Opinião

As respostas do Direito Comercial à crise da Covid-19

Autores

  • Vinicius Figueiredo Chaves

    é professor adjunto de Direito Comercial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)-(FND) e da Universidade Federal Fluminense (UFF-VR) doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pós-doutor em Direito pela USP.

  • Carolina Miranda Cavalcante

    é professora adjunta de Economia Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)-(FND) e doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense.

27 de agosto de 2020, 6h02

A pandemia conduziu os Estados nacionais à adoção de uma série de estratégias de enfrentamento ao coronavírus, como partes integrantes de um conjunto de esforços voltados à contenção da disseminação da Covid-19 e à mitigação dos efeitos da crise sanitária sobre as mais diferentes realidades.

As medidas de restrição de mobilidade urbana implementadas, associadas a decisões e práticas de distanciamento e isolamento sociais, acarretaram desaceleração brusca nos fluxos de demandas de consumo das sociedades por certas categorias de produtos e serviços. Houve significativos impactos sobre as economias, os mercados e os agentes econômicos [1].

Como um dos desdobramentos expressivos dessa realidade, instaurou-se uma crise econômica que, segundo projeções do Banco Mundial (junho de 2020), provocará uma contração do PIB global na ordem de 5,2%. Estima-se que o mundo estará diante da recessão mais profunda em décadas, que implicará no encolhimento significativo das economias de muitos países (no caso do Brasil, previsão de queda de 8%) [2].

Entre as inúmeras e abrangentes reflexões necessárias a respeito da crise, dos seus desdobramentos e de suas consequências (sociais, políticas, econômicas, jurídicas etc.), uma em particular desperta a atenção pela atualidade e relevância: aquela que envolve o debate sobre as respostas que demandam construção no âmbito do Direito Comercial, ramo da ciência jurídica que lida mais precisamente com a organização e a disciplina dos mercados (em regimes de livre iniciativa), e das formas/figuras jurídico-organizativas para o exercício da atividade econômica.

Antes da pandemia, verificava-se nas discussões em matéria de Direito Comercial um impulso de ampliação de argumentos em prol da defesa da necessidade de aprofundamento de uma visão estritamente liberal da economia e dos mercados, baseada numa pretensão epistemológica fundada em caráter apenas privatista e contratual e que restringe ao Estado (e, consequentemente, ao Direito) o papel explícito, mas mínimo, tão somente de definição e manutenção de um conjunto demarcado de regras formais do "jogo econômico" que assegurem liberdade e previsibilidade para que os agentes econômicos possam atuar [3].

A partir dessa forma particular de compreensão a respeito do funcionamento da economia e dos mercados, pautada na crença de que os interesses econômicos de particulares são supostamente coincidentes com os da sociedade como um todo [4], esboçava-se então um espaço de atuação para o Direito Comercial que fosse condizente com essa racionalidade, ou seja, praticamente circunscrito à salvaguarda das liberdades econômicas individuais e seus corolários.

Com base em tais premissas, teses em prol das ideias de forte demarcação dos direitos de propriedade privada e de diminuição dos custos de transação, coligadas a assuntos como os contratos (principalmente, em relação às concepções em torno da liberdade de contratar e da não interferência) e as estruturas hierárquicas e de governança (orientadas, naturalmente, tão somente para os interesses diretos e particulares dos agentes econômicos) das organizações econômicas, e seus respectivos desdobramentos, passaram a ser entendidas em seu conjunto como as únicas questões legítimas de discussão no âmbito do Direito Comercial (e, consequentemente, de incorporação por suas regras e princípios). A fidelidade de alguns a essas premissas implicava considerar inaceitáveis quaisquer interferências do aparato estatal a esse núcleo de temas tidos como essenciais, centrados na concepção de perseguição de suposta eficiência econômica como uma espécie de pedra de toque da noção de crescimento econômico.

Acontece que, ao mesmo tempo em que afetou significativamente as economias, os mercados e os agentes econômicos (formais e informais), a crise expôs de forma clara as múltiplas fragilidades e as gritantes e inaceitáveis desigualdades e a exclusão que perduram nos países periféricos e, também, em alguns dos países ditos desenvolvidos. Seus efeitos mais dramáticos e profundos recaíram sobre as pessoas, milhões delas, em especial aquelas atingidas pelas ainda persistentes vulnerabilidades do desemprego, do subemprego, do trabalho informal, da falta de acesso a medicamentos e a condições básicas de saneamento, da moradia inadequada etc.

Nesse sentido, a reconstrução de um arranjo social para o novo cenário do pós-pandemia demandará não apenas ações de curto prazo e de implementação imediata no âmbito das regras formais do jogo econômico existentes, mas também uma rediscussão mais ampla a respeito das próprias bases econômicas e jurídicas que atualmente alicerçam a nossa sociedade. A realidade e os problemas inaceitáveis expostos pela crise demandam não apenas ações e medidas de ordem tópica, mas transformações mais profundas de caráter estrutural.

Da mesma maneira que a crise e suas consequências levaram os países a repensar a relevância da ação do Estado na organização da vida social, impõe-se paralelamente uma reflexão sobre o papel da economia e do Direito (enquanto conjuntos de regras sociais) na reorganização da sociedade e com vistas à transformação da mesma rumo ao desenvolvimento em seu sentido mais alargado [5].

Quais seriam, portanto, as respostas do Direito Comercial apontadas no título do presente artigo de opinião, concebidas por seus autores como de implementação necessária diante do que acarretaram (e demonstraram!) a crise, seus desdobramentos e consequências?

Um primeiro conjunto de respostas (de implementação imediata), a que chamaremos tópicas, fundamentam-se na necessidade de moldar soluções jurídico-legais eficientes para mitigar os efeitos da crise sobre a economia, os mercados e os agentes econômicos, derivados da situação de repentina queda nos fluxos de demandas da sociedade por certas categorias de produtos e serviços.

Esse cenário decorreu das ações de restrição de mobilidade urbana associadas ao distanciamento/isolamento sociais praticados e reduziu de forma drástica os ingressos de recursos no caixa de empreendedores/empresas de inúmeros setores, com consequente comprometimento da capacidade de cumprimento de obrigações em geral (tributárias, trabalhistas, civis e comerciais, por exemplo) e acirramento de conflitos intersubjetivos decorrentes de relações negociais e contratuais afetadas pela crise.

No caso do Brasil, são exemplos dessas medidas tópicas: 1) o Projeto de Lei nº 1397/2020, da Câmara dos Deputados, que estabelece medidas de caráter emergencial, mediante alterações de índole transitória, da Lei nº 11.101/2005; 2) o Projeto de Lei nº 1179/2020, do Senado Federal, que deu origem à Lei nº 14.010/2020, que estabelece um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia; 3) a sugestão de aportes de capital público em empresas de setores específicos mais afetados (como o setor aéreo), via BNDESPAR (sociedade subsidiária integral do BNDES), por intermédio de emissão dos instrumentos de captação de recursos conhecidos como debêntures conversíveis em ações.

Tais medidas enfatizam a ideia de construção de respostas pontuais do Direito Comercial para amenizar os impactos da crise sobre a economia, os mercados e os agentes econômicos (inclusive, no que diz respeito à solução de conflitos intersubjetivos). Dizem respeito, tão somente, a tentativas de adequação das instituições e institutos jurídicos do (ou relacionados ao) Direito Comercial, sem que se promova um deslocamento da racionalidade predominante que tem orientado a formulação de escolhas normativas nesse ramo do Direito.

Dita racionalidade se encontra, ainda em grande medida, vinculada prioritariamente à perspectiva de unicidade de interesses em jogo (no caso, dos interesses dos titulares dos meios de produção diretamente afetados pelas crises) [6]. Expressa uma visão mais restrita do Direito como um conjunto de normas (regras e princípios) formais organizadoras da sociedade e, em paralelo, como um instrumento de solução de conflitos intersubjetivos.

O segundo conjunto de respostas (de implementação mediata), a que chamaremos estruturais, fundamentam-se na crença a respeito da necessidade de conferir-se à economia, aos mercados e, consequentemente, ao Direito Comercial importância e sentido novos.

Tais medidas enfatizam a ideia de construção de respostas estruturais do Direito Comercial com vistas ao processo de desenvolvimento em sua acepção mais ampla. Dizem respeito, de forma mais abrangente, a tentativas de adequação do Direito Comercial a partir de sua ressignificação e em busca de uma nova racionalidade fundada prioritariamente nas perspectivas de reconhecimento e consideração de uma multiplicidade de interesses em jogo.

Essa racionalidade, de caracterização ainda incipiente, encontra-se vinculada à noção de incorporação concreta, ao âmago do Direito Comercial, de ideias-força como tutela dos direitos humanos e fundamentais, ética e integridade, responsabilidade social, inclusão e sustentabilidade. Expressa uma visão mais dilatada a respeito do papel do Direito como instrumento de transformações econômicas e sociais.

A proposta de reflexão sobre respostas estruturais (para além das tópicas, também importantes) que demandam construção no âmbito do Direito Comercial é baseada na confiança de que as relações econômicas e jurídicas constituem partes integrantes das estruturas sociais, com interação não apenas entre si (Economia e Direito) mesmas como também com as demais dimensões da vida social [7].

 


[1] Não se está entrando no mérito e/ou questionando a necessidade e a conveniência das referidas medidas, as quais foram implementadas por inúmeros países com maior ou menor rigor.

[3] Baseadas em concepções teóricas que veem na matriz institucional a fonte do crescimento econômico, e das quais decorrem a ideia-força de que reformas institucionais – como reformas na previdência, nas leis trabalhistas, no sistema tributário, nas leis comerciais etc. – seriam catalisadoras do crescimento econômico via um sistema de incentivos ao qual espera-se que os indivíduos racionais respondam.

[4] Pode-se mencionar, neste sentido, a suposição de que a flexibilização dos mercados de trabalho e das regras de proteção do emprego facilitariam a empregabilidade dos desempregados.

[5] Que não esteja associada, pura e simplesmente, à noção de crescimento econômico (produto per capita), mas também a indicadores e medidas mais qualitativas do nível de vida das pessoas.

[6] De forma indireta, atingem também interesses outros como os dos empregados, trabalhadores, credores etc.

[7] Percebe-se facilmente esta interação (e, portanto, necessidade de influências recíprocas e harmonização) no exame dos fundamentos e princípios da ordem econômica constitucional brasileira.

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    é professor adjunto de Direito Comercial da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (FND) e da Universidade Federal Fluminense – UFF-VR e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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    é professora adjunta de Economia Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (FND) e doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense.

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