Opinião

Governo paulista quer confiscar fundos de apoio à ciência

Autores

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

26 de agosto de 2020, 20h20

O governo paulista enviou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei nº 529/20, o qual, dentre outras atribuições e remanejamentos de recursos, de forma escandalosamente inconstitucional, confisca os recursos destinados ao fundo de financiamento de apoio à ciência e tecnologia geridos pela Fapesp. A sociedade não se pode calar diante de tão grave golpe contra o desenvolvimento do conhecimento científico.

Spacca
Uma tragédia que, se perpetrada, manchará para sempre, a imagem do Estado. Em momento em que as universidades paulistas têm dado notáveis contribuições com avanços e descobertas, como se verifica com o Projeto Inspire de respiradores e tantos outros, os burocratas paulistas decidem capturar os fundos de apoio à ciência para empreender populismo de ocasião.

Esta agressão não cabe em lei, porquanto conflita flagrantemente com o texto da Constituição paulista, o qual determina que o Estado destinará o mínimo 1% de sua receita tributária à Fapesp, "como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico" (artigo 271). Sábia determinação. Garante a "privativa administração" da Fapesp sobre os recursos, a excluir, de forma plena, qualquer tredestinação dos recursos, e proíbe sua transferência a órgãos de diversa finalidade do "desenvolvimento científico e tecnológico".

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O PL nº 529/20, porém, usa de subterfúgios para obter o confisco das verbas da Fapesp ao dizer que "o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial" seja transferido ao final de cada exercício ao Tesouro Estadual "para o pagamento de aposentadorias e pensões do Regime Próprio de Previdência Social do Estado" (artigo 14).

Esta norma geral, contudo, não pode prevalecer onde haja regra constitucional especial e com destaque de fundo para finalidade igualmente vinculante.

O projeto de lei, tal como redigido, acarreta evidente confisco dos recursos da Fapesp e sufoca o financiamento da ciência e da tecnologia no Estado de São Paulo. Isso porque a proposta prescreve que sejam mantidos os repasses da Constituição, porém, ao final de cada ano, estes deverão ser transferidos ao Tesouro. Ou seja, dá-se com uma mão e tira-se com a outra.

A geração de superávits atende ao comando legal da Lei que instituiu a Fundação (Lei n. 5918/60, artigo 5º, parágrafo único), impondo a formação de um patrimônio rentável para atingir as finalidades que justificaram sua criação.

Ora, o Projeto de Lei, no caso da Fapesp, age contra texto expresso da Constituição (art. 272), que aponta ser "dispensada a deliberação dos órgãos colegiados" quanto à transferência pretendida. Mas não só. Por se tratar de fundação pública, viola o artigo 67, II, do Código Civil, que reclama a consulta aos representantes, bem assim o Decreto-lei 200/67, ao prever que os órgãos de direção das fundações é que devem gerir seu patrimônio (artigo 5º, IV). E sem falar do artigo 66, do mesmo Código, que exige do Ministério Público estadual velar pelas fundações onde situadas.

O PL nº 529/20 adota um conceito amplo de superávit, decorrente de apuração de balanço patrimonial, completamente inadequado para fundações de amparo ao desenvolvimento científico e tecnológico, que possuem diversas obrigações de longo prazo, tais como financiamento de bolsas e de pesquisas, com etapas a serem desenvolvidas que não comportam o curto prazo do horizonte anual orçamentário. Estes compromissos de longo termo correspondem, hoje, ao triplo do valor contabilizado como superávit, servindo de lastro para despesas que, mesmo que não contabilizadas como exigíveis no mesmo exercício orçamentário (daí o resultado de superávit no balanço anual), já foram legalmente contraídas (e igualmente apontadas no balanço).

Numa síntese, o repasse anual dos saldos implica um nefasto confisco de fundo constitucional, de grave prejuízo e insegurança para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

Reconhece-se a premência da situação fiscal de todos os Estados, abandonados que foram pela União nesse período pandêmico, mas é um erro atacar a sustentabilidade financeira da Fundação criada por Carvalho Pinto no final dos anos 50, e que faz notável diferença em termos do desenvolvimento tecnológico e científico deste Estado.

O desmonte da Fapesp, por este inequívoco confisco inconstitucional, antecipa trágicas consequências a médio e longo prazo na capacidade científica e tecnológica, com fortes impactos no sistema universitário estadual (USP, Unesp e Unicamp), dentre outros centros tecnológicos. Espera-se que a Assembleia Legislativa atente para as implicações do artigo 14 do Projeto de Lei 529/20, que, tal como redigido, acarretará a morte da Fapesp, por seu sufocamento financeiro.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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    é advogado, professor titular de Direito Financeiro e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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