Opinião

A revogação das isenções sob condição e o dilema entre as competências de STJ e STF

Autor

  • Ivan Allegretti

    é advogado em Brasília professor na graduação e na pós-graduação do IDP doutorando e mestre pela Universidade de São Paulo.

31 de agosto de 2020, 9h12

A Súmula nº 544 do Supremo Tribunal Federal e o artigo 178 do Código Tributário Nacional apontam no mesmo sentido, embora com redações diferentes:

"Súmula 544 Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas".

"CTN, Artigo 178  A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do artigo 104".

Vale notar que a Súmula foi aprovada pelo Plenário do Supremo em 3/12/1969 [1], depois da edição do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25/10/1966. No entanto, a súmula se baseia em três precedentes [2], todos eles julgados antes da edição do CTN, ficando claro, portanto, que foi a jurisprudência existente na época que embalou o surgimento do dispositivo em questão.

Assim, se por um lado a jurisprudência se densificou em súmula, por outro lado foi veiculada proteção semelhante em texto de lei, a qual veio então a ser recepcionada como lei complementar, configurando norma geral de Direito Tributário em conformidade com o artigo 146, III, da Constituição de 1988.

Porém, se a primeira vista o artigo 178 do CTN poderia ou deveria proporcionar a mesma proteção da Súmula nº 544/STF, não é isso o que se verifica na prática, razão pela qual, conforme se buscará demonstrar por meio do presente artigo, é preciso que o Supremo Tribunal Federal assegure a proteção constitucional que consiste na razão de existir de tal súmula: a proteção à segurança jurídica, ao direito adquirido e à ampla defesa, como também sob a Constituição vigente ao princípio da moralidade.

Em artigo recente nesta mesma ConJur, o professor Fernando Facury Scaff tratou a respeito do benefício fiscal concedido com a finalidade da popularização dos bens de informática por meio da denominada Lei do Bem, a Lei nº 11.196/2005, que embora devesse perdurar até 31/12/2018, foi antecipadamente revogado pela Medida Provisória nº 690, de 31/8/2015, sem fazer qualquer ressalva no sentido de preservar a eficácia em relação àqueles contribuintes e bens que atendiam às condições legais, encontrando-se em fruição do benefício.

A situação é simplesmente de mudança da vontade do governante, que se antes desejava manter o benefício fiscal, depois mudou de ideia.

Isto fez com que todos aqueles contribuintes que se encontravam comprometidos com tal programa estatal, ou sob o ângulo tributário que se encontravam na fruição de tal benefício fiscal demandassem em juízo a preservação de seus efeitos até o prazo fixado na lei revogada.

O pleito vem sendo recusado pelos tribunais de segunda instância na maioria das vezes sob o fundamento simplório de que a redação do artigo 178 do CTN mencionaria apenas "isenção" e que por isso a proteção nele contida apenas alcançaria esta espécie de benefício fiscal, não se aplicando a nenhuma outra como é, no caso, a concessão de alíquota de zero [3].

Mas o problema maior agora toma lugar nas instâncias superiores, pois de um lado o Superior Tribunal de Justiça sistematicamente recusa conhecimento aos recurso especiais sob o fundamento de que se trata de matéria constitucional, enquanto de outro lado o Supremo Tribunal Federal recusa conhecimento aos recursos extraordinários por entender que a discussão envolvendo o artigo 178 do CTN caracterizaria violação reflexa à Constituição.

Confira-se as seguintes decisões do STJ:

"No caso, em que a parte recorrente sustenta que 'a MP 690/2015 culminou por contrariar, flagrantemente, a disposição do artigo 178 do CTN', a controvérsia resolve-se no plano constitucional, de modo que não compete ao STJ, em sede de Recurso Especial, mas ao STF, na via do Recurso Extraordinário interposto, simultaneamente, e admitido, na origem, resolver o suposto conflito entre a MP 690/2015, com status de lei ordinária, e a regra geral do artigo 178 do CTN, que possui status de lei complementar". (RESP 1.659.784/RS, Ministra Assusete Magalhães, DJ-e 24/10/2017).

"No caso, em que a parte recorrente sustenta que o artigo 9º da MP 690/2015 estaria a contraria o disposto no artigo 178 do CTN, a controvérsia resolve-se no plano constitucional, de modo que não compete ao STJ, em sede de Recuso Especial, mas ao STF, na via do Recurso Extraordinário interposto, simultaneamente, e admitido, na origem, resolver o suposto conflito entre o artigo 9º da MP 690/2015, com status de disposição de lei ordinária, e a regra geral do artigo 178 do CTN, que possui status de disposição de lei complementar". (REsp 1.717.330/PR, Ministra Assusete Magalhães, DJe 19/2/2018).

"Com efeito, considerando-se, à luz dos fundamentos do acórdão recorrido, as alegações da parte recorrente no sentido haveria ofensa ao artigo 178 do CTN pela MP 690/2015, convertida na Lei n. 13.241/2015, que revogou de forma antecipada incentivo fiscal, com ofensa ao princípio da segurança jurídica , a matéria deduzida apresenta-se de índole constitucional, porquanto envolve conflito entre lei ordinária e lei complementar, além de princípios albergados pela Lei Maior, de modo que se apresenta inviável seu exame, em recurso especial, à luz do artigo 105, III, da Constituição Federal". (RESP nº 1.854.392/SP, Ministro Gurgel de Faria, DJe 18/8/2020).

Confira-se as decisões do STF:

"In casu, verifica-se que a discussão envolvendo a incidência da Lei n.o 13.241/2015 e a aplicação do disposto no artigo 178 do Código Tributário Nacional possui natureza infraconstitucional, configurando, quando muito, ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que torna inadmissível o recurso extraordinário". (RE 1.188.307/RS e RE 1.266.902/RS, Ministro Edson Fachin, DJe 31/5/2019).

"A apreciação do pleito recursal exigiria a avaliação da legislação infraconstitucional aplicável à espécie (Lei n. 11.196/2005 e Lei 13.241/2015). A alegada contrariedade à Constituição da República, se tivesse ocorrido, seria indireta, a inviabilizar o processamento do recurso extraordinário". (RE 1.224.213/RS, Ministra Cármén Lucia, DJe 2/9/2019).

"Nesses termos, verifico que decisão impugnada baseou-se na legislação infraconstitucional aplicável à espécie (11.196/2005, Lei 13.097/15 e MP 690/15), para assentar a revogação do benefício tratado nos autos. Assim, verifica-se que a matéria debatida no acórdão recorrido restringe-se ao âmbito infraconstitucional, de modo que a ofensa à Constituição, se existente, seria reflexa ou indireta, o que inviabiliza o processamento do presente recurso". (RE 1.250.662/RS, Ministro Gilmar Mendes, DJe 13/2/2020).

"No caso, o Tribunal de origem, a partir da interpretação da Lei 11.196/2005 e da Medida Provisória 690/2015, convertida na Lei 13.241/2015, concluiu que a revogação do benefício fiscal tratado nos autos atendeu às exigências legais, conforme se observa do seguinte trecho da decisão impugnada:

A Medida Provisória 690/2015, convertida na Lei nº 13.241/2015, não está revogando uma isenção concedida por prazo certo e sob determinadas condições. Trata-se, ao contrário, de aumento de alíquota que obedeceu a todos os critérios constitucionais exigidos, sendo, pois, inaplicável o disposto no artigo 178 do Código Tributário Nacional.

Com efeito, seguindo entendimento desta 2ª Turma, entendo que não se pode confundir 'isenção fiscal' com 'alíquota zero'. (…)

Desse modo, para dissentir do acórdão impugnado e verificar a procedência dos argumentos consignados no apelo extremo, seria necessário o reexame da legislação infraconstitucional aplicável ao caso, sendo certo que eventual ofensa à Constituição seria apenas indireta". (RE 1.124.753, Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 17/6/2020).

O que se verifica, portanto, é que o STJ entende que a afronta à lei complementar seria matéria de índole constitucional, enquanto o STF entende que se a interpretação envolve o mesmo artigo 178 do CTN a análise configuraria violação reflexa à Constituição.

Em paralelo, discute-se ainda se a referência à "isenção" limita o alcance da proteção do artigo 178 do CTN apenas a esta espécie de benefício fiscal, não se estendendo a outras modalidades, mesmo que concedidas a prazo certo e mediante condições!

Diante de tal caos, é urgente que o Supremo Tribunal Federal rememore a origem da proteção que se encontra entranhada na referida Súmula 544, a qual, como visto, não se baseia no artigo 178 do CTN, mas decorre do princípio constitucional da segurança jurídica, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito !

A Súmula 544/STF apresenta como "referência legislativa" o artigo 141, §3º, da Constituição de 1946, o artigo 150, §3º da Constituição de 1967 e o artigo 153, § 3º, da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda nº 1/1969, todos com a mesma redação: "A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"  o mesmo texto do inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição de 1988.

Isso evidencia a transcendência de tal proteção no âmbito tributário entre as diversas Cartas Constitucionais, enquanto corolário da garantia individual ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, assim apontando para o seu verdadeiro e efetivo alcance: a proteção do contribuinte em relação a qualquer benefício fiscal condicionado e a prazo certo.

Deve-se reconhecer ainda que a atual carta adiciona mais um elemento a amparar o contribuinte: o princípio da moralidade (artigo 37 da CF/88), a exigir que a Administração haja com previsibilidade e confiabilidade [4].

Destarte a necessidade de se reconhecer que a verdadeira índole da questão jurídica é constitucional e que se trata objetivamente e diretamente da aplicação do entendimento já cristalizado na Súmula 544/STF.

Mais: é preciso reconhecer que a interpretação que o STF realizará em relação aos princípios constitucionais da segurança jurídica, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito forçosamente se sobreporá em relação à eventual interpretação que o STJ pudesse a dar em relação ao texto do artigo 178 do CTN, de maneira que caberá ao STF em qualquer hipótese dar a última palavra na questão.

Isso se dá com ainda maior razão diante do panorama que já se desenha em relação à presente discussão nas instâncias de piso e mesmo no STJ, cuja interpretação aponta no sentido de limitar o alcance do artigo 178 do CTN à literalidade do termo "isenção", situação em que cumpriria ao STF tomar fundamento no atual artigo 5º, XXXIV, e artigo 37 da CF/88 para mais uma vez pronuncia o correto alcance a ser reconhecido à Súmula 544/STF.

Ou seja: ainda que os demais tribunais queiram apequenar o âmbito de aplicação do artigo 178 do CTN a pretexto da interpretação de seu texto, a última palavra caberá ao STF, tendo em vista que está em jogo revisitar a proteção constitucional à segurança jurídica, em especial ao direito adquirido e à ampla defesa, para reavivar o efetivo alcance que se deve reconhecer ao entendimento contido na Súmula 544.

Faz prova da autonomia da Súmula 544/STF em relação ao artigo 178 do CTN, conforme mencionado pelo professor Fernando Facury Scaff no artigo acima mencionado, que há diversas decisões proferidas pelo STF que a reafirmam mesmo após a Constituição de 1988, mostrando sua atualidade [5].

Parece de rigor, portanto, que o Supremo Tribunal Federal reconheça e exerça a sua competência para a análise da questão constitucional da segurança jurídica, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito que é a razão primeira e última da existência da Súmula 544, cuja inteligência deve assegurar a proteção a todo benefício fiscal condicionado e a prazo certo.

 


[1] Publicada no DJ de 10/12/1969

[2] RMS 18004, DJ de 27/12/1968; RE 51680 EI, DJ de 05/08/1965; e RMS 14101, DJ de 23/06/1965.

[3] Basta conferir o inteiro teor das decisões monocráticas dos ministros do STJ e do STF citadas mais adiantes para neles encontrar as ementas dos acórdãos dos Tribunais Regionais Federais que revelam o entendimento mencionado.

[4] Na linha do que defende Humberto Ávila, tal princípio possui um significado particular em Direito Tributário, impondo os deveres de estabilidade, confiabilidade e previsibilidade na atuação do Poder Público e assim atuando como verdadeira limitação constitucional ao poder de tributar. Explica que “a moralidade constitui uma limitação expressa (artigo 37), e a proteção da confiança e a boa fé como limitações implícitas, decorrentes dos sobreprincípios do Estado de Direito e da segurança jurídica, sendo todas elas limitações materiais, na medida em que impõem ao Poder Público a adoção de comportamentos necessários à preservação ou busca dos ideais de estabilidade e previsibilidade normativa, bem como de eticidade e confiabilidade.” (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012; p.. 386).

[5] RE nº 113.149/SP, Rel. Min. Moreira Alves, Pleno, DJ 5/10/1989; RE nº 115.472/SP, Rel. Min. Célio Borja, Segunda Turma, DJ 14/12/1990; (3) RE nº 414.249 AgR/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 31/08/2010; RE nº 582.926/CE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ 10/5/2011 e ADI nº 4.976, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJ 7/5/2014.

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