Opinião

Reflexões sobre posicionamentos do STF diante da crise da Covid-19

Autor

  • Monique de Siqueira Carvalho

    é servidora do MPU cedida ao STF onde atua em gabinete de ministro autora do livro "O Cumprimento de Penas Privativas de Liberdade em Estabelecimento Penal Digno e Adequado: Possibilidades e Limites de Acordo com a Súmula Vinculante nº 56" professora do IDP e mestre em Direito Constitucional pelo IDP.

26 de agosto de 2020, 6h33

No Brasil, os números de infectados e de óbitos pela Covid-19 continuam em ascendência, a despeito do argumento de que a pandemia do novo coronavírus atingiu o chamado "platô". Com a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 780 mil presos, a realidade dentro dos estabelecimentos prisionais brasileiros não poderia ser diferente, quiçá pior.

Para apurar esse cenário nos presídios brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem disponibilizado boletim semanal dos casos de contágios e óbitos por Covid-19 nos sistemas prisionais, categorizados entre pessoas em privação de liberdade e servidores. De acordo com o último monitoramento, de 19 deste mês, a confirmação de casos cresceu exponencialmente nos últimos 30 dias, sendo 61,7% no caso dos presos e 26,9% no de servidores. Ainda de acordo com o boletim do CNJ, foram registrados 90 óbitos de pessoas presas, além de 75 óbitos de servidores, o que demonstra, como era de se esperar, que o problema do contágio não se restringe ao interior das celas. Isso sem levar em consideração a possibilidade de grande subnotificação [1].

O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) também tem atuado no monitoramento dos casos de Covid-19 nos presídios. No último relatório, do último dia 20 [2], verifica-se, por exemplo, que Pernambuco é o Estado do Nordeste que mais registra óbitos de detentos em razão da Covid-19, com oito mortes registradas até o momento. Sobre a situação no Estado, circulam vídeos da unidade prisional Dr. Edvaldo Gomes que revelam a situação de presos contaminados, deitados em colchonetes no corredor da penitenciária.

Atento a esse problema, o CNJ editou a Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, que recomenda aos tribunais a adoção de medidas preventivas frente a pandemia global da Covid-19. A recomendação reconhece que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva e, em razão disso, orienta que seja feita a reavaliação das prisões provisórias e a análise da liberação antecipada de pessoas que integram o grupo de risco — como idosas, gestantes, com doenças crônicas ou outras comorbidades preexistentes [3].

Diante do aumento do número de casos de Covid-19 registrados em presídios e do indeferimento dos pedidos de revogação das prisões em instâncias inferiores, multiplicam-se as ações no âmbito do Supremo Tribunal Federal que pedem a liberação de presos em virtude da pandemia e da superlotação carcerária.

Em geral, tais pedidos de liberação também são justificados em razão da aplicação da Súmula Vinculante nº 56 da Suprema Corte, que prescreve que "a falta de estabelecimento adequado não autoriza a manutenção de condenado em regime mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS". Nesse julgado paradigmático, o STF reconheceu a ilegitimidade do cumprimento de pena em regime mais gravoso do que o imposto na sentença, em razão da ausência de vaga em estabelecimento prisional adequado a seu regime e estipulou uma série de medidas a serem observadas antes do deferimento da prisão domiciliar ao sentenciado.

Feita essa breve contextualização do sistema carcerário brasileiro e da evolução da Covid-19 nos estabelecimentos prisionais, propomos uma análise crítica de alguns posicionamentos recentes do STF em sede de Habeas Corpus e reclamações constitucionais, tanto em decisões monocráticas quanto nas turmas. Não é propósito deste artigo apresentar conclusões quantitativas, o que seria inviável neste curto espaço, mas analisar de forma crítica alguns dos principais fundamentos jurídicos utilizados pela Corte Superior para a concessão, a denegação, o provimento ou não provimento dos pedidos das partes.

Embora não seja o objetivo deste artigo realizar uma análise quantitativa, vale citar que o STF criou, em 27 de março, um painel com dados sobre os processos relacionados à Covid-19, que é atualizado a cada cinco minutos. As informações atuais do painel demonstram que já foram protocolados 4.708 processos e proferidas 5.025 decisões sobre diversos temas relacionados à pandemia da Covid-19 [4].

Em um primeiro recorte analítico, das decisões monocráticas em Habeas Corpus, constata-se a existência de diversos casos de concessão da ordem para cumprimento imediato da pena em regime domiciliar. Por exemplo, no Habeas Corpus nº 184.669/SP, a justificativa para esta concessão imediata ocorreu, em linhas gerais, por se tratar de conversão de prisão provisória em domiciliar, o que demonstra que o debate sobre prisões provisórias é relevante e está sempre presente quando relacionado à temática do superencarceramento.

Além desse exemplo relacionado à prisão provisória, merece destaque o Habeas Corpus nº 187.368/SC, no qual a concessão da prisão domiciliar fundamentou-se com base no estado de saúde da apenada. No âmbito do STF, houve o indeferimento da medida liminar pela ministra relatora e, posteriormente, durante o recesso judiciário, o ministro presidente considerou que, em razão da idade avançada e da saúde da impetrante (portadora de HIV, diabética e hipertensa), poderia ser concedida a prisão domiciliar.

Outro tipo de decisão digna de destaque é a de deferimento de pedido, mas sem a autorização automática para prisão domiciliar, na qual ocorre a transferência do apenado do regime fechado ao regime semiaberto, nos termos do citado Recurso Extraordinário nº 641.320/RS e de acordo com a Recomendação nº 62 do CNJ. É o caso, por exemplo, do Habeas Corpus nº 188.099 MC/SP.

Por outro lado, há também decisões de denegação da ordem em Habeas monocráticos, que foram justificados, em alguns casos, em razão da gravidade do crime. Nesse sentido, cita-se o HC nº 187.631 MC/PB, no qual a condenação do requerente pelo crime de estupro de vulnerável inviabilizou a concessão da ordem. Nessa toada, a decisão harmoniza-se com o disposto no Recurso Extraordinário nº 641.320/RS, que alerta para a necessidade de prudência na liberação antecipada de presos condenados por crimes graves.

Em um segundo recorte analítico, dos julgados das turmas em Habeas Corpus, percebe-se que, em geral, a denegação da ordem tem predominado tanto na 1ª quanto na 2ª Turmas. Das principais causas para denegação dos agravos destacam-se: I) o fato de a crise sanitária da Covid-19 não ser suficiente para autorizar o recolhimento em domicílio (Habeas Corpus nº 183.382/SP); e II) a supressão de instância ou as determinações da Súmula 691, que, por serem obstáculos processuais, sequer adentram no mérito da demanda (Habeas Corpus nº 183.014/PA).

Já no âmbito das reclamações constitucionais constata-se que, tanto em decisões monocráticas quanto nas turmas, diversas ações foram julgadas procedentes, no sentido de transferir o apenado do regime fechado para o semiaberto. Ou seja, a despeito da procedência dos pedidos, deve-se pontuar que não houve concessão imediata de prisão domiciliar, mas determinação da "inclusão imediata dos presos no regime semiaberto ou a adoção, pelo Juízo da Execução Penal, de medidas alternativas, conforme os parâmetros estabelecidos no Recurso Extraordinário nº 641.320/RS" (Rcl nº 40.771/SP).

Outro exemplo de procedência do pedido da parte ocorreu na Reclamação nº 41.238/SP, na qual, após o pedido de informações realizado pelo STF à autoridade coatora, esta verificou o cumprimento dos requisitos estabelecidos no Recurso Extraordinário nº 641.320/RS e concedeu a prisão domiciliar ao apenado. Com o deferimento do pedido no tribunal de origem, a reclamação no STF foi julgada prejudicada [5].

Há também casos de improcedência dos pedidos dos presos nas reclamações. Como por exemplo, na Reclamação nº 40473/SC, na qual o ministro relator julgou improcedente por considerar que o instrumento constitucional da reclamação não pode ser empregado como sucedâneo recursal.

Portanto, da leitura crítica de algumas decisões da corte em Habeas Corpus e em reclamações, consta-se que as principais discussões jurídicas sobre Covid-19, Súmula Vinculante nº 56 e Recomendação nº 62 do CNJ relacionam-se sobre seis pontos: I) o deferimento do pedido com a conversão da prisão preventiva em domiciliar; II) o deferimento do pedido, mas com a transferência dos presos do regime fechado para o semiaberto; III) os pedidos prejudicados no STF em razão do deferimento do pedido pelo tribunal de origem; IV) as decisões de denegação que esbaram na jurisprudência defensiva (Súmula nº 691 ou supressão de instância); V) as decisões de denegação em razão da gravidade do crime; e VI) as decisões de improcedência justificadas em razão da utilização da reclamação como sucedâneo recursal.

Desses principais fundamentos jurídicos, as decisões de transferência dos presos do regime fechado para o semiaberto merecem destaque. Diante da necessidade de isolamento social imposta pela Covid-19, em que os direitos do regime intermediário impostos na Lei de Execução Penal (tais como saída temporária e trabalho externo) foram suspensos, percebe-se, na prática, um quadro fático análogo entre o regime semiaberto e o fechado.

Nesse contexto, por um lado é importante considerar a importância do sistema progressivo de cumprimento da pena. Por outro lado, deve-se reconhecer que a mudança do regime fechado para o regime semiaberto — que muitas vezes também está superlotado — pode não garantir os direitos expressos na LEP, tampouco reduzir as mazelas do superencarceramento, especialmente neste momento de pandemia.

Ademais, dos processos analisados para a elaboração deste artigo, percebe-se que a Procuradoria-Geral da República não tem apresentado agravo em face das decisões de transferência dos apenados para o regime semiaberto ou aberto. Em diversos pareceres, opinou o Parquet no sentido de não recorrer da decisão de transição de regime, por estar fundamentada em jurisprudência dominante da corte (Rcl 41155/SP).

Em relação aos pedidos coletivos, vale registrar que a Defensoria Pública da União impetrou Habeas Corpus coletivo no STF requerendo a concessão de prisão domiciliar a todos presos que compõem o grupo de risco da Covid-19, que praticaram crimes sem violência e estejam detidos em estabelecimentos superlotado. O writ nº 188820/DF, foi distribuído ao ministro Edson Fachin e está pendente de decisão. No âmbito do STJ, já houve a denegação de três writs coletivos com pedido similar [6].

Sendo assim, diante da breve análise do mérito de algumas decisões relacionadas à Covid-19, deve-se ter cautela ao analisar o posicionamento da corte que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário na ADPF nº 347 e que editou a Súmula Vinculante nº 56, além de outras significativas decisões sobre o tema do superencarceramento. Por outro lado, pondera-se que o não deferimento de pedidos de saída antecipada pelo STF não pode ser interpretado necessariamente como desrespeito aos seus preceitos. Há casos em que o apenado, de fato, não cumpriu os requisitos para progressão de regime ou para saída antecipada, o que demonstra a importância da análise individual de cada caso concreto.

Por fim, nunca é demais destacar que a Suprema Corte, como guardiã dos direitos fundamentais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, e como garantidora da impossibilidade da imposição de penas cruéis, deve sempre assegurar os direitos de todos, em especial dos mais vulneráveis e sobretudo neste momento de pandemia. Mas não só o STF. Todos os tribunais e o poder público têm o dever de reduzir os danos da superlotação e da precariedade do sistema carcerário, sobretudo no atual contexto de pandemia da Covid-19, em que o sistema prisional clama pelo reforço e efetividade de tais medidas.

 


[4] https://transparencia.stf.jus.br/extensions/app_processo_covid19/index.html

Este total de processos inclui todas as classes processuais (HC, RCL, ADI e outros) e todos os assuntos (Processual Penal, Questões de alta complexidade, Administrativo, Penal e outros). Foram, ainda, catalogados os principais tipos decisões (Negado seguimento, Denegada a ordem, Liminar indeferida, Deferido, Procedente, outros, etc).

[5] Os pedidos prejudicados em razão da transferência do preso para o regime semiaberto ou para a prisão domiciliar, a depender do caso, se deram em razão da correta instrução dos procedimentos com o pedido de informações à autoridade coatora, em caso de Reclamações. Nestes casos, com o pedido de informações do STF, a autoridade coatora já verificava se, de fato, o preso estava em estabelecimento incompatível e informava sobre a devida transferência ao estabelecimento adequado (Exemplo: Rcl nº 41143/SP).

[6] HC 567779, ministro João Otávio de Noronha, HC 570440, ministro Antônio Saldanha Palheiro e HC 596.189, ministro João Otávio de Noronha.

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