Diário de Classe

Por que devemos abandonar o "livre convencimento motivado" do juiz?

Autores

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo DASEIN — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Ziel Ferreira Lopes

    é coordenador do curso de Direito da Unifan professor da Univasf e Facape doutor e mestre em Direito pela Unisinos e membro do Dasein.

29 de agosto de 2020, 8h00

Introdução
O termo “livre convencimento motivado” (LCM) foi largamente utilizado no Brasil para designar o modo pelo qual os juízes valoram a prova e decidem os casos. Sua hegemonia era tanta que foi positivado em diferentes códigos processuais. Contudo, nos últimos anos a discricionariedade judicial passou a ser vista como um dos problemas centrais em nosso direito. Para enfrentá-la, cogitaram-se mudanças em diferentes áreas, incluindo uma discussão sobre o LCM e como ele era entendido na prática jurídica.

O ponto culminante desse processo veio com a elaboração de um novo Código de Processo Civil em 2015, no qual – apesar das discordâncias – muitos juristas se mobilizaram para democratizar o processo judicial, aprimorando mecanismos de participação e de fundamentação das decisões. Nesse sentido, foi sugerido o abandono do LCM pelo professor Lenio Streck[1], principal crítico do instituto. A sugestão foi acatada por outros juristas e pelos legisladores, que alteraram a redação do CPC/73 nesse ponto[2].

Apesar disso, alguns juristas insistiram que nada havia mudado com essa nova redação, e que o LCM continuava a designar um sistema vigente no processo civil brasileiro. Algumas respostas foram publicadas, trazendo argumentos contrários a essa tese[3]. Mesmo assim, defensores do LCM têm reiniciado o debate de tempos em tempos, alegando incompreensões desse instituto.

Recentemente, novos textos voltaram a ser publicados defendendo que o LCM, se for bem lido, seria compatível como a proposta de seus críticos[4]. Embora discordemos dos argumentos em defesa do LCM, conforme explicaremos mais à frente, registramos desde já nosso elogio pela atitude de alguns autores ao apresentá-los[5]. Com grande frequência, a defesa do LCM tem sido marcada por um dogmatismo que não reconhece a seriedade das críticas que lhe são feitas, nem procura dialogar com elas. Pior do que isso, muitas vezes essas críticas são recebidas como um ataque à magistratura, transformando uma preocupação democrática com o exercício do poder estatal numa espécie de questão corporativa. Ao desviar-se desse caminho e colocar o debate de modo produtivo, nossos interlocutores nos dão a oportunidade de trazer esclarecimentos sobre o LCM e oferecermos nossos argumentos contrários a ele, para quem se dispuser a refletir sobre o tema.

A hipótese que levantamos é que uma conciliação entre defensores e críticos do instituto não pode ser alcançada, não por má vontade ou preciosismo de nossa parte, mas porque existem problemas fundamentais com o LCM que recomendam seu total abandono.

Problemas do “livre convencimento motivado”
Antes de tudo, deve-se deixar claro que o debate sobre o LCM não é uma mera questão terminológica. Ele atravessa questões fundamentais sobre os poderes e deveres do juiz, o modo como se decide, além de influenciar a leitura de uma série de institutos processuais correlatos. Passamos a discorrer sobre seus problemas centrais.

a) Problemas jusfilosóficos
Frequentemente se diz que o LCM não deve ser confundido com o velho sistema da “íntima convicção do juiz”. O LCM não defenderia a subjetividade plena do juiz ao valorar a prova. Seria apenas uma alternativa menos “engessada” ao sistema da “prova tarifada”, pelo qual os critérios de valoração de cada tipo de prova estariam minunciosamente adiantados em lei. Com base nisso, tenta-se vender o LCM como uma espécie de meio-termo ao qual todos os juristas sensatos deveriam aderir.

O caso é que conceitos dogmáticos nem sempre captam toda a complexidade do debate jurídico. Nas últimas décadas, formou-se uma forte crítica na teoria do direito à discricionariedade judicial, inclusive à ideia de que os juízes são livres para fazer suas valorações quando não há regras claras e o direito entra numa certa zona de penumbra. Para Ronald Dworkin, mesmo nesses casos, os juízes não seriam propriamente livres para decidir. Existiriam padrões normativos mais complexos do que as regras, que emergem da interpretação do todo coerente do direito, e que atuam mesmo nos casos mais difíceis, constrangendo a tomada de decisão.

É verdade que a conceituação dos princípios gerou imensos debates teóricos e está longe de ser consensual. Ainda assim, é difícil encontrar um jurista que celebre a discricionariedade judicial, sabendo que isso leva a uma falta de controle racional das decisões.

No Brasil, a partir da tradição hermenêutica que remonta a Heidegger e Gadamer, Streck formulou uma crítica ao LCM, apontando a existência de elementos interpretativos que fundamentam a decisão, talhando o sentido da norma no caso concreto, sem que isso signifique uma “robotização” do juiz ou um retorno a uma concepção ingênua de objetivismo. Imaginar que o sistema jurídico é apenas o limite dentro do qual o juiz pode resolver o caso conforme seu convencimento é confundir os conceitos de decisão e escolha, que Streck vem diferenciando a partir de Heinrich Rombach. Aqui não há liberdade, e sim “constrangimento epistêmico”.

Seria anti-hermenêutico dizer que essas questões não têm nada a ver com valoração da prova, separando questão de fato e questão de direito[6]. Ao se traduzir esse debate jusfilosófico para esta área, podemos ver como a ideia do LCM naturaliza uma certa margem de discricionariedade para os juízes, apesar de excluir a total arbitrariedade e o total textualismo dos critérios decisórios.

Veja-se como a dogmática pode esconder mais do que revelar. Existe uma disputa fundamental sobre teorias da decisão que termina sendo soterrada pela manutenção obstinada desse conceito[7]. Vistos em sua dimensão filosófica, os termos “liberdade”, “convencimento” e “motivação” são todos ligados a um paradigma subjetivista e até mesmo psicologista. Coisa parecida pode ser dita a respeito de outro termo usado como equivalente ao LCM, o tal sistema da “persuasão racional” – que hoje em dia chega a soar autocontraditório.

b) Problemas práticos
Engana-se quem pensa que a crítica ao LCM é muito abstrata, e que não tem repercussões concretas relevantes. Essa naturalização de uma margem de discricionariedade judicial pela dogmática se liga a um conjunto de práticas decisionistas, que usam o LCM como um chavão retórico para aumentar os poderes judiciais e diminuir seus deveres de fundamentação.

A redação original do CPC/73 é sintomática:

Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

Isso vinha significando uma institucionalização do “decido primeiro e fundamento depois”[8] ou “decido como quiser desde que indique motivos que formaram meu convencimento”. Na jurisprudência, frequentemente o LCM é invocado por juízes nesse sentido, mesmo depois no CPC/2015, para sustentar um espaço de liberdade decisória insindicável, desde que cumpridas as formalidades. E os tribunais frequentemente invocam o LCM para se abster de discutir a decisão do juiz de primeiro grau, que seria mesmo insindicável desde que cumpridas as formalidades.

É comum notar-se uma confusão entre a independência funcional para exercício da magistratura e o que seria uma espécie de “independência epistêmica” com relação às demais pessoas, para buscar a verdade de modo solitário. Isso levou a que associações de juízes criticassem novos requisitos de fundamentação alegando que, ao controlar os juízes, eles estariam na verdade restringindo o conceito constitucional de fundamentação das sentenças. Há até decisão de tribunais superiores falando num “direito de julgar” dos juízes que não poderia ser cerceado:

[…]em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual o juiz pode julgar dispensável a produção de prova testemunhal, quando as provas carreadas são suficientes para julgamento do feito. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direitode julgar. (STJ, AgRg no REsp 1504544/PB).

Além de tudo, o LCM não deve ser visto como um termo isolado ou um conceito técnico fixado apenas pela doutrina ou legisladores. A pesquisa empírica realizada por Vera Lúcia Teixeira Mendes mostra também as representações dos juízes em torno do LCM. Em várias entrevistas, fica claro como ele se associa profundamente com outras categorias como verdade real, justiça, iniciativa provatória do juiz, processo inquisitivo, etc. Em suma: no discurso dos juízes é comum associar uma necessidade de buscar a “verdade real”, de modo solitário, produzindo suas próprias provas, para formar seu livre convencimento motivado, que tem a ver com seu sentimento de justiça e uma forte carga de subjetividade.

Portanto, deve-se entender o LCM como parte de um emaranhado de institutos, discursos, práticas e aspirações que compõem uma determinada visão sobre a verdade no direito.

c) Problemas históricos
Toda essa prática jurídica não surgiu do nada, estando profundamente ligada com nossa história e com o déficit democrático de nossos arranjos institucionais.

Devemos sempre lembrar como os diferentes Códigos de Processo Civil foram promulgados em períodos autoritários no Brasil. Mais do que isso, nossa história política e jurídica ficou marcada pela sobreposição de regimes autoritários ao Direito, sendo permeada por momentos de rupturas abruptas com o constitucionalismo. Essa situação fez com que a sociedade sofresse uma modernização controlada e imposta de cima para baixo pelos “donos do poder”. A tomada de decisões públicas era orientada por uma mentalidade “demiúrgica”, conduzida por um agente que tentava moldar a sociedade segundo sua convicção. Ao longo desses processos, parcela do Judiciário também se assenhorou de poderes públicos como se fizessem parte do patrimônio pessoal dos juízes.

São essas condicionantes locais que impedem que se defenda o LCM por mera invocação da existência do termo em outros países. Um trabalho de direito comparado nesse sentido precisará levar em conta as diferentes realidades que enformam o instituto.

d) Problemas conceituais
Por fim, cabe enfrentar o último argumento a que alguns recorrem para defender o LCM. Mesmo com todos os problemas denunciados, para alguns seria possível salvar o conceito interpretando-o da melhor maneira, como uma determinação de que os juízes valorem a prova e decidam sem sujeitar-se a coações externas, mantendo sua independência funcional, mas apresentando os fundamentos racionais para sua decisão, que poderão ser rebatidos pelas partes e pelos tribunais. Deste modo, os críticos do LCM seriam injustos e estariam fazendo uma caricatura do instituto. Fernando Gajardoni chegou a afirmar que “o princípio do livre convencimento motivado jamais foi concebido como método de (não) aplicação da lei; como alforria para o juiz julgar o processo como bem entendesse; como se o ordenamento jurídico não fosse o limite”.

Ocorre que, como vimos até aqui, a associação entre LCM e subjetivismo não é uma caricatura inventada por seus críticos. Trata-se de uma visão bem difundida, até mesmo entre seus defensores. Muitos juristas querem mesmo que o instituto signifique o que vem significando na prática. Essa disputa interpretativa pode ser evitada através de uma reformulação conceitual que deixe claro a mudança que pretendemos no sistema. A nosso ver, isso é fazer boa ciência jurídica.

A necessidade de manter o LCM e salvá-lo com uma interpretação sob a melhor luz só existiria se estivéssemos diante de uma cláusula pétrea constitucional. Sendo possível retirá-lo da legislação, como de fato o CPC/2015 fez, os juristas têm a responsabilidade de proceder à reformulação conceitual e lutar para que ela signifique também uma mudança na práxis. Um doutrinador, e mais ainda um legislador, tem a obrigação de formular conceitos da maneira mais precisa possível, deixando claro o que se pretende com eles.

Portanto, a pergunta que se deve fazer é: para quê salvar o LCM? Qual o ganho teórico ou prático em insistir num conceito problemático e que traz uma carga histórica extremamente negativa? Caso existam bons argumentos para manter o LCM, e todo esse sistema atrelado a ele, ficaremos sinceramente felizes em conhecê-los e modificarmos nossa posição. O que não se pode entender é como a doutrina brasileira pode inventar tantos conceitos novos, absolutamente desnecessários e, ao mesmo tempo, insistir em velhos conceitos extremamente problemáticos. É difícil não especular que se trata mais de um critério personalista — uma vontade de não dar o braço a torcer diante de outro doutrinador — do que de uma preocupação científica com o bom debate jurídico[9].

Conclusão
Nessa coluna, defendemos o completo abandono do LCM pelo direito brasileiro. Argumentamos que o instituto apresenta problemas jusfilosóficos, práticos, históricos e conceituais. A partir de tudo o que foi colocado, sugerimos um reagendamento do debate sobre LCM, de modo que seus defensores passem a justificar por quê ele deveria ser salvo, considerando toda a sua carga negativa fartamente comprovada. Por fim, posicionamo-nos pela retirada do LCM de outros textos legislativos, como no novo CPP que tem sido elaborado.


[1] Vejam-se os verbetes 26 e 27 de: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do direito, 2020.

[2] “Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.

[3]Vejam-se os textos de Lúcio Delfino com Ziel Ferreira Lopes e Guilherme Valle Brum.

[4]Veja-se o texto de Iuri Sverzut Bellesini.

[5] Esse nosso resumo não substitui a leitura dos textos originais dos defensores do LCM, aos quais remetemos o leitor para que possa conhecer toda a extensão de suas teses. Buscamos aglutinar várias delas num argumento comum, que tenta salvar o LCM, para apresentar argumentos contrários sem “pessoalizarmos” a discussão.

[6] Brum (nota 4) denuncia bem esse erro.

[7] Para mais detalhes, veja-se trabalho de Lenio Streck, Lúcio Delfino e Ziel Ferreira Lopes.

[8] Denunciado por Streck.

[9] Esse não foi o caso de Bellesini, que sustentou sua posição de modo cortês, argumentado e aberto ao diálogo. O autor reconheceu a importância das críticas ao LCM, mas defendeu que a modificação do CPC/2015 em relação aos CPC/73 não foi “revolucionária”. Nesse ponto, disse concordar com a afirmação de Gajardoni.

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