Opinião

Registros civis: a inconstitucionalidade da Lei nº 9.534/97

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29 de agosto de 2020, 12h55

O inciso LXXVI do artigo 5º da Constituição Federal estabelece a gratuidade do registro civil de nascimento e da certidão de óbito aos reconhecidamente pobres na forma da lei. E a Lei nº 7.844/1989 alterou o artigo 30 da Lei nº 6.015/1973, passando a dispor que são gratuitos o registro civil de nascimento, o assento de óbito e a primeira certidão respectiva.

Já a Lei nº 9.534/1997 alterou o artigo 30 da referida Lei nº 6.015/1973 e o artigo 45 da Lei nº 8.935/1994 e acrescentou o inciso VI ao artigo 1º da Lei nº 9.265/1996, "universalizando" a gratuidade de emolumentos pelo "registro civil de nascimento e pelo assento de óbito, bem como pela primeira certidão respectiva" para qualquer pessoa, independentemente de sua condição econômico-financeira, e isentou os reconhecidamente pobres do "pagamento de emolumentos pelas demais certidões extraídas pelo cartório de registro civil".

A ampliação das aludidas gratuidades foi engendrada a partir do inciso LXXVII do artigo 5º da Constituição Federal, o qual dispõe que são gratuitos os "atos necessários ao exercício da cidadania".

A Lei nº 9.534/1997 acrescentou o inciso VI ao artigo 1º da Lei nº 9.265/1996, estabelecendo que o registro civil de nascimento, o assento de óbito e a primeira certidão respectiva são atos necessários ao exercício da cidadania, logo gratuitos.

A Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei nº 9.534/1997, sob os seguintes argumentos, conforme bem sintetizou o Ministro Nelson Jobim no julgamento da medida cautelar na ADI 1800 [1]:

"a) '… na aniquilação injustificada do direito do serventuário à percepção dos emolumentos previstos no artigo 236, § 2º, da Constituição Federal' (fls. 26);

b) na criação de '… hipótese perversa de requisição de serviço…’ (fls. 20);

c) em expropriação de renda; e

d) viola o devido processo legal".

O procurador-geral da República, por sua vez, ajuizou ação direta para que fosse declarada a constitucionalidade dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei nº 9.534/1997.

Em 2007, o STF julgou procedente a ADC 5 e improcedente a ADI 1800 sob os seguintes fundamentos:

"I) Não há direito constitucional à percepção de emolumentos por todos os atos que o delegado do poder público pratica;

II) Não há, por consequência, obrigação constitucional do Estado de instituir emolumentos para todos esses serviços; e

III) Há, isto sim, o direito do serventuário em perceber, de forma integral, a totalidade dos emolumentos relativos aos serviços para os quais tenham sido fixados emolumentos".

Conclui-se, nesse ponto, que a questão da (in)constitucionalidade das gratuidades instituídas pela Lei nº 9.534/1997 não foi apreciada sob a óptica do pacto federativo e da vedação às isenções heterônomas.

Apesar de prevalecer o entendimento de que não cabe o reexame de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal declarado constitucional em controle concentrado (ADI e ADC) [2], o próprio STF já decidiu que, alteradas as circunstâncias fáticas, admite-se a rediscussão da (in)constitucionalidade da norma [3].

Logo, tendo em vista a alteração fática em relação à diminuição das receitas e o aumento da carga tributária (p. ex., LC 116/2003 e ADI 3089) e outros custos [4] sobre os serviços notariais e de registros, bem como a inviabilidade econômica de muitos cartórios de registo civil das pessoas naturais, a (in)constitucionalidade da Lei nº 9.534/1997 pode ser objeto de nova ação de controle concentrado perante o STF, mormente quanto aos fundamentos constitucionais, a seguir, que não foram expressamente apreciados na ADC 5 e na ADI 1800.

O §2º do artigo 236 da Constituição Federal dispõe que "lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro", contudo, compete aos Estados e ao Distrito Federal [5] instituir os emolumentos e o seu valor.

Todavia, o STF já decidiu em diversas oportunidades que os emolumentos têm natureza de taxa e são um tributo estadual. Confira-se, por todos:

"Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei nº 174/1994 do Estado do Amapá. Isenção de emolumentos. Natureza tributária de 'taxa'. Tributo estadual. 3. Alegação de ofensa ao artigo 22, XXV, da Constituição Federal. Inocorrência. Diploma normativo que concede isenção de emolumentos não ofende competência privativa da União para legislar sobre registros públicos. 4. Ação direta julgada improcedente". (ADI 1148, Relator: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 2/9/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-239).

Assim, tendo em vista que os emolumentos têm natureza jurídica de taxa e que são de competência dos Estados e do Distrito Federal, poderia a Lei nº 9.534/1997 instituir gratuidade de emolumentos/taxas?

Segundo o inciso II do artigo 146 da Constituição Federal, cabe a lei complementar "regular as limitações constitucionais ao poder de tributar", enquanto o inciso III do mesmo dispositivo constitucional dispõe que também cabe a lei complementar "estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária".

Ocorre que a Lei nº 9.534/1997 é uma lei ordinária e jamais poderia regular as limitações gerais ao poder de tributar ou estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. Portanto, a mencionada Lei nº 9.534/1997 é formalmente inconstitucional, pois veiculou matéria privativa de lei complementar.

Ademais, ainda que não fosse a inconstitucionalidade formal, a Lei nº 9.534/1997 também padece de inconstitucionalidade material, pois, em violação ao pacto federativo, instituiu isenção heterônoma, prática expressamente vedada no inciso III do artigo 151 da Constituição Federal, porquanto, como já afirmado, os emolumentos têm natureza de taxas e são tributos de competência estadual.

 


[1] ADI 1800 MC, Relator(a): NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/1998.

[2] EMENTA: – Agravo regimental. – O STF, ao julgar a ADIN 958, declarou constitucional o "caput" do artigo 5. da Lei 8.713/93, decisão essa que tem eficácia "erga omnes", sendo insusceptível, portanto, de reexame, inclusive pelo próprio STF. – Questão relativa a publicação de editais e matéria processual infraconstitucional, sendo certo que a simples ofensa reflexa a Constituição não da margem a recurso extraordinário. Agravo regimental a que se nega provimento.

AI 163740 AgR, Relator(a): MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 04/10/1994, DJ 04-08-1995 PP-22508 EMENT VOL-01794-16 PP-03407.

[3]Daí parecer-nos plenamente legítimo que se suscite perante o STF a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional, em ação direta ou em ação declaratória de constitucionalidade. Nesse sentido, o STF reconhece expressamente a possibilidade de alteração da coisa julgada provocada por mudança nas circunstâncias fáticas (v.g., RE 105.012, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 1º-7-1988). Trata-se de uma consequência lógica da admissibilidade da (re)discussão da (in)constitucionalidade. Fundamentalmente, é uma questão hermenêutica.” – MENDES, Gilmar Ferreira e STRECK, Lênio in Comentários à Constituição do Brasil / J. J. Gomes Canotilho…[ et al.]; P. 2.670.

[4] Por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro foram o FUNPERJ e o FUNDPERJ, respectivamente em 2005 (Lei Estadual nº 4664/2005) e 2006 (Lei Complementar Estadual nº 111/2006).

[5] Lei Federal nº 10.169/2000

"Artigo 1º – Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei".

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