Opinião

O canto da sereia da Lei de Alienação Parental

Autor

  • Paloma Braga Araújo de Souza

    é advogada professora de Direito Civil conselheira seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Bahia) presidenta da Comissão de Precatórios e membro da Comissão de Direito de Família da OAB-BA membro associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da International Society of Family Law e doutoranda e mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

28 de agosto de 2020, 18h08

No mês em que a Lei n° 12.318/2010, também chamada Lei de Alienação Parental (LAP), completa dez anos de vigência, ecoam mais fortemente os movimentos que buscam a sua revogação. Desde 2018, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado n° 498 com esse propósito.

O tema é sensível e polarizado. De um lado estão profissionais que acreditam que a lei é instrumento para a proteção de crianças contra genitores alienadores e, de outro, encontram-se majoritariamente mulheres, que revelam que a lei acaba por proteger pais abusadores.

Infelizmente, a polarização que tem sido vista socialmente é pouco debatida na academia. Esse texto, nesse sentido, tem a natureza de um ensaio, tal como definido pelo filósofo alemão Adorno: um convite a reflexões que nem sempre implicam respostas.

O conceito de alienação parental foi formulado na década de 80 pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, que defendeu a existência de uma síndrome que acomete crianças e adolescentes filhos de pais separados, quando um dos genitores, notadamente o guardião, faz uma campanha de desconstrução da imagem do outro, inclusive por meio da implantação de falsas memórias.

A partir dessa tese, a LAP foi promulgada aqui no Brasil, com vigência a partir de 26 de agosto de 2010. Referida norma, a pretexto de proteger as crianças dos pais alienadores (ou mães alienadoras), estabelece medidas como inversão da guarda, fixação cautelar de domicílio e até suspensão da autoridade parental.

A recepção da norma à época foi entusiástica. De fato, uma sociedade sadia não deve tolerar que crianças e adolescentes sejam joguetes nas mãos de genitores ressentidos, que desejam apenas e tão somente atingir seus ex-parceiros. A lei, portanto, chegou com toda a sedução do canto das sereias.

Mas para compreender por que a LAP se mostrou um canto da sereia é preciso entender o contexto das ações de divórcio com prole no Brasil. A LAP foi aprovada em 2010. Um ano depois, em 2011, o IBGE apurou que em 87% dos divórcios concedidos no Brasil a guarda das crianças e adolescentes foi delegada às mães — uma queda de apenas 2% em relação ao levantamento feito uma década antes. Ou seja, a lei foi aprovada num contexto — que ainda predomina hoje — de mães guardiãs e, portanto, potenciais alienadoras.

Inclusive, a própria justificativa do projeto de lei consignou trecho de um artigo de autoria de celebrada jurista no qual se reforça o estereótipo da ex-mulher ressentida, que utilizará os filhos para atingir o pobre ex-marido, pai das crianças. É o machismo estrutural que enviesa, inclusive, os olhares femininos [1].

E aqui cabe expor um contradição gritante na sociedade brasileira quanto à figura materna. O Dia das Mães é a terceira data mais importante do comércio brasileiro. Na publicidade, as mães são celestiais, santificadas, heroínas abnegadas em prol dos filhos, a razão de ser de suas vidas. E há uma razão de ser para essa representação. Mães, em sua imensa maioria, realmente se sacrificam para conseguir dar uma vida digna aos filhos. Quando é necessário, são elas que costumam abandonar a carreira para cuidar deles, e também são elas que arcam com a maior parte do trabalho doméstico. Mesmo quando a relação conjugal não se dissolveu, as mães ainda são as principais responsáveis pela criação dos filhos. E daí advêm todas aquelas expressões sobrenaturais como amor de mãe, instinto materno, praga de mãe, bem que minha mãe me avisou etc. Ocorre que quando essa figura sacrossanta, que é a mãe, entra no campo da disputa judicial, ela passa a ser retratada não mais como aquela disposta a tudo pelo bem dos filhos, mas como a ex-mulher vingativa, ressentida, louca, que só quer extorquir o ex-marido e atrapalhar sua vida, sendo, para isso, capaz de usar os filhos da maneira mais vil.

Para entender como essa transmutação se dá, é preciso olhar por quem e para quem se dá cada produção social. Na esfera jurídica, a produção intelectual é construída majoritariamente por homens (brancos e heterossexuais). O Direito é, em si mesmo, arquetipicamente patriarcal e produzido pelo patriarcado para manutenção de seus interesses e privilégios. É preciso mudar essa realidade, em prol da pluralidade democrática prevista na Constituição Federal.

No que diz respeito ao tratamento acadêmico do tema da alienação parental, em uma dissertação de mestrado defendida em 2013 na UNB, Josimar Mendes [2], apresentou uma amostragem de trabalhos acadêmicos sobre a alienação parental. No criterioso levantamento feito pelo autor, dos 18 artigos analisados, publicados entre 2009 e 2013, apenas dois tinham uma postura crítica sobre a tese de Richard Gardner. Ele aponta, ainda, que 83% dos trabalhos se concentraram na área do Direito, demonstrando a judicialização de um fenômeno que seria psico-socio-cultural-relacional. Segundo o pesquisador, a abordagem no campo jurídico se apresentou maniqueísta, cartesiana e positivista. Além disso, os trabalhos acadêmicos sobre o tema não trouxeram dados empíricos ou estudos comparativos. Em resumo, não foram encontradas contribuições nacionais feitas a partir de estudos científicos metodologicamente comprometidos.

Nos Estados Unidos, país de Gardner, o National Council of Juvenile and Family Court Judges, em publicação de 2008 [3], defende que as cortes não devem aceitar depoimentos sobre síndrome de alienação parental, pois a teoria que postula a existência da síndrome da alienação parental (SAP) tem sido desacreditada pela comunidade científica. Eles ressaltam que desde 1999 a Suprema Corte americana decidiu que mesmo depoimentos de especialistas baseados em soft science devem atender ao padrão que requer a aplicação de um teste multifator, incluindo revisão por pares, publicação, testabilidade, taxa de erro e aceitação geral. O trabalho de Gardner não atende a esse padrão. Qualquer testemunho de que uma parte em caso de disputa de guarda sofre com a síndrome ou "alienação parental" deve, portanto, ser julgada inadmissível e prejudicada.

Vale destacar o seguinte trecho do documento, em tradução livre:

"O suposto 'diagnóstico" de SAP (ou uma alegação de 'alienação parental'), além de sua invalidade científica, demanda indevidamente ao órgão julgador que assuma que os comportamentos e atitudes da criança em relação aos pais que afirmam ser 'alienados' não têm fundamento na realidade. Também desvia a atenção dos comportamentos do genitor abusivo, que pode ter influenciado diretamente nas respostas da criança, por agir de forma violenta, desrespeitosa, intimidadora, humilhante ou desacreditadora em relação à própria criança ou ao outro genitor. A tarefa do judiciário é (tentar) distinguir entre situações em que a criança critica um genitor porque foi inadequadamente manipulada pelo outro (tomando cuidado para não confiar apenas em indicações sutis) e situações em que a criança tem suas próprias razões legítimas para crítica ou medo do genitor, o que provavelmente acontecerá quando este perpetrou violência doméstica. Esses motivos não se tornam menos legítimos porque o genitor abusado os compartilha e procura advogar pela criança, expressando sua ou suas preocupações".

No Brasil, entretanto, a maior parte da literatura sobre o assunto tem somente corroborado as ideias de Richard Gardner sem maiores questionamentos. E, considerando as informações estatísticas mencionadas anteriormente, a aplicação da LAP vem sendo feita predominantemente em prejuízo de mulheres. É cediço que o nosso sistema de Justiça não está efetivamente aparelhado para ofertar um tratamento multidisciplinar às demandas de família e nem todas as famílias têm condições de custear uma perícia. Na Bahia, por exemplo, a espera por uma avaliação pelo Serviço de Apoio e Orientação Familiar (SAOF) do TJ-BA chega a demorar mais de 18 meses, o que, na vida de crianças, é um tempo enorme.

Aliado a isso, as disposições da lei que previam a utilização da mediação para a solução do litígio foram vetadas. Assim, o que se vê são respostas judiciais que promovem um acirramento ainda maior no conflito em torno da alienação parental, do que o próprio cuidado e preservação da família ou da criança e adolescentes envolvidos.

É interessante observar, ainda, que embora sejam as mulheres as retratadas como manipuladoras, vingativas e ressentidas, são as mulheres que estão diuturnamente morrendo, vítimas de feminicídio perpetrados por ex-cônjuges e ex-companheiros que não aceitam a separação. Do mesmo modo, a experiência mostra que a LAP se revelou um instrumento de chantagem masculina para manter a mulher sob uma situação de dominação. E pior: tornou-se também arma para silenciamento de eventuais denúncias de abuso físico, psicológico e sexual, perpetuando a espada de Dâmocles que paira sobre as vítimas de violência. Entre o silêncio que permite a manutenção da guarda e algum nível de proteção e a denúncia que pode ser revertida em uma falsa acusação de alienação parental e concessão de guarda para o abusador, qual você escolheria?

Essa má utilização da alienação parental por pais supostamente abusadores, que apresentam denúncias falsas contra a mãe para obter a guarda da criança e continuar com os abusos, não é mera ilação. Fatos como esse foram apurados pela CPI dos Maus Tratos, encerrada em dezembro de 2018, com a decisão de apresentar o projeto para revogar a Lei da Alienação Parental, ainda em tramitação.

É preciso esclarecer, para que não pairem dúvidas, que não se invalida ou se nega a existência de pais e mães que podem ser abusivos nas relações de conjugalidade x parentalidade, transferindo para os filhos dores, mágoas, frustrações. Longe disso. Os seres humanos são dotados de imensa complexidade. Mas o que se gostaria de deixar como reflexão, e não como resposta, é que o Direito não dá conta dessa complexidade. Não pode nem deve ser solução para todos os problemas familiares.

Os conflitos que envolvem abuso psicológico de crianças e adolescentes devem ser tratados por profissionais da psicologia e de outras áreas afins, não por juízes. Na academia, não se pode prescindir da reflexão crítica de fenômenos sociais apropriados pelo Direito. Nas palavras de Josimar Mendes, "é preciso contestar o discurso protetivo que há por trás da alienação parental e evitar os malefícios que patologizam, medicam e criminalizam acontecimentos e situações que são contingentes à situação do pós divórcio. Portanto, que devem ser vistos e interferidos a partir do paradigma da compreensão, do entendimento, da escuta, da reflexão e da mediação".

 


[1] BRASIL. Projeto de Lei da Câmara n° 20, de 2010. Disponível em <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4343168&ts=1594030982180&disposition=inline>. Acesso em 22/8/2020.

[2] MENDES, Josimar Antônio de Alcântara. Reflexões sistêmicas sobre o olhar dos atores jurídicos que atuam nos casos de disputa de guarda envolvendo alienação parental. 2013. xv, 186 f., il. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura) — Universidade de Brasília, Brasília, 2013.

[3] National Council of Juvenile and Family Court Judges. A Judicial Guide to Child Safety in Custody Cases. University of Nevada, 2008. Disponível em: < https://www.ncjfcj.org/wp-content/uploads/2012/02/judicial-guide_0_0.pdf> Acesso em 24/7/2020.

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    é advogada, professora de Direito Civil, conselheira seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Bahia), presidenta da Comissão de Precatórios e membro da Comissão de Direito de Família da OAB-BA, membro associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da International Society of Family Law e doutoranda e mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

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