Opinião

A desinformação e a responsabilidade civil: um diálogo que se avizinha

Autor

  • Tiago Henrique Grigorini

    é juiz de Direito do TJ-SP coordenador regional da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados) professor da Faculdade Reges professor convidado do Mege Cursos Jurídicos mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) e especialista em Direito Constitucional.

27 de agosto de 2020, 18h11

Tempos estranhos. Talvez essa tenha sido uma das expressões mais ouvidas nesse ano. E tal se justifica muito em razão das alterações no plano comportamental advindas da pandemia da Covid-19, que gerou inúmeras limitações e sensíveis alterações, transformando 2020 em um ano "estranho". Mas vamos entrar numa seara diferente. Vamos imergir numa reflexão composta por um tema relativamente novo no meio social — e jurídico, por consequência — que atrai várias perguntas com poucas respostas: a desinformação. Sim, vamos falar das fake news. E, a fim de se dar um recorte minimante científico, embora seja este um artigo de opinião, vamos limitar nossa reflexão ao plano jurídico, instigando a seguinte questão: em que medida caberia responsabilização por propagação de fake news?

Desinformação trata-se de um substantivo feminino que, à luz do dicionário [1], significa "ação ou efeito de desinformar" e, ainda, "informação inverídica ou errada que é divulgada com o objetivo de induzir em erro". Foquemos, pois, na segunda definição. É cediço que o avanço dos meios de comunicação trouxe como consequência — buscada, registre-se — a difusão e a facilitação da informação. Se nossos pais e avós esperavam, num ritual quase que sagrado, o "horário do jornal" para saber as notícias do dia, hoje sabemos dos acontecimentos quase que instantaneamente, pelos mais diversos canais de informação disponíveis, com um simples acesso por meio de um aparelho celular. Não se questiona que o avanço da internet é a grande responsável por essa facilidade, mas é igualmente verdade que todo avanço gera algum efeito colateral que, no presente caso, foi a perda sensível da qualidade da informação.

As redes sociais são, sem dúvida, um excelente lugar para interagir, mas tem se apresentado como um péssimo local para se informar. A "onda de fake news", ou seja, a disseminação de informações inverídicas ou distorcidas com a finalidade de confundir o interlocutor ou induzi-lo, tem ganhado um contorno preocupante. Tal como um vírus, a informação se propaga em progressão geométrica pelas plataformas virtuais, sendo certo que, a informação mal passada, deslocada ou propositadamente alterada, talvez seja pior do que a ignorância. O estrago que um vírus causa todos nós conhecemos. Tempos difíceis. Mas o estrago provocado pela desinformação apenas recentemente tem vindo à tona. Há um lapso temporal maior na relação causa/consequência dentro das ciências sociais, em especial o Direito, do que nas ciências biológicas, em especial a Medicina. Da mesma forma, o tempo de resposta desta, para nossa sorte, é maior do que daquela. Enquanto um vírus é descoberto e mapeado em poucos meses, um "vírus social" demanda anos para ser verificado e, por óbvio, a resposta a ele também segue a mesma proporção.

Tem sido comum pessoas públicas, em especial, valerem-se de suas redes sociais para esclarecerem ou questionarem informações indevidas ou mentirosas que eventualmente foram a elas vinculadas, muitas vezes até em canais de relevante reputação. No plano político, é de conhecimento geral que vários fatos da história recente foram alvo de propagação de informações falsas. A título de exemplo tem-se o Brexit, as eleições americanas de 2016 e as eleições gerais de 2018 no Brasil, que podem ter sido influenciados, segundo especialistas, pelo fenômeno das fake news.

Estas últimas, inclusive, já submetidas ao crivo do Poder Judiciário, na medida que as Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) — de números 0601369-44.2018.6.00.0000 e 0601401-49.2018.6.00.0000 — têm como causa de pedir a propagação de informações falsas, mormente a adulteração de um site contrário à candidatura do presidente e compartilhado como se favorável fosse.

Seja no plano das relações privadas, seja no plano das relações estatais, fato é que a desinformação tem causado sérios danos a pessoas, instituições e, quiçá, a nações. E, dentro do plano jurídico a que somos submetidos, quando entram em conflito direitos e há a alegação de ofensa a algum bem jurídico, cabe ao Poder Judiciário a solução. Retoma-se aqui a pergunta feita no início deste texto sobre o cabimento de responsabilização por propagação de fake news.

O constituinte, a fim de consagrar o direito de manifestação e de livre expressão, em especial diante de um complexo quadro ditatorial recém superado quando da promulgação da Constituição, trouxe, ao longo do texto da Carta, diversas passagens para evitar qualquer forma de restrição na comunicação. No artigo 5º, verificamos vários incisos garantindo, por exemplo, a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (inciso IV); o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (inciso V); a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inciso IX); e assegurando a todos o acesso à informação com o resguardo do sigilo da fonte, sempre que necessário ao exercício profissional (inciso X).

É certo, ainda, que deu à atividade profissional comunicativa um tratamento especial, na medida que dedicou a ela capítulo exclusivo, entre os artigos 220 e 224. Nesse pormenor, a liberdade de transmitir informação, amparada nestes artigos, institucionaliza a liberdade de imprensa e não se confunde com liberdade de manifestar pensamentos (artigo 5º, IV). Vejamos:

"Artigo 220 — A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

(…)".

De plano, entendemos clara a possibilidade de responsabilização por abuso de direito de informar, na medida que o constituinte não entregou à comunicação (privada ou profissional) uma carta branca, possibilitando a responsabilização (inciso V) daquele que excede os limites do seu direito (artigo 187 do Código Civil). A relação informante e informação encontra-se bem delineada e já é alvo de interpretações jurídicas que punem o abuso do direito. O que temos de novo é a relação entre informante e informado, ou seja, aquele que veicula a informação — seja à luz da liberdade de pensamento ou de imprensa — e aquele que a recebe. E são justamente esses limites que precisarão de uma definição cuidadosa por parte do Poder Judiciário.

E, nesse contexto, entendemos que o texto constitucional protege não só aquele que expõe ou aquele que é exposto, mas também, e talvez agora, prioritariamente, aquele que recebe a informação. Ora, não faz o menor sentido proteger quem informa (artigo 5º, IV, IX, X; 220, entre outros da CR88) e a informação (artigo 5º, V, da CR), se não protegermos o seu destinatário.

O objetivo dessa reflexão, à luz do receptor da informação, é responsabilizar os "maus informantes", sejam profissionais ou não, a fim de garantir a integridade, ou ao menos reparar do dano, não só daquele que sofre com a articulação maligna da informação, mas de todos que recebem essa informação — aqui, talvez, na seara do dano moral coletivo.

À luz da prudência e da temperança, deve-se ter cuidado para não alargarmos interpretações ao ponto de uma "responsabilização prévia", que configuraria censura; tampouco caminharmos por estudos que concluam pela responsabilização da opinião, o que seria igualmente trágico. É, sem dúvida, uma equação difícil, que apenas se apresenta nos debates, devendo ser, o quanto antes, enfrentada.

Como dito desde o início, não se trata o presente texto de um artigo científico com respostas. Ao revés, aqui procuramos tão somente colocar instigações a fim de aguçar reflexões sobre temas que se avizinham e que, num tempo não muito longínquo, serão submetidos às raias do Poder Judiciário. Em outras palavras, buscamos indagar até que ponto vai a liberdade de informação sob o prisma do informado. Em eras de fake news, de fato, há necessidade de uma releitura dessas questões, na medida que a desinformação propositada não pode abrigar o mesmo manto da liberdade de expressão. Aquele que sabidamente altera ou distorce um fato — não estamos falando de opinião, reitere-se — e o adjetiva para satisfazer seu ponto de vista ao arrepio da realidade, não age sob o manto da liberdade de informação. Ele, rigorosamente, descumpre o princípio. É um fake news do princípio da liberdade de informação; um fake news no fake news.

Parece paradoxal, e talvez o seja, mas de fato o instituto da responsabilidade civil deve ser destrinchado a fim de, cientifica e tecnicamente (talvez à luz da ponderação de interesses — e no plano do direito coletivo), evitar o abuso do fundamental direito de informar para, deliberadamente, desinformar.

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    é juiz de Direito do TJ-SP, coordenador regional da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), professor da Faculdade Reges, professor convidado do Mege Cursos Jurídicos, mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) e especialista em Direito Constitucional

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