Direito do Agronegócio

A recuperação judicial do empresário rural

Autores

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

  • Gabriel Fernandes Khayat

    é advogado e mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

28 de agosto de 2020, 8h00

No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 1.800.032/MT, que tratou da aplicação da Lei 11.101/2005 ao empresário rural que não estava inscrito na Junta Comercial pelo biênio anterior à distribuição do pedido de recuperação judicial.

Spacca
Entre os fundamentos utilizados, destaca-se o voto do ministro Raúl Araújo, relator designado do Recurso Especial nº 1.800.032/MT, ao reconhecer que a facultatividade da inscrição do empresário rural na Junta Comercial derivada do artigo 971, do Código Civil, o coloca em situação de permanente regularidade: “o empreendedor rural, inscrito ou não, está sempre em situação regular; não existe situação irregular para este, mesmo ao exercer atividade econômica agrícola antes de sua inscrição, por ser esta facultativa”.

No mesmo sentido, o ministro Luis Felipe Salomão consignou que a qualidade de empresário rural também deve ser verificada de acordo com a Teoria da Empresa, isto é, “diante da comprovação do exercício profissional da atividade econômica rural organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.

Como mencionamos em colunas anteriores, no Tribunal de Justiça de São Paulo, o entendimento majoritário a partir de 2013 também era de que a inscrição do empresário rural no Registro Público de Empresas Mercantis tinha natureza declaratória e com eficácia retroativa, isto é, o registro alcança todo o período em que exerceu a atividade rural com os elementos de empresa.

Deste modo, terão direito à recuperação judicial os empresários rurais que desenvolvam a atividade rural de modo organizado, profissional e voltado ao mercado há mais de dois anos e cuja inscrição na Junta Comercial seja anterior à distribuição do pedido, para fins meramente procedimentais do artigo 51, inciso V, da Lei 11.101/2005.O julgamento do Recurso Especial nº 1.800.032/MT confirmou o entendimento jurisprudencial majoritário do TJ-SP.

Em junho de 2020, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP, deu mais um passo na compreensão da recuperação judicial do empresário rural e destacou que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes antes do registro na Junta Comercial[1]. Diante deste entendimento, anova fronteira a ser debatida é a concursalidade ou não das dívidas pessoais do empresário rural individual.

Neste sentido, destaca-se que a Lei 11.101/2005 se aplica única e exclusivamente às atividades empresárias, assim entendidas aquelas atividades qualificadas pelos requisitos do artigo 966, do Código Civil. Ao mencionar a “empresa”, a Lei 11.101/2005 faz referência à atividade, eis que separou os conceitos de empresa e empresário, para enfocar na preservação da atividade empresária, e não do empresário[2].

Assim, tendo em vista o propósito da Lei 11.101/2005 — a preservação da empresa —, com significativos avanços e adaptações jurisprudenciais para permitir o processamento da recuperação judicial em que a empresa é desenvolvida por sujeitos que não são empresários, como associações e cooperativas[3], evidente que os créditos sujeitos a este regime devem se vincular funcionalmente à atividade que se pretende proteger[4].

Portanto, de acordo com a Teoria da Empresa e pelo escopo de preservação da empresa declarado na Lei 11.101/2005, entende-se que são concursais todos os créditos existentes na data do pedido, desde que vinculados à atividade empresarial, isto é, excluindo-se as dívidas pessoais do empresário rural individual. No caso concreto, um dos desafios que será imposto ao intérprete é o da distinção entre as dívidas pessoais e as dívidas vinculadas à atividade rural, cuja conceituação foi deixada a cargo da doutrina.

Importantíssima será para a análise da Teoria da Agrariedade proposta pelo professor italiano Antonio Carrozza, consagrada no direito italiano, francês e brasileiro, na qual o fator predominante é o desenvolvimento de um ciclo biológico, concernente à criação de animais como de vegetais, que surge ligado direta ou indiretamente ao desfrute das forças e dos recursos naturais, resultando na obtenção de frutos (vegetais ou animais) destinados ao consumo direto, como tais, ou derivados de várias transformações[5].

 


[1]Agravo de instrumento – Recuperação judicial do Grupo Agroplanta – Decisão de origem que deferiu o pedido de recuperação judicial a Flávio e Christovam, na qualidade de produtores rurais – Inconformismo – Não acolhimento – A respeito da recuperação judicial dos produtores rurais, há entendimento firmado pelo C. STJ (REsp n. 1.193.115/MT e REsp n. 1.800.032/MT) reconhecendo que: (i) a inscrição do produtor rural na Junta Comercial é pressuposto obrigatório para o pedido de recuperação judicial; (ii) é necessária a comprovação do exercício da atividade rural há mais de dois anos do pedido de recuperação judicial; (iii) basta que a inscrição na Junta Comercial seja anterior ao pedido de recuperação, não existindo necessidade de que ela tenha sido feita há mais de dois anos do pedido de recuperação; (iv) a inscrição do produtor rural submete-o ao regime jurídico empresarial, e possui efeito retroativo em razão do artigo 970, do CC; (v) sujeitam-se à recuperação judicial as obrigações e dívidas contraídas antes da inscrição do produtor rural – Produtores rurais que, no caso, preenchem os requisitos estabelecidos pelo C. STJ – Comprovada a existência de relação econômica entre Flávio, Christovam e a Agroplanta – Demais questões controvertidas suscitadas ao longo deste recurso (existência de efetiva crise financeira de Flávio e Christovam, consolidação substancial e regularidade do crédito da First Consultoria e Assessoria Empresarial LTDA., e do Sr. Rutkoski) que deverão ser aprofundadas e esclarecidas no momento adequado – Decisão mantida – Recurso desprovido. (TJSP, AI 2250508-68.2019.8.26.0000, Des. Rel. Grava Brazil, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, DJ 23/06/2020)

[2]“O ponto focal da LREF não é o sujeito, isto é, o empresário individual ou a sociedade empresária (ou o seu controlador), e sim os fatores de produção devidamente organizados para o exercício da atividade empresária. (…) É evidente que a Lei busca proteger a atividade, não necessariamente o seu titular.” (TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João Pedro. SPINELLI, Luiz Felipe. História do direito falimentar: da execução pessoal à preservação da empresa. São Paulo: Almedina, 2018. p. 229-230).

[3] A jurisprudência já autorizou o processamento de recuperação de judicial de associação civil, a exemplo da Casa de Portugal (Processo nº 0060517-56.2006.8.19.0001), Aelbra, mantenedora da Ulbra (Processo nº 5000461-37.2019.8.21.0008), e Faculdade Cândido Mendes, (Processo nº 0093754-90.2020.8.19.0001), além da Unimed de Petrópolis/RJ (Processo nº 0022156-21.2018.8.19.004)

[4] “Os créditos concursais são os créditos provenientes da atividade do empresário devedor enquanto esse ainda estava na condução de sua atividade empresarial. Exceto créditos expressamente excluídos do concurso de credores, os créditos concursais são os que se originaram de fatos praticados pelo devedor ou decorrentes de negócio jurídico por esse celebrado antes da decretação de sua falência ou, na hipótese de convolação da recuperação judicial em quebra, antes do pedido de recuperação judicial”  (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo IV (recurso eletrônico) : direito comercial / coords. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus ElidiusMichelli de Almeida – São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018)

[5]  CARROZZA, A. Lezioni sul dirittoagrario. Elementidi teoria generale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1988. p. 29.

Autores

  • é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração e Economia das Organizações pela USP. Visiting professor na Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália).

  • é advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e mestrando na mesma instituição.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!