Opinião

A atuação no flagrante: a prisão determinada pelo juiz

Autores

  • Ivana David

    é desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo integrante da Coordenadoria Criminal e de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça e professora do MeuCurso Cers ESA Campinas Associação dos Magistrados Brasileiros Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Associação Paulista de Magistrados Escola Paulista da Magistratura Escola da Magistratura do Estado de Rondônia Escola Superior da Magistratura do Espírito Santo e Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

  • Anelise Nogueira Reginato

    é juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Maranhão.

30 de agosto de 2020, 7h11

O Código de Processo Penal, na sua redação original, previa o seguinte:

"Artigo 310 — Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do artigo 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação".

Queria o legislador dizer que a regra era a manutenção da prisão em flagrante, desde que: I) o crime não tivesse sido cometido sob nenhuma das excludentes de antijuridicidade [1]; e II) não houvesse pedido de liberdade feito pelo Ministério Público.

Na vigência dessa redação original, se discutia, também, se o juiz podia agir de ofício para conceder a liberdade provisória ou se, mesmo sem pedido ou contrariamente a ele, o juiz podia soltar o réu. Mas não é este o propósito deste breve escrito. A dúvida a ser dirimida é outra.

Há pouco menos de dez anos, a Lei nº 12.403/2011 alterou o artigo 310 do Código de Processo Penal para dispor o seguinte:

"Artigo 310 — Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:

I — relaxar a prisão ilegal; ou

II — converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do artigo 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

III — conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do artigo 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação".

Embora muitos defendam que a partir da Lei nº 12.403/2011 a regra passou a ser a colocação em liberdade da pessoa presa em flagrante (e este também não é o mote deste escrito), entendo que o legislador apenas imputou um dever ao magistrado, qual seja o de, ao receber o auto de prisão em flagrante, fundamentadamente (como toda decisão deve ser, conforme o artigo 93, IX, CF), tomar umas das três decisões seguintes: relaxar a prisão ilegal, converter a prisão em flagrante em preventiva ou conceder liberdade provisória.

O que antes da Lei nº 12.403/2011 era o caput do artigo 310 do Código de Processo Penal na sua redação original, passou a ser o parágrafo único, retirando-se, apenas, a necessidade de oitiva do Ministério Público, fato este que ratifica que, desde a redação original do Código de Processo Penal, o juiz podia decidir de ofício nos casos de flagrante.

Pois bem.

Veja-se que, além da mudança quanto à necessidade da realização da audiência de custódia, que será tratada mais adiante, a Lei nº 13.964/2019, chamada de pacote "anticrime", não mudou nada em relação à atuação do juiz quanto à possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva independentemente de manifestação do Ministério Público. Aliás, mais que uma possibilidade, há que se falar em dever quando os requisitos estiverem presentes e esse é o objeto principal deste trabalho.

Como já disse, de acordo com a Lei nº 12.403/2011, a obrigação do juiz que até hoje se mantém é a de, ao receber o auto de prisão em flagrante, analisar se estão presentes os requisitos materiais e formais do flagrante e: I) relaxar a prisão ilegal; II) converter a prisão em flagrante em preventiva; ou III) conceder liberdade provisória.

A primeira hipótese ocorre se não se fizerem presentes quaisquer daqueles requisitos materiais ou formais; a segunda e terceira hipóteses poderão ocorrer quando o flagrante for homologado porque, necessariamente, estarão presentes esses requisitos.

Com relação à segunda hipótese, de conversão, objeto deste escrito, é necessário de observar que a lei não prevê, em nenhum momento, a atuação do Ministério Público. Explicamos.

O Código de Processo Penal disciplina a prisão em flagrante nos artigos 301 a 310 do Código de Processo Penal, e em nenhum desses artigos há a previsão de que, para que seja aplicado o inciso II do artigo 310, haja a atuação do Ministério Público.

Poderiam alguns argumentar que o inciso II do artigo 310 do Código de Processo Penal prevê que para a conversão da prisão em preventiva, devem estar "presentes os requisitos constantes do artigo 312 (do) Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão".

Ocorre que o artigo 312 do Código de Processo Penal previa, sob a égide da Lei nº 12.403/2011 que "a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria" e, após o pacote "anticrime", passou a prever que "a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado".

Veja-se que apenas foi acrescentado o requisito do "perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado".

Nada além disso há no artigo 312 do Código de Processo Penal, nem antes do pacote "anticrime", nem depois.

Os mais afoitos podem justificar que o pacote "anticrime" retirou da redação do artigo 311 do Código de Processo Penal a expressão "de ofício", cunhada na redação original e nas reformas trazidas pelas Leis nos 5.349/1967 e 12.403/2011, para prever que "em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial", mas esquecem-se de que o inciso II do artigo 310 faz referência exclusiva aos "requisitos constantes do artigo 312", não se referindo em nenhum momento ao artigo 311.

Além disso, o artigo 311 diz respeito apenas e tão somente à decretação da prisão preventiva, e não à conversão da prisão de flagrante em preventiva, sendo essas duas situações diversas, como será demonstrado a seguir.

O artigo 301 do Código de Processo Penal é bem claro ao prever que "qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito". Tais pessoas são as que decretam o flagrante, e não o juiz.

Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz, apenas, deve, fundamentadamente, relaxar a prisão, se ela for ilegal; converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do artigo 312 do Código de Processo Penal e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Isso tanto antes como depois do pacote "anticrime".

Não se está falando de decretação, mas, sim, da obrigatoriedade de conversão, ou seja, o juiz deve transformar em preventiva uma prisão legal, que já existia em razão do flagrante. Quando? Quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (e, depois do pacote anticrime, de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado). Com qual fundamento? Como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Em outras palavras: sendo legal a prisão, havendo prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (fumus commissi delicti) e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado (periculum libertatis), o juiz deve converter a prisão em preventiva como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Mais uma vez os afoitos podem argumentar que o pacote "anticrime" inseriu no artigo 310 a audiência de custódia e a previsão de que ela deve ser realizada no prazo de até 24 horas com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público:

"Artigo 310  Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente."

Ora, em que parte dessa redação há a previsão de que a conversão em prisão depende de requerimento do Ministério Público? A resposta é: em nenhuma.

Mas uma vez é importante ressaltar que há diferença não só semântica, como também técnica, entre converter a prisão em flagrante em preventiva e decretar a prisão preventiva. Tanto é assim que a Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas, prevê que na audiência de custódia o juiz entrevistará a pessoa flagranteada e, após essa oitiva, permitirá ao Ministério Público que ele requeira, entre outros pedidos previstos, a decretação de prisão preventiva. Veja-se:

"Artigo 8º — Na audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo:

§1º. Após a oitiva da pessoa presa em flagrante delito, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, nesta ordem, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação, permitindo-lhes, em seguida, requerer:

I o relaxamento da prisão em flagrante;

II a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;

III a decretação de prisão preventiva;

IV a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa".

Não há, todavia, nessa resolução, também, qualquer regra que condicione a conversão da prisão, prevista no Código de Processo Penal, a pedido do Ministério Público.

Entendimento contrário levaria, inclusive, à conclusão de que o "requerimento" do Ministério Público contém, implícita, uma ordem que deve ser acolhida pelo juiz e, obviamente, não é esse o espírito da lei, vez que, no processo penal, o Ministério Público é parte e, portanto, não vincula o juiz, que tem independência para aplicar a lei.

Mas não é só.

Outro dispositivo trazido pelo pacote "anticrime" que, nesse caso, não distinguiria conversão de decretação que ratifica a possibilidade da "decretação" da prisão de ofício é o § 4º do artigo 310 que, atualmente, está com a aplicação suspensa por decisão do ministro Luiz Fux, proferida na Medida Cautelar na ADI nº 6.298, em 22/1/2020.

Esse dispositivo prevê o seguinte:

"§4º. Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".

É necessário, aqui, a leitura do caput do artigo 310 e desse paragrafo reproduzido acima para perceber que o próprio pacote anticrime permite a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz.

Pois bem. O caput do artigo 310 prevê que a audiência de custódia será promovida pelo juiz, no prazo máximo de até 24 horas após a realização da prisão, com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público.

O paragrafo 4º, por sua vez, que está com a aplicação suspensa, prevê que a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea implica em ilegalidade da prisão, que deve ser relaxada, "sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".

Ora! Não é na audiência de custódia, prevista no caput do artigo 310, que deve haver a "presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público"? Se não houver a audiência de custódia, não há que se falar em presença do membro do Ministério Público e, sem a presença dele, não há pedido.

É importante observar que não há qualquer procedimento previsto pelo Código de Processo Penal no sentido de que os autos sejam remetidos ao Ministério Público em caso de não ser realizada a audiência de custódia!

Aliás, como sempre defendi, desde a Lei nº 12.403/2011, retirou-se do Ministério Público qualquer tipo de participação dele na análise do flagrante por absoluta falta de previsão legal, tendo ele sido reinserido, apenas, agora, com o pacote anticrime, mas com a oportunidade de, querendo, requerer a decretação da prisão, sem retirar do magistrado a obrigatoriedade de converter a prisão quando os requisitos estiverem presentes.

Nesse sentido, é oportuno citar que a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 581.811/MG, julgado em 4/8/2020, decidiu que "da leitura do artigo 310, II, do CPP, observa-se que cabe ao Magistrado, ao receber o auto de prisão em flagrante, proceder a sua conversão em prisão preventiva, independentemente de provocação do Ministério Público ou da Autoridade Policial, desde que presentes os requisitos do artigo 312 do CPP, exatamente como se verificou na hipótese dos autos, não havendo falar em nulidade quanto ao ponto".

Nesse julgado, o relator ministro Joel Ilan Paciornik cita como precedentes o RHC 120.281/RO (Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, DJe 15/5/2020), o RHC 121.791/RS (Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo – Desembargador convocado do TJPE, 5ª Turma, DJe 28/2/2020) e o HC 538.649/MG (Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, DJe 28/11/2019).

Da ementa desse último Habeas Corpus, destaco o seguinte, com negritos meus:

"O Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a conversão da prisão em flagrante em custódia preventiva pelo Juízo monocrático, independentemente de representação da autoridade policial ou do Ministério Público, encontra respaldo no artigo 310, II, do Código de Processo Penal" (RHC n. 79.655/MG, relator Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 4/4/2017, DJe 17/4/2017).

A conclusão é, portanto, que, após receber o auto de prisão em flagrante, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, o juiz deverá converter a prisão em flagrante em preventiva, se se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, independentemente de requerimento do Ministério Público.

 


[1] Tratada no Código Penal como excludentes de criminalidade, na sua redação original, e como excludentes de ilicitude, após a Reforma de 1984

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