Opinião

O Provimento nº 11/2020 do TJ-SP e o interesse processual

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30 de agosto de 2020, 6h34

O Provimento nº 11/2020 do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) lançou um projeto piloto para que empresários possam utilizar serviços de conciliação e mediação do tribunal antes de iniciarem um processo judicial. A despeito da novidade, o projeto joga luzes a uma discussão já antiga: a ausência de utilização prévia da negociação, conciliação ou mediação poderia descaracterizar o interesse processual?

Aqueles contrários à tese defendem que, como não há obrigação legal para uso de outros mecanismos de resolução de conflitos, não seria legítimo exigir que a parte supere uma fase dita pré-processual para então poder acessar a ação judicial. Havendo resistência da outra parte à pretensão, já estaria caracterizado o interesse processual. O argumento estaria na prerrogativa da parte de recusar a conciliação.

Já aqueles favoráveis ao argumento de que carece de interesse processual a parte que não busca autocomposição antes de ingressar em juízo, a garantia de acesso à justiça não significa acesso ao Poder Judiciário, mas "acesso qualificado à Justiça". Argumenta-se que o Poder Judiciário deveria ser acionado apenas quando a solução não puder ser obtida pela via administrativa ou extrajudicial. O fundamento estaria calcado na boa-fé e lealdade processuais, bem como no princípio da eficiência.

O Poder Judiciário enfrentou debates em certa medida similares já em 2012. Isso se deu quando começaram a chegar ao Superior Tribunal de Justiça requerimentos de concessão de benefícios previdenciários sem que antes se tivesse batido na porta do Instituto Nacional de Seguridade Social. À época, decidiu-se que o interesse processual do segurado e a utilidade da prestação jurisdicional concretizam-se nas hipóteses de: a) recusa de recebimento do requerimento; ou b) negativa de concessão do benefício previdenciário, seja pelo concreto indeferimento do pedido, seja pela notória resistência da autarquia à tese jurídica esposada (REsp nº 1310042/PR).

Na mesma linha, em 2014 o Supremo Tribunal Federal definiu que a inexistência de prévio requerimento administrativo para concessão de benefícios previdenciários ou relacionados ao seguro DPVAT impede a configuração de pretensão resistida e, portanto, de interesse processual (RE nº 631.240/MG e RE nº 839.314/MA).

Apesar de haver distinção entre a existência de um caminho próprio para a concessão do benefício pretendido — como nos julgados mencionados — e a mera possibilidade de percorrer um caminho alternativo para a solução do conflito — como os métodos autocompositivos —, já se verificava desde aquela época sinalização da jurisprudência acerca da ausência de interesse processual quando não há necessidade efetiva de provocação do Poder Judiciário. Já se encontravam dentre os fundamentos nessa linha a preocupação com a sobrecarga da Justiça e com a possível e consequente ineficiência.

Outro exemplo dessa discussão é o acórdão de recurso especial repetitivo nº. 1349453/MS prolatado pelo STJ acerca de requisição de documentos bancários sem que antes tenha sido formulado pedido administrativo à instituição financeira. Lá foi replicada essa mesma ideia de que a ausência de pretensão resistida implica inexistência de interesse processual. Apesar da não utilização de mecanismos alternativos não necessariamente implicar ausência de pretensão resistida, essa provocação direta do Poder Judiciário pode desconfigurar o binômio necessidade-utilidade.

No ano de 2015 houve três marcos importantes sobre o prestígio do sistema jurídico brasileiro à resolução de conflitos pela autocomposição: o novo Código de Processo Civil, a Lei de Mediação e a plataforma Consumidor.gov.br — institucionalizada por meio do Decreto nº 8.753 e que em 2020 passou a ser o canal para reclamações à administração pública federal direta, autárquica e fundacional para a autocomposição nas controvérsias em relações de consumo.

Ocorre que não havendo cláusula que imponha às partes o dever de negociar, mediar ou conciliar antes de iniciarem processo judicial e arbitral, permanece a controvérsia quanto à possível falta de interesse processual de quem não tentou uma resolução consensual.

Mais recentemente, ganhou espaço a tese que nega a existência de interesse processual nessas hipóteses. As estatísticas parecem dar-lhe subsídios, notadamente se considerada a perspectiva do acesso à justiça e resolução do conflito de forma mais célere e menos onerosa. Segundo dados divulgados pela plataforma Consumidor.gov.br, somente em 2019 foram finalizadas 780.179 reclamações, com índice médio de solução de 80,7% e prazo médio de resposta inferior a sete dias. A título de comparação, segundo o Conselho Nacional de Justiça, em 2018, o Poder Judiciário encerrou o ano com 78,7 milhões de processos em curso, que em média levam sete anos para solução definitiva. Ocorre que, como se diz, Justiça demorada é Justiça denegada.

O tribunal que mais parece ter encampado a ideia é o do Rio Grande do Sul, com julgados no sentido de reconhecer a ausência de interesse processual de quem, tratando de matéria consumerista, sequer se vale de mecanismos de resolução extrajudiciais disponíveis, como o Consumidor.gov.br, acessível pelo Projeto "Solução Direta-Consumidor". Como alternativa à extinção da demanda, alguns julgados determinam a suspensão do processo judicial até que intentada solução extra ou pré-judicial (e.g. Apelação Cível nº 70083955641 e outros). Seguindo essa toada, outros tribunais têm proferido decisões assim, a exemplo dos Tribunais de São Paulo (e.g. Apelação Cível nº 1041727-34.2015.8.26.0506) e de Santa Catarina (e.g. RI nº 03017229120178240022). O Tribunal de Justiça do Maranhão trata, inclusive, da ausência de violação ao princípio da inafastabilidade da Jurisdição (e.g. AC nº 00014375220178100123).

Tal como ocorre em relação às demandas consumeristas vis-à-vis a plataforma Consumidor.gov.br, demandas empresariais poderiam receber o mesmo tratamento em termos de interesse processual em razão do mecanismo lançado pelo TJ-SP e outras iniciativas similares. É certo que o Provimento 11 não impõe óbice à propositura de ação antes de utilização da conciliação e mediação pré-processual. No entanto, é de se esperar que ganhe força um encaminhamento necessário a meios autocompositivos antes de se deflagrar uma ação judicial, avançando assim na percepção do interesse processual à luz do acesso qualificado à Justiça.

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