas não fragmentadas — afinal, o que gera tantos embargos de declaração no Brasil? — é crucial para as escolhas dos cidadãos em seu dia-a-dia. O homem moderno necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida.

O ativismo judicial ocorre quando o Direito é substituído pela vontade individual. Em verdade, o ativismo ocorre quando a decisão do caso concreto já não depende mais das leis, mas da vontade do juiz. Ou de razões pragmatistas.

Quando se decide sem seguir uma criteriologia se dá azo a mais recursos. Mais recursos exigem mais juízes e mais estrutura. E mais recursos geram, darwinianamente, jurisprudência defensiva. O sistema se adapta. Ao fim e ao cabo, o resultado estatístico é: milhões de processos, milhões de recursos e um percentual pífio de recursos admitidos, sem considerar que grande parte deles é fulminada monocraticamente.

Ou seja, verificamos, na prática, duas vertentes opostas: 1) A aposta na jurisprudência ativista e, por muitas vezes, sem qualquer tipo de respeito à coerência e integridade. Na verdade, o artigo 926 do CPC vem sendo ignorado. 2) A aposta no “precedente”, ou como outros autores preferem, na uniformização da jurisprudência, embasada nas decisões dos Tribunais Superiores, como STJ e STF. Neste caso, os Tribunais tenderiam a respeitar as decisões dos Tribunais Superiores e, consequentemente, diminuiriam os incentivos à litigância. Isso deveria funcionar. Mas não funciona. A chave para que isso funcione está no artigo 926. Sem ele, não há esse password. Ou seja, o sistema jurídico possui mecanismos para buscar a solução do problema. Mas há que se dar uma chance ao sistema. Girar a chave. “Digitar” a senha correta!

Quando as decisões são tomadas dessa forma (ativista), geram efeitos negativos, muitas vezes negligenciados pela doutrina tradicional jurídica. Explicamos.

Peguemos um caso específico como exemplo: o debate sobre a possibilidade de penhora do bem de família em contrato de locação. Recentemente, em julgamento do RE 605709/STF, houve uma indicação de mudança de entendimento do STF de que, antes, possibilitada a penhora do bem de família do fiador em contratos comerciais, nos termos do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990[2]. Assim, a lei prevê como exceção à impenhorabilidade a possibilidade de penhora do bem de família do fiador em contrato de locação. No entanto, o RE 605709/STF se posicionou em sentido contrário, manifestando-se contra a possibilidade de penhora do bem de família do fiador nestes casos[3]. Porém, já em momento posterior, o TJ/SP, por exemplo, entendeu que tal decisão é isolada, sem o condão de modificar o entendimento já existente[4].

A taxatividade “mitigada” do rol do art. 1.015, do CPC (interposição do recurso de agravo de instrumento) é outra tese que gera o incentivo à interposição do referido recurso em modalidades não previstas pela lei, diante de recente entendimento do STJ[5].

Portanto, decisões ativistas e/fragmentárias-pragmatistas incentivam ao ajuizamento de ações, diante da falta de segurança jurídica por parte dos Tribunais. Falta de previsibilidade gera mais conflitos. Mais recursos. Mais jurisprudência defensiva. Moto contínuo. Tudo gera mais ainda mais ações. Novas e recursos sobre as velhas. Isso tudo contribui para a manutenção de um Poder Judiciário caro e moroso, com poucas respostas “seguras” a serem seguidas por todos.

Como no poema de José Paulo Paes, a torneira seca (mas pior: a falta de sede); a luz apagada (mas pior, o gosto do escuro); a porta fechada (mas pior: a chave por dentro).

Sim, a porta fechada, mas pior: a chave está por dentro.

Talvez porque gostemos de ficar trancados. E reproduzindo a crise. E aumentando a jurisprudência defensiva.


[1] https://www.conjur.com.br/2020-ago-04/streck-giannakos-ativismo-honorarios-ninguem-acerta; https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/streck-giannakos-mensalidades-escolares-proporcionalidade; https://www.conjur.com.br/2020-mai-15/streck-giannakos-juiz-dispensar-prova-reduzir-aluguel

[2] Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

[3] Recurso Extraordinário manejado contra acórdão publicado em 31.8.2005. Insubmissão à sistemática da repercussão geral. Premissas distintas das verificadas em precedentes desta suprema corte, que abordaram garantia fidejussória em locação residencial. Caso concreto que envolve dívida decorrente de contrato de locação de imóvel comercial. Penhora de bem de família do fiador. Incompatibilidade com o direito à moradia e com o princípio da isonomia. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 605709, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 12/06/2018.

[4] Embargos à Penhora – Sentença que acolheu tese dos fiadores em locação comercial e afastou penhora sobre imóvel por estes titularizado, reconhecendo tratar-se de bem de família – tese de impenhorabilidade de bem de família apreciada na lide – questão de ordem exceção legal, prevista no art. 3º, vii, da Lei nº 8.009/1990 – entendimento do STF de que a excepcionalidade da proteção do bem de família é constitucional (RExt nº 407.688/ac e RExt nº 612.630/SP), corroborado pelos dizeres veiculados na Súmula nº 549 do STJ – notícia de decisão isolada do STF, desprovida de vinculatividade, que não tem o condão de afastar as conclusões tomadas em sede de anterior recurso extraordinário com repercussão geral e, por isso, de justificar a revisitação do tema quanto à possiblidade de penhora de bem de família de fiador de contrato de locação comercial – recurso provido. (TJSP; Apelação Cível 1010423-13.2018.8.26.0344; Relator (a): Francisco Casconi; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/09/2019).

[5] Recurso Especial representativo de controvérsia. Direito processual civil. Natureza jurídica do rol do art. 1.015 do cpc/2015. Impugnação imediata de decisões interlocutórias não previstas nos incisos do referido dispositivo legal. Possibilidade. Taxatividade mitigada. Excepcionalidade da impugnação fora das hipóteses previstas em lei. Requisitos. Na hipótese, dá-se provimento em parte ao recurso especial para determinar ao TJ/MT que, observados os demais pressupostos de admissibilidade, conheça e dê regular prosseguimento ao agravo de instrumento no que tange à competência. 9- Recurso especial conhecido e provido. (REsp 1704520/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/12/2018, DJe 19/12/2018)

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