Opinião

Notas sobre proteção de dados, prova digital e o devido processo penal — parte III

Autor

  • Geraldo Prado

    é investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação de Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa professor visitante da Universidade Autónoma de Lisboa advogado criminal e autor de livros e artigos sobre processo penal.

26 de agosto de 2020, 6h04

Continuação da parte II

3) Em uma república democrática, os poderes sem controle não devem ser tolerados.

As maneiras de exercer controle no tocante ao poder digital variam conforme também variam os consórcios que se estabelecem no contexto do exercício desses poderes, considerando-se ainda o papel preponderante que os Judiciários dos Estados e os sistemas regionais de justiça supranacional cumprem no atual momento. O soft law é aqui tão fundamental quanto o poder de império próprio das decisões de juízes e tribunais.

Os legislativos igualmente desempenham função de relevo, cabendo-lhes coibir os excessos decorrentes do "encantamento digital" e sua implícita promessa de "sociedades sem crime".

Alguns exemplos merecem ser destacados.

No que se refere ao uso de tecnologias de reconhecimento facial, emprego quase sempre indiscriminado quer no âmbito da segurança pública, quer no que concerne à apuração de infrações penais, o projeto de lei do Senado norte-americano denominado Facial Recognition Technology Warrant Act of 2019 [1] limita o uso da tecnologia de reconhecimento facial por agências federais, mas, ao mesmo tempo, o permite ainda que sem decisão judicial prévia.

Ainda, este ano, foi aprovada lei estadual em Washington que regula o uso desta tecnologia por agências governamentais estaduais e em cujas disposições aponta necessária "revisão humana" caso direitos fundamentais estejam em risco [2].

Assim, é possível mencionar que a legislação estadual norte-americana é mais específica e detalhada quanto às disposições e pedido de uso da referida tecnologia. Na lei estadual norte-americana, principalmente, é nítida, nas últimas seções, a preocupação de evitar o enviesamento racial da citada tecnologia, de forma que minorias não sejam desfavorecidas.

Também recentemente, no âmbito do Reino Unido, o reconhecimento facial foi colocado em questão, sendo proferida interessante decisão proibitiva [3], com base no artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos [4].

Por sua vez, o Tribunal Constitucional Federal Alemão reconheceu que a polícia alemão tinha acesso desproporcional a dados pessoais online [5], com o Primeiro Senado do Tribunal restringindo esse acesso por meio de interpretação da lei de regência da matéria ao declarar inconstitucional o §113 da Lei de Telecomunicações [6].

A geolocalização contínua também é matéria delicada na esfera da contenção das políticas de hipervigilância.

Com efeito, como método potencialmente invasor, que processa os rastros e dados das várias espécies provenientes do meio digital, a "geolocalização" viabiliza uma forma de vigilância extrema do indivíduo em uma sociedade que massivamente faz uso da rede mundial de computadores [7].

O caráter de controle sobre a vida digital da pessoa alvo da vigilância é de tal ordem que, salienta Velasco Núñez, o que antes parecia inimaginável em termos de sociedade policial, as máquinas hoje tornaram algo muito real [8].

Uma tecnovigilância dessa grandeza sem dúvida afeta a vida privada e por este ângulo, de defesa da privacidade e, no extremo, da intimidade, que as possibilidades práticas de emprego dos métodos de geolocalização contínua começaram a esbarrar na resistência dos tribunais.

Com efeito, o mencionado Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, a respeito das comunicações, já havia decidido que:

"Uma 'vigilância total' temporal e espacial será inadmissível porque é alta a probabilidade de que as conversas pessoais sejam interceptadas. A dignidade humana também é violada se a vigilância se estende por um longo período temporal e é tão extensa que quase todos os movimentos e expressões da vida da pessoa afetada são registradas e podem atingir o fundamento da sua personalidade" [9].

Migrando o mesmo raciocínio para a questão do acompanhamento em tempo integral do indivíduo, processando seus passos, mas conhecendo da mesma forma o conteúdo das suas ações, é que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos reconheceu que a "geolocalização contínua de veículos por meio das balizas de GPS afeta a vida privada" [10].

Também por essa perspectiva vale recorrer às informações de Velasco Núñez:

"Así, la reciente jurisprudencia de referencia internacional, por diferentes vías, ha reconocido que la geolocalización continua — de un coche, a través de balizas, a la larga, con sistema GPS — afecta a la vida privada: STEDH de 2 de septiembre de 2010, caso Uzún vs. Alemania — a través del art. 8 del Convenio para la Protección de los Derechos Humanos y las Libertades Fundamentales, de 4 de noviembre de 1950 (en adelante, CEDH) –, y más recientemente, algo similar ha hecho la sentencia del caso Estados Unidos vs. Jones 10 US 1259 (de) 2011 — a través de la cuarta enmienda a su Constitución" [11].

Observado o contexto, a Comissão Europeia para a eficácia da Justiça emitiu a Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seu ambiente, uma das referências da proposta apresentada à Comissão Especial de Reforma do CPP acerca do tema prova digital pelo grupo de trabalho mencionado na parte I [12].

Não há propriamente um dilema, ao menos do ponto de vista teórico. A hipervigilância, em qualquer de suas modalidades, viola o direito à autodeterminação informativa, sua ilicitude repercute na privacidade dos indivíduos e sua opacidade e ausência de controles eficazes agridem o princípio republicano.

É inegável a afronta à garantia do devido processo legal. Pelo ângulo do direito processual penal, no entanto, não há como deixar de reconhecer que uma nova teoria dos sujeitos processuais, contemplando os titulares de poderes privados, é inevitável. Assim como é incontornável o reconhecimento de novos direitos fundamentais gerados em virtude da "digitalização da vida".

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[1] SENADO DO 116º CONGRESSO DOS ESTADOS UNIDOS. S. 2878 – Facial Recognition Technology Warrant Act of 2019. Projeto de lei. Apresentado em 14 de novembro de 2019. Disponível em: https://www.congress.gov/bill/116th-congress/senate-bill/2878/text. Consultado em: 17 de junho de 2020.

[2] SENADO DO ESTADO DE WASHINGTON. Facial Recognition – State and Local Government. SB 6280 – 2019-20 Concerning the use of facial recognition services. Aprovada em 31 de maio de 2020. Disponível em: http://lawfilesext.leg.wa.gov/biennium/2019-20/Pdf/Bills/Session%20Laws/Senate/6280-S.SL.pdf?q=20200617151732. Consultado em: 17 de junho de 2020.

[3] “209. Pelas razões por nós dadas esta apelação será provida com base nos fundamentos 1, 3 e 5. Nós rejeitamos os fundamentos 2 e 4.

210. Quanto à solução adequada, consideramos que esta decisão declaratória será suficiente para refletir as razões pelas quais essa apelação foi provida. Nas circunstâncias que surgiram, as partes concordam que a única solução requerida é uma declaração, mas estas não conseguiram chegar a um acordo quanto aos termos precisos de uma declaração. Tendo considerado as discórdias rivais, nós concluímos que a declaração proposta por SWP reflete de forma mais precisa o julgamento desta Corte. Nós concederemos uma declaração nos seguintes termos:

1) O uso da tecnologia automatizada simultânea de reconhecimento facial pelo demandado em 21 de dezembro de 2017, em 27 de março de 2008 e de forma contínua, que acionou o artigo 8(1) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não estava de acordo com a lei para os propósitos do artigo 8(2).

2) Como consequência da declaração estabelecida no parágrafo 1 acima, quanto ao uso contínuo da tecnologia automatizada simultânea de reconhecimento facial pelo demandado, sua Avaliação de Impacto de Proteção de Dados não cumpriu com a seção 64(3)(b) e (c) do Data Protection Act 2018.

3) O demandado não cumpriu com o Dever de Igualdade do Setor Público na seção 149 do Equality Act 2010 antes ou durante o uso da tecnologia automatizada simultânea de reconhecimento facial em 21 de dezembro de 2017, em 27 de março de 2008 e de forma contínua.”

Tradução livre. No original: “209. For the reasons we have given this appeal will be allowed on Grounds 1, 3 and 5. We reject Grounds 2 and 4.

210. As to the appropriate remedy, we consider that declaratory relief to reflect the reasons why this appeal has succeeded will suffice. In the circumstances which have arisen, the parties agree that the only remedy which is required is a declaration but they have not been able to agree the precise terms of a declaration. Having considered the rival contentions, we have concluded that the declaration proposed by SWP more accurately reflects the judgment of this Court. We will grant a declaration in the following terms:

1) The Respondent’s use of Live Automated Facial Recognition technology on 21 December 2017 and 27 March 2018 and on an ongoing basis, which engaged Article 8(1) of the European Convention on Human Rights, was not in accordance with the law for the purposes of Article 8(2).

2) As a consequence of the declaration set out in paragraph 1 above, in respect of the Respondent’s ongoing use of Live Automated Facial Recognition technology, its Data Protection Impact Assessment did not comply with section 64(3)(b) and (c) of the Data Protection Act 2018.

3) The Respondent did not comply with the Public Sector Equality Duty in section 149 of the Equality Act 2010 prior to or in the course of its use of Live Automated Facial Recognition technology on 21 December 2017 and 27 March 2018 and on an ongoing basis.” Divisão Civil da Corte de Apelação do Reino Unido. R (Bridges) v. CC South Wales & others. [2020] EWCA Civ 1058. Caso nº. C1/2019/2670. Data do julgamento: 11 de agosto de 2020. Decisão disponível em: https://www.judiciary.uk/judgments/r-bridges-v-cc-south-wales/. Consultado em: 20 de agosto de 2020.

[4] Art. 8º, CEDH. Direito ao respeito pela vida privada e familiar

1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver de acordo com a lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem estar econômico do país, para a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, para a proteção da saúde ou da moral ou para a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.

[5] BUNDESVERFASSUNGSGERICHT. Legal provisions on providing and obtaining information on subscriber data are unconstitutional. Press Release nº. 61/2020 of 17 July 2020. Order of 27 May 2020 – 1 BvR 1873/13, 1 BvR 2618/13 (Subscriber data II). Disponível em: https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Pressemitteilungen/EN/2020/bvg20-061.html;jsessionid=9D6938DE8FA454B102EABACB21C5293B.1_cid383. Consultado em: 21 de julho de 2020.

[6] DW. Police in Germany have too much access to personal online data, top court says. DW, 17 de juhlo de 2020. Disponível em: https://www.dw.com/en/germany-police-personal-data/a-54209653. Consultado em: 22 de julho de 2020.

[7] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal: 2017. Rio de Janeiro, 2018. Informativo, 12 p., e Notas Técnicas, 93 p. Catálogo disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101631. Informativo disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101631_informativo.pdf. Notas técnicas disponíveis em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101621_notas_tecnicas.pdf. Consultado em: 23 de junho de 2020; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018. Rio de Janeiro, 2020. Informativo, 12 p., e Notas Técnicas, 115 p Catálogo disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101705. Informativo disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101705_informativo.pdf. Notas técnicas disponíveis em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101674_notas_tecnicas.pdf. Consultado em: 23 de junho de 2020.

[8] VELASCO NÚÑEZ, Eloy. Límites a las investigaciones y a la prueba en el proceso penal. In: Delitos tecnológicos: definición, investigación y prueba en el proceso penal. Madrid: Editorial Jurídica Sepín, 2016. p. 22.

[9] Tradução livre. No original: “Eine zeitliche und räumliche “Rundumüberwachung” wird regelmäßig schon deshalb unzulässig sein, weil die Wahrscheinlichkeit groß ist, dass dabei höchstpersönliche Gespräche abgehört werden. Die Menschenwürde wird auch verletzt, wenn eine Überwachung sich über einen längeren Zeitraum erstreckt und derart umfassend ist, dass nahezu lückenlos alle Bewegungen und Lebensäußerungen des Betroffenen registriert werden und zur Grundlage für ein Persönlichkeitsprofil werden können.” ALEMANHA. Bundesverfassungsgerricht. Band 109, 279-323. Julgamento em 03 de março de 2004. Disponível em: https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Entscheidungen/DE/2004/03/rs20040303_1bvr237898.html. Consultado em 18 de junho de 2020.

[10] VELASCO NÚÑEZ, Eloy. Límites a las investigaciones y a la prueba en el proceso penal. In: Delitos tecnológicos: definición, investigación y prueba en el proceso penal. Madrid: Editorial Jurídica Sepín, 2016. p. 25.

[11] VELASCO NÚÑEZ, Eloy. Límites a las investigaciones y a la prueba en el proceso penal. In: Delitos tecnológicos: definición, investigación y prueba en el proceso penal. Madrid: Editorial Jurídica Sepín, 2016. p. 25.

[12] COMISSÃO EUROPEIA PARA A EFICÁCIA DA JUSTIÇA (CEPEJ). Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seu ambiente. Tradução para o português. Estrasburgo, 03 e 04 de dezembro de 2018, CEPEJ(2018)14. Disponível em: https://rm.coe.int/carta-etica-traduzida-para-portugues-revista/168093b7e0. Consultado em 17 de junho de 2020.

Autores

  • Brave

    é sócio da Geraldo Prado Consultoria Jurídica, desembargador aposentado do TJ-RJ e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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