Opinião

Dever alimentar, paternidade responsável e retroatividade à concepção

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30 de agosto de 2020, 17h23

Muitas vezes, melhor que imediatamente seguir adiante é revisitar, revisar, corrigir, para, em seguida, continuar caminhando [1].

Por tal razão, três premissas são cruciais para o substrato e deslinde do presente: teoria concepcionista; eficácia declaratória da sentença que reconhece a paternidade e seus deveres que dai exsurgem, como os alimentos em sentido amplo e a adequação do marco (termo) inicial da verba alimentar, sobretudo, interpretado a partir da Constituição Federal e da lei de alimentos gravídicos (sem descurar, é claro, da superação, para os casos apontados no presente, da lei 5.478/68).

Pois bem.

Sabe-se que a doutrina divide o início dos direitos da personalidade civil em três: natalista, personalidade condicional e concepcionista.

Sem delongas, curvando-se a terceira, com a concepção [2] [3] [4] [5] agrupa-se o termo inicial do dever alimentar.

Dessarte, para aclarar o tema, ainda que tratando de matéria diversa, em seu r. julgamento, lúcida e didaticamente, bem explanou o ministro Luis Felipe Salomão do Superior Tribunal de Justiça:

"DIREITO CIVIL. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. ABORTO. AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO OBRIGATÓRIO. DPVAT. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO NASCITURO. ART. 2º DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. EXEGESE SISTEMÁTICA. ORDENAMENTO JURÍDICO QUE ACENTUA A CONDIÇÃO DE PESSOA DO NASCITURO. VIDA INTRAUTERINA. PERECIMENTO. INDENIZAÇÃO DEVIDA .ART. 3º, INCISO I, DA LEI N. 6.194/1974. INCIDÊNCIA. 1. A despeito da literalidade do artigo 2º do Código Civil – que condiciona a aquisição de personalidade jurídica ao nascimento -, o ordenamento jurídico pátrio aponta sinais de que não há essa indissolúvel vinculação entre o nascimento com vida e o conceito de pessoa, de personalidade jurídica e de titularização de direitos, como pode aparentar a leitura mais simplificada da lei. 2. Entre outros, registram-se como indicativos de que o direito brasileiro confere ao nascituro a condição de pessoa, titular de direitos: exegese sistemática dos arts. 1º, 2º, 6º e 45, caput, do Código Civil; direito do nascituro de receber doação, herança e de ser curatelado (arts. 542, 1.779 e 1.798 do Código Civil); a especial proteção conferida à gestante, assegurando-se-lhe atendimento pré-natal (artigo 8º do ECA, o qual, ao fim e ao cabo, visa a garantir o direito à vida e à saúde do nascituro); alimentos gravídicos, cuja titularidade é, na verdade, do nascituro e não da mãe (Lei n. 11.804/2008); (…) 3. As teorias mais restritivas dos direitos do nascituro – natalista e da personalidade condicional – fincam raízes na ordem jurídica superada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002. O paradigma no qual foram edificadas transitava, essencialmente, dentro da órbita dos direitos patrimoniais. Porém, atualmente isso não mais se sustenta. Reconhecem-se, corriqueiramente, amplos catálogos de direitos não patrimoniais ou de bens imateriais da pessoa – como a honra, o nome, imagem, integridade moral e psíquica, entre outros. 4. Ademais, hoje, mesmo que se adote qualquer das outras duas teorias restritivas, há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante. Garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. 5. Portanto, é procedente o pedido de indenização referente ao seguro DPVAT, com base no que dispõe o artigo 3º da Lei n. 6.194/1974. Se o preceito legal garante indenização por morte, o aborto causado pelo acidente subsume-se à perfeição ao comando normativo, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina.6. Recurso especial provido". (REsp 1415727/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 29/09/2014).

E, além do bem explicado no citado julgado, arremata Nelson Rosenvald [6]:

"De fato, é induvidoso o reconhecimento do nascituro dos direitos necessários para que venha a nascer vivo (direito da personalidade), enfim dos direitos ligados à sua condição essencial para adquirir personalidade, tais como o direito a reclamar alimentos, à assistência pré-natal e à indenização por eventuais danos causados pela violação da sua imagem (…)."

Aqui uma ressalva, não se está a estabelecer ou revisitar as divergências doutrinárias quanto à legitimidade de quem deverá cobrá-los (alimentos), mas, sim, tão somente, sob a ótica do devedor: genitor.

E, neste passo, a Constituição Federal é clarividente ao apontar para o princípio valor da paternidade (em sentido amplo) responsável.

A propósito, cite-se o artigo 226 da norma fundamental em seu sétimo parágrafo:

"Artigo 226  A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.(…). § 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas".

Sublinha-se, portanto, que o fio de condução da paternidade é, entre outros, guiado pela estrita e necessária responsabilidade.

E mais, como trata-se de conceito (responsabilidade) de curial relevância, e, analisado sob a vertente de um dos direitos basilares à dignidade da pessoa humana, qual seja, alimento, torna-se, ainda, muito mais sensível e cogente sua, escorreita, aplicação.

Tanto é assim que o Código Civil, nutrindo-se da paternidade responsável, elencou diversos deveres cabíveis aos genitores sendo que, para fins deste estudo, destaca-se o mencionado no inciso IV [7] do artigo 1566: dever de sustento.

Na mesma esteira, vem há muito apontando em tal trilha a doutrinadora Maria Berenice Dias [8], a saber:

"Os encargos do poder familiar surgem quando da concepção do filho, eis que a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (CC, artigo 4º). Ora, com o nascimento, mesmo antes de o pai proceder ao registro do filho, está por demais consciente de todos os deveres inerentes ao dever familiar, entre os quais o de assegurar-lhe o sustento e a educação. (…)

Em se tratando de obrigação decorrente do poder familiar, é inequívoca a ciência do réu do direito reclamado pelo autor. Portanto, não há por que constituir o devedor em mora pelo ato citatório para lhe impor o adimplemento da obrigação alimentar (CPC, artigo 219). A mora constituiu-se quando deixa o pai de prover o sustento do filho. Assim, na ação mister que reste provado o parentesco, os ganhos do genitor bem como o momento em que ele deixou de adimplir a obrigação de prover o sustento do filho. Por ocasião da sentença, o juiz fixará os alimentos indicando o termo inicial de sua vigência: aquém da data da citação e aquém da data da propositura da ação. O dies a quo será o momento em que houve a cessação do adimplemento do dever de sustento que decorre do poder familiar. Este é o marco inicial da obrigação alimentar'.

Ocorre que, noutra ponta, consolidou-se na doutrina e jurisprudência [9] pátrias a retroatividade da verba (dever) alimentar a partir da citação, [10] muito baseando-se em lei, cronologicamente, muito anterior a Constituição Federal lei de 1968 (nº 5.478) —, mais precisamente, no parágrafo 2ª do artigo 13 [11]:

 "Artigo 13  O disposto nesta lei aplica-se igualmente, no que couber, às ações ordinárias de desquite, nulidade e anulação de casamento, à revisão de sentenças proferidas em pedidos de alimentos e respectivas execuções. (…) §2º. Em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação".

Não obstante, com o advento da Lei de Alimentos Gravídicos (Lei nº 11.804/08), erigiu-se coro ao apontado neste excerto, e, alinhando-se, assim, ao comando constitucional, a legislação pátria passou a admitir, expressamente, a possibilidade da retroatividade dos alimentos à concepção.

Na mesma trilha apontam os doutrinadores Nelson Rosenvald [12] e Ana Cecília Rosário Ribeiro [13].

Aliás, tal vertente [14] é estabelecida no caput artigo 2º da Lei nº 11.804/08 ao dispor:

"Artigo 2º  Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes". (grifo do autor)

Se não bastasse, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [15], em recente julgado, entendeu como termo inicial correto da pensão por morte (por ser verba alimentar e, assim, de propriedade vital ao ser humano), como sendo o nascimento (REsp 1779441/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado em 20/08/2019).

Ou seja, sendo o alimento essencial/vital ao sadio desenvolvimento do ser humano, outro norte não há que sua retroatividade nas ações alimentares, sobretudo na declaratória [16] de paternidade, à concepção ou, subsidiariamente, ao nascimento.

Não é, respeitosamente, crível, portanto, diante dos recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça que o dever alimentar alcance o devedor (em franco prejuízo ao credor que dela sempre necessitou inclusive presumidamente) na data da citação na ação judicial, eis que o dever alimentar, como delineado antes, surge, desde sempre (no mundo dos fatos e, assim, muito anteriormente à propositura da demanda), mais precisamente, desde a concepção (nesta hipótese, iniciando-se com os alimentos gravídicos).

Em suma, há de consolidar a realidade dos fatos ao mundo jurídico.

Desse modo, v.g. declarando-se em juízo a paternidade que, por seu turno, inicia-se desde a concepção, não sendo possível, com isso, perpassar qualquer período de "suspensão" do dever alimentar, inclusive, à citação que pode ocorrer anos depois.

Desfechando, o dever jurídico (alimentar) compassa-se com o mundo fático, doutrina e recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça: concepção como marco inicial de aquisição dos direitos da personalidade (sobretudo, em sua vitalidade: alimentos).

 


[1] Pois o § 2° do artigo 927 do CPC de 2015 expressamente prevê a possibilidade de “alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula”. E não poderia mesmo ser diferente. O fato de se ter identificado uma linha de jurisprudência constante não pode ser um empecilho à evolução do Direito, sendo perfeitamente possível que a tese jurídica consolidada em um enunciado de súmula venha a ser posteriormente superada. A Nova Aplicação da Jurisprudência e Precedentes no Código de Processo Civil/2015 – Ed. 2017. Autor:Vários Autores. Editor:Revista dos Tribunais. 3. 3 SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA SUMULADA E MODULAÇÃO DE EFEITOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/124341020/v1/document/126627871/anchor/a-126627871.

[2] Código Civil. Artigo 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

[3] “Vale Ressaltar que algumas legislações adotam regras diferenciadas, exigindo requisitos outros para a aquisição da personalidade. Na França e na Holanda, exigi-se que o nascido seja viável. (…). Já na Espanha, além de ser necessária a forma humana, estabelece o artigo 30 do Código Civil Espanhol que deve permanecer vivo ao menos, 24 horas. Como se pode notar, a legislação brasileira, ao conferir qualidade da pessoa ao ser humano nascido com vida, independentemente de outras exigências, respeita, com mais amplitude, a sua essencial dignidade.” FARIAS. Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald. Curso de Direito Civil volume 1. 14ª Ed. São Paulo. Ed. Jus Podivm. Pag. 307.

[4] Almeida, Silmara Juny A. Chinelato e Tutela civil do Nascituro, p. 175. São Paulo. Ed. Saraíva. 2000.

[5] O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum (STJ – Resp. 399.028/SP, Rel. Min, Sálvio de Figueiredo, j. 26.02.02).

[6] Op. cit. pag. 311.

[7] "Artigo 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: (…) IV – sustento, guarda e educação dos filhos."

[8] Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/33102/termo-inicial-da-obrigacao-alimentar-na-acao-de-alimentos-e-investigatoria-de-paternidade. Acessado em 20 de julho de 2020.

[9] (REsp 160.152/MG, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 08/02/2000, DJ 02/05/2000, p. 144)

[10] Levando-se, mormente, em consideração para tal desiderato o como sendo este o momento em que o genitor começaria a ter ciência da, pretensa, paternidade e a definitividade da verba em sentença.

[11] Um dos supedâneos, inclusive, da r. Súmula nº 277 do STJ “Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação.”

[12] Op. cit. pag. 312.

[13] RIBEIRO. Ana Cecília Rosário. Alimentos para o nascituro: tutela do direito à vida. Curitiba. Ed. Juruá. Pag. 171.

[14] Do mesmo modo encontram-se julgados no mesmo toar no Superior Tribunal de Justiça nos julgados REsp 1.170.239 e Ag n. 1268980/PR.

[15] No mesmo sentido no Superior Tribunal de Justiça: REsp 1.588.448, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 27.5.2016; REsp 1.769.353,Rel. Min. Mauro Campbell Marques DJe 29.10.2018, REsp 1.354.689/PB, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 11.3.2014 REsp 1.346.781, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe 17.10.2016; REsp 1.571.403, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 9.9.2016; REsp 1.447.137, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe 23.8.2016

[16] “Assim, a ação denominada “investigação de paternidade/maternidade”, por vínculo biológico ou por afetividade, por exemplo, tem natureza jurídica de ação declaratória de filiação, pois declara a existência de relação de parentesco em linha reta (de pai/mãe e filho), ainda que ajuizada contra os herdeiros do(a) indigitado(a) pai ou mãe, declarando a existência de filiação e, portanto, o estado familiar das partes, de filho, de pai ou de mãe. Igualmente, a ação negatória de paternidade/maternidade tem natureza jurídica de ação declaratória negativa, para ver cessada filiação atribuída a alguém, sem causa que a justifique. Alimentos – Ed. 2020.” Autor:Rosa Maria de Andrade Nery. Editor:Revista dos Tribunais. 16. DIREITO DE ALIMENTOS E PROCESSO CIVIL. Página RB-16.1. https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/167016823/v2/page/RB-16.1.

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