Opinião

A falta de critério das decisões trabalhistas

Autor

  • José Carlos de Camargo

    é advogado pós-graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (SP) e pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Administração Pública e Gestão de Cidades.

28 de agosto de 2020, 17h09

Não são poucas e nem delicadas as críticas dirigidas à Justiça do Trabalho e que foram, por muito tempo, proferidas quase que exclusivamente por empregadores e por advogados que, nem sempre, estiveram/estão ao lado esquerdo do peito dos(as) magistrados(as) [1].

Contudo, uma análise criteriosa do que existe (em termos de ações e decisões) pode, tranquilamente, nos assegurar que as críticas foram insuficientes e inúteis.

Registro, por oportuno e desde já, que este escrito não tem a pretensão e o rigor de qualquer trabalho científico, até mesmo porque, provavelmente, isso em nada beneficiaria a imagem da mal compreendida Justiça do Trabalho.

Voltando ao tema deste artigo, diz-se que as críticas foram insuficientes no sentido de que os operadores do Direito (a doutrina em especial, mas não só ela) não criticaram (ou constrangeram de forma epistêmica — como, talvez, diria o doutrinador Lenio Strek [2]) o necessário para impedir os desarranjos nas decisões justrabalhistas, o que se pode constatar mediante uma rápida análise do acervo dos tribunais.

Inúteis porque são ignoradas de forma diuturna e sistemática, com um rigor e "apreço" que nem sempre se extrai em relação às próprias normas de Direito do trabalho, especialmente aquelas relacionadas ao processo.

Eu mesmo, na minha ainda curta jornada de advogado trabalhista, e mesmo sem dedicar uma parte expressiva do meu tempo a essa seara, já tive experiências inusitadas que gostaria (e vou) compartilhar a seguir porque ilustram muito bem a falta de critério das decisões trabalhistas (de imparcialidade, também, talvez?) e, quem sabe, até mesmo uma boa fração de arbitrariedade.

Causo 1: Após acordar às 4h e dirigir com meu cliente por quase 600 km para participar de uma audiência trabalhista na cidade de Jales (SP), designada com cinco ou seis meses de antecedência, ao fazer o apregoamento e constatar que o reclamante não se fazia presente, a juíza questiona: "Doutor, o reclamante está atrasado, pois está preso em um congestionamento e, segundo o seu advogado, tem previsão de chegar aqui em uma hora mais ou menos (detalhe 1: a audiência já estava começando com quase uma hora de atraso; detalhe 2: de acordo com a inicial, o reclamante residia a menos de um quilômetro de distância da vara/local da audiência). Diante disso, pergunto: o senhor quer esperar ou prefere que a audiência seja redesignada? Hoje é sexta, eu marcaria ela para a próxima segunda. O que me diz?". Advogado (eu): "Doutora, eu gostaria de sugerir uma solução que não foi proposta, que diz respeito à aplicação do, salvo engano, artigo 844 da CLT, que trata do arquivamento da ação em caso de ausência do reclamante. Como ele está em um congestionamento, ou seja, como ele está ausente da audiência, penso que seria o caso de remeter os autos ao arquivo, o que peço neste momento".

Eis que, para a minha surpresa, replica a juíza: "Doutor, aqui na minha vara eu costumo fazer diferente, costumo dar uma segunda chance em casos tais, o que faria inclusive para ajudar a empesa, portanto, caso o senhor não queira esperar, eu encerro a audiência e já consto na ata a nova data da audiência".

Naquele momento, o dono da empresa olha para o seu advogado e diz: "Seriam mais 1800 km, doutor, vamos esperar. Já entendi tudo".

Protestos consignados em ata — com alguma resistência em reproduzir fielmente as palavras do advogado e o que me foi dito —, alegada a violação em sede de recurso ordinário, eis que decide o tribunal (com outras palavras): se a reclamada permaneceu aguardando o reclamante chegar é porque consentiu com a decisão da magistrada, não podendo, agora, contra ela se insurgir.

Causo 2: Sessão de julgamento do recurso ordinário interposto pela reclamante, visando a receber aposentadoria integral por invalidez. Segundo constatou o (controverso) laudo pericial, ela, a ex-empregada, era portadora de uma lesão degenerativa em um dos ombros, responsável por uma redução da capacidade laborativa na ordem de 6,5%, sendo que o trabalho desenvolvido atuou como concausa. Premissas fáticas incontroversas: contrato de trabalho de aproximadamente dois anos e dois meses, no qual a funcionária gozou de 60 dias de férias e 60 dias de afastamento por motivo de saúde (CIDs aleatórios e não relacionados com a patologia alegada nos autos). Função: ajudante de cozinha. Empresa: restaurante de bairro de uma cidade pequena (menos de 55 mil habitantes à época). Valor da indenização, a título de danos materiais deferidos em primeira instância: R$ 8.333 (mais R$ 8 mil de danos morais).

Segue o julgamento.

Desembargador relator: "Sugiro aumentar a condenação por danos materiais para R$ 100 mil e os danos morais em R$ 40.000,00".

Segundo julgador: "Divirjo apenas do valor do dano material. Ia sugerir cerca de R$ 60 mil".

Terceira julgadora: "Penso que serei vencida no que diz respeito aos montantes fixados. É que os valores propostos me parecem demasiadamente elevados ao ponto de inviabilizar a atividade econômica. Trata-se de uma lanchonete, na cidade de Nova Odessa… Por isso iria sugerir a manutenção dos valores fixados em 1ª instância".

Segundo julgador: "Doutor relator, há uma discrepância nos valores do dano material única divergência nossa R$ 100 mil, R$ 60 mil e R$ 8 mil. Por que não apuramos a média e arbitramos dessa forma?".

Relator: "Então fixa o dano material em R$ 40 mil e R$ 20 mil de dano moral".

Segundo desembargador: "Excelente".

Terceira julgadora: "Pode ser".

A decisão unânime, porém, não convenceu a proprietária da empresa, que, ao contrário do que ocorreu no primeiro caso, não entendeu tudo. Disse que iria precisar de muito tempo para digerir o "decreto de falência" que lhe foi expedido e, quase que suspirando, questionou: "Como a mesma 'coisa' pode ser R$ 8 mil, R$ 60 mil e R$ 100 mil e, no final, terminar com R$ 40 mil? A lesão do ombro dela causou uma fratura irreversível na espinha dorsal da empresa. Pago uma parte da indenização ou a conta das meninas que vou demitir antes de fechar a empresa? É que mesmo que tivesse dinheiro pra pagar todo mundo, o que não há, não compensa manter a empresa funcionando. Volto a fazer uma faxina aqui, um bico ali…".

A incompreensão da cliente é, também, parte da angústia de quem advoga, que pode ser mais intensa em quem advoga na Justiça do Trabalho. Pior se for advogado de empresa pequena. Mais trágico ainda se se tratar de um(a) profissional que estuda e leva a sério a profissão e o direito. Sertralina® para passar o dia, Rivotril® para dormir à noite.

No campo jurídico, a "conversa" dos julgadores (em especial dos dois primeiros) reflete com clareza a falta de critérios mínimos. No primeiro caso, uma arbitrariedade.

E ambos reforçam uma pequena parte das circunstâncias e acontecimentos (não isolados e nem aleatórios) que contribuíram para as críticas desconstrutivas — sim, de descontruir, desfazer, extinguir — a Justiça do Trabalho, acolhida por parte da classe política e, principalmente, pelo atual governo. Com a qual, registre-se, eu não comungo (mas entendo).

Partindo de decisões como as relatadas acima (ilegais e inconstitucionais), torna-se menos difícil aos "adversários da sociedade" (como um todo) defender o desmonte e a revogação de direitos trabalhistas básicos, mediante "reformas" impostas e uma verdadeira orgia de medidas provisórias.

A proposta — de matar o hospedeiro para eliminar o parasita — é ainda mais bizarra quando se vê que a própria Justiça do Trabalho se coloca como instrumento desse crime social, colocando a disposição da classe empresarial, toda a estrutura e (ausência de) método que até então era utilizado para puni-las.

Em linhas gerais, a JT virou a chave e elegeu o reclamante como o inimigo da vez — ou seus advogados, quem é que sabe? Nessa luta por sua autopreservação, alguns tribunais até já inseriram em suas minutas o texto padrão de que recursos protelatórios serão multados, e como "sinal máximo de imparcialidade" (ler com ironia), vislumbram e aplicam sem pudor, inclusive, em desfavor do reclamante. Sem pudor e, principalmente, sem fundamentação adequada, também.

O problema é que essa precarização crônica dos direitos trabalhistas claramente não interessa nem mesmo a grande parcela do senhorio, pois nem todos mantêm as burras cheias com base no capital estrangeiro.

Não deveria ser difícil entender, principalmente para o "alto clero" (senhorios e políticos), que a preservação de condições dignas e de direitos básicos aos trabalhadores é uma das formas mais seguras de, acreditemos ou não, assegurar a manutenção do conforto deles mesmos, uma vez que, com o que recebido pelos trabalhadores, na maioria das vezes não é suficiente para lhes assegurar nem mesmo a aquisição de um único imóvel ao longo de uma ou duas vidas inteiras.

O que me desperta a atenção, contudo, é a capacidade de grande parcela dos julgadores da Justiça do Trabalho conseguirem atravessar contextos diametralmente opostos, em lapsos de tempo relativamente curto, firmes e convencidos de que não se deve ter preocupações triviais como a de, por exemplo, fundamentar suas decisões e, menos ainda, de se dedicar a contribuir com questões mais "sofisticadas", como, por exemplo, o desenvolvimento de métodos (critérios) decisórios que revelem coerência e integridade, ao invés de solipsismos e subjetividades, viabilizando a compreensão de suas ações e decisões pelos destinatários finais da tutela jurisdicional, seja ele a dona de um pequeno restaurante de uma pequena cidade, seja ele o dono de uma grande rede de lojas de departamentos que deseja importar a cultura econômica liberal dos Estados americanos, sem, evidentemente, trazer no pacote as punições severas a sonegadores e delinquentes de qualquer natureza, que via de regra alcançam não só os "descamisados", mas os bem vestidos e de colarinho branco também.

Além disso, o arcabouço legislativo trabalhista, por mais que se queira criticá-lo e chamá-lo de defasado, nunca legitimou ataques a pequenas ou grandes empresas ou os mais variados descalabros dos quais se tem notícia, o que, aliás, evidencia outra face desse grave problema, consistente na má-formação dos operadores do Direito, nos quais, por óbvio, incluem-se os(as) magistrados(as), de quem, ao menos a princípio, dever-se-ia exigir uma cultura tão ampla que os permitisse enxergar as questões além do Direito, sem, ao mesmo tempo, que isso implicasse na contaminação de suas decisões com elementos estranhos e predatórios (do Direito, como a economia, política e moral).

Assim, de tudo o que se conhece e tem notícia, a pouca certeza que se pode ter é que estes tempos difíceis se tornarão ainda pior. Para todos. Respeitando, é claro, uma das maiores características deste país, que é a desigualdade.

_____

[1] Refiro-me a posição em que as partes se sentam durante a audiência.

[2] Peço escusas ao Professor Lenio caso tenha tirado (ou distorcido) de contexto o que ele diz sobre o assunto, bem como, caso não tenha compreendido o que ele diz sobre o tema.

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  • é advogado, pós-graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (SP) e pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Administração Pública e Gestão de Cidades.

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