Opinião

Consórcios interestaduais podem ser um contraponto ao poderio da União

Autores

  • Gustavo Ferreira Santos

    é advogado professor de Direito Constitucional e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco membro do Grupo de Pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC) e do Instituto Publius e pesquisador PQ 2-CNPq.

  • Renata Gonçalves Perman

    é advogada mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pesquisadora no Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).

  • Marcelo Labanca

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

31 de agosto de 2020, 12h15

Nas ações de enfrentamento da pandemia da Covid-19, destacou-se a atuação coordenada dos Estados do Nordeste, por meio do Consórcio Nordeste, uma iniciativa das entidades federadas da região, viabilizando a integração de esforços para maximização de resultados. Apesar do destaque que teve no momento, não foi a primeira atuação do consórcio. Criado em 2019, já vinha atuando antes da situação de calamidade pública. E o consócio não é o único, nem foi o primeiro a reunir Estados vizinhos. Já existiam o Consórcio Brasil Central, com Estados de Centro-Oeste, Norte e Nordeste, e o Consórcio Amazônia Legal.

A experiência resultante dessas iniciativas pode levar a profundas alterações na nossa organização federativa. Longe ainda de significarem a adoção de uma forma regional de Estado, os consórcios interestaduais representam um passo importante na valorização do nível regional. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu as regiões na Seção IV, artigo 43, que estabeleceu a importância do desenvolvimento das regiões na redução das desigualdades regionais. As referências à questão regional nas constituições anteriores estavam ligadas ao combate à seca do nordeste, ao desenvolvimento da Amazônia ou genericamente à competência da União para elaborar planos regionais de desenvolvimento.

Em 1970, Paulo Bonavides proferiu conferência em evento em Barcelona sobre o "federalismo das regiões", cujo conteúdo virou artigo publicado em 1971 na Revista de Informação Legislativa, chamando a atenção para a necessidade de valorizarmos formas autônomas de ação regional. O país vivia uma ditadura civil-militar, mas ainda estava em um processo de combate a desigualdades regionais que se iniciara no período democrático, quando foram criados entidades como a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e a Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia).

Bonavides criticou a falta de autonomia dos entes subnacionais, entre o desequilíbrio que as desigualdades econômicas causavam na federação de estados e a centralização no poder central. Para ele, "é de se assinalar o caráter ilusório de um federalismo de Estados-membros com desenvolvimento econômico acentuadamente desigual". Sentenciava: "Ou os Estados mais fortes se impõem aos mais fracos, e terão o domínio político do sistema (como aconteceu no Brasil por ocasião da chamada 'política dos governadores', com a hegemonia de São Paulo, Minas Gerais e do Rio Grande do Sul), ou essa dominação se transferirá para a órbita do Poder Central, e este estenderá a toda a Federação o peso da autonomia unitária, sufocando as autonomias estaduais" [1].

Na proposta de Bonavides, a regionalização proporcionaria uma saída à crise do Estado federal, possibilitando a descentralização, pois a região simboliza um poder novo com competência para afastar o centralismo da União. Esse centralismo acabou anulando as autonomias e fez da República Federativa um "ordenamento de fachada" [2]. Assim, a regionalização poderia ser um antídoto eficaz para combater a centralização que acompanhou o Estado Federal brasileiro desde a sua formação. A região apresentar-se-ia como um quarto ente do Estado Federal, juntamente com a União, Estados e municípios.

A proposta de Bonavides tem em comum com o processo que agora se desenrola de integração de Estados por meio dos consórcios a ideia de solidariedade. O federalismo incorporou, com o tempo, essa dimensão, especialmente quando foi aplicado em locais com grandes disparidades sociais e econômicas entre os entes que formam o Estado.

A Espanha, após o franquismo, viu na regionalização do Estado um caminho para manter a unidade, porém liberando a organização representativa de sua real diversidade. A Constituição de 1978 previu um ente regional a ser criado, posteriormente, por associação entre províncias, com estatuto autonômico aprovado pelo Parlamento nacional. Estabeleceu que "as províncias limítrofes com características históricas, culturais e econômicas comuns, os territórios insulares e as províncias com entidade regional histórica poderão usufruir de autogoverno e constituir-se em Comunidades Autônomas". Daí, aplicada na prática a norma, surgiram entes regionais com autonomia maior do que muitos estados de federações pouco descentralizadas.

No atual processo vivido pelo Brasil, o fortalecimento das regiões apenas resgata o movimento histórico de formação do federalismo brasileiro. Muitos dizem que houve um federalismo por desagregação, pois a criação formal do Estado Federal, em 15 de novembro de 1891, decorreu do esfacelamento do Estado Imperial. Todavia, na prática, o território brasileiro já era subdividido, com territorialidades bem definidas e diferentes entre si (inclusive sob o aspecto cultural). Desde a época das capitanias hereditárias que depois foram absorvidas pelo conceito de províncias (as precursoras dos atuais Estados), já havia, no Brasil, um aspecto forte de descentralização territorial com uma autonomia politica vigiada. O Ato Adicional de 1834, por exemplo, estabeleceu competências constitucionais para as Assembleias Legislativas das Províncias durante o Império (o que pode parecer um contra senso). O que queremos aqui afirmar é que o caldo de cultura da formação descentralizada brasileira vem de há muito tempo. Não foi inaugurado apenas em 1891. E o processo de centralização e de descentralização sempre ocorreu no país, independentemente das fases imperial ou federal. No próprio curso da federação formal (após 1891), houve diversos momentos em que havia mais descentralização, quanto momentos em que o poder era mais centralizado. Estamos vendo, agora, um momento de fortalecimento dos processos descentralizadores que reposicionam o equilíbrio entre poder central e poderes estaduais. Nesse jogo de tentativa de conciliação da diversidade com a unidade, o momento político é ímpar para que os consórcios estaduais sejam protagonistas de um processo vivo, sem artificialismos e sem protagonismo da União.

O que se vê, hoje, em relação aos consórcios, afasta-se, naturalmente, da proposta inicial de Bonavides por não ser uma estrutura constitucionalizada, como um quarto ente da federação. Porém, o movimento indica que aquilo pretendido por Bonavides pode ser um arranjo a ser adotado no futuro, caso a prática dos consórcios revele o potencial desse nível regional como um contraponto ao poderio da União que, ao mesmo tempo, pode atuar em colaboração com o governo central, concretizando o verdadeiro espírito do federalismo cooperativo.

 


[1] BONAVIDES, Paulo. O Planejamento e os organismos regionais como preparação a um federalismo das regiões (a experiência brasileira). Revista de Informação Legislativa. Julho- setembro de 1971.

[2] BONAVIDES, Paulo. Constituinte e Constituição: a democracia, o federalismo e a crise contemporânea. 3 º ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 263.

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    é advogada, mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pesquisadora no Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).

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