Escritos de mulher

Lei "anticrime" favorece o crime ao mudar natureza jurídica do estelionato

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26 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
O chamado "pacote anticrime" ou "lei anticrime" proposta pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro foi sancionada e publicada em 24 de dezembro do ano passado e entrou em vigência em 23 de janeiro deste ano, sob o número 13.964/19, trazendo várias alterações para o sistema de justiça criminal, dentre elas a criação do juízo de garantias (até o momento ainda não implementado) e o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena de 30 para 40 anos, modificações com as quais grande parte da população concorda.

No entanto, ocorreu certa alteração no texto original, feita durante a tramitação do projeto pelo Congresso, que se mostra desnecessária e descabida. Trata-se da modificação da natureza jurídica da ação penal referente ao crime de estelionato, que de pública incondicionada passou a ser condicionada a representação de forma geral, salvo algumas exceções, como no caso de o crime ser praticado contra a administração pública de forma direta ou indireta, contra criança e adolescente, contra incapaz ou pessoa com deficiência mental ou maior de 70 anos.

É estranho que uma lei intitulada de "anticrime" venha a favorecer o crime. Não se pode olvidar que a representação da vítima no intuito de ver investigado e processado o autor do delito pode configurar um entrave ao andamento de um inquérito ou mesmo de uma ação penal, pois o prazo previsto para a representação é de seis meses a contar da data do fato.

Não raramente, as vítimas de crimes ardilosos como o estelionato levam certo tempo para perceber que foram logradas. Ainda assim, quando descobrem que foram induzidas a erro, tentam obter de volta os bens perdidos, procurando contato direto com o estelionatário, na esperança de resolver o problema "por bem", em conversa, num acordo, sem embate. Obviamente que tal expediente não surtirá efeito, pois as vítimas, muitas vezes ingênuas, não conseguirão convencer seu algoz a restituir o que lhes foi tomado.

Nesse interregno, não raramente, terão transcorridos os limitantes seis meses para representar perante a autoridade policial. Em outras palavras, a ideia de Moro ao propor o projeto anticrime restou pontualmente descaracterizada ao ser alterada, durante a tramitação no Congresso, a redação do crime de estelionato, fato que não vai ajudar a restaurar a lisura e o bom comportamento, mas, ao contrário, poderá aliviar bastante a situação de certos infratores.

Outra observação a se fazer sobre o tema é o fato de que o estelionato está previsto no Código Penal, no Título 2, Dos Crimes Contra o Patrimônio, dentre os quais se encontram o Furto, o Roubo, a Extorsão, a Usurpação, o Dano, a Apropriação Indébita, as Fraudes, a Duplicata Simulada, dentre outros.

Desta forma, a pergunta que não quer calar é: por que apenas o estelionato ficou dependente de representação? Com certeza, não é o caso de se supor, de antemão, que induzir alguém em erro, com o fim de obter vantagem ilícita, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento seria menos danoso do que praticar os demais crimes previstos no mesmo Capítulo VI, do Título 2, do Código Penal. Parece clara a existência de um interesse qualquer, inconfessável, relativo ao crime de estelionato, que resultou nesse descompasso legislativo, talvez com o fito de beneficiar interesses pessoais.

O excesso de burocracia incentiva a prática de delitos, "protegendo" o delinquente em prejuízo dos ofendidos. No meu ponto de vista pessoal, os crimes previstos no Código Penal, qualquer deles, poderiam dispensar a nefasta "representação", permitindo-se que a Polícia, o Ministério Público e a Justiça possam trabalhar com tranqüilidade na investigação, sem a mera formalidade da manifestação inequívoca da vítima, mesmo porque quando a noticia do fato chega à Delegacia de Polícia, levada pelo(a) próprio(a) ofendido(a), tal iniciativa já deixa clara a intenção de ver investigado o ocorrido, bem como o autor do delito.

É evidente que o parágrafo 5º, acrescido ao artigo 171 do CP por uma aparente distorção do pacote anticrime, não é na verdade "anticrime", mas "pró-crime". Tolher a iniciativa do Ministério Público na propositura da ação penal, dificultando a "persecutio criminis" não é medida condizente com a alegada finalidade da nova lei.

Além disso, tratando-se de norma de caráter procedimental, em tese e possivelmente, incidirá nas ações penais e nos inquéritos em curso, retroativamente, dependendo do entendimento em que se firmar a jurisprudência. Corremos o risco de ser obrigados a obter a representação das vítimas para a continuidade da persecução penal, já na fase processual. E, nesse aspecto, podemos prever que nem sempre será possível localizar prontamente o(a) ofendido(a), principalmente se passado muito tempo da ocorrência dos fatos.  Além disso, o possível atraso no andamento processual poderá acarretar a prescrição.

A jurisprudência tem se manifestado de forma pontual até o presente momento, havendo dois entendimentos: 1) de que se trata de norma de caráter material e procedimental e, nesse caso, será necessária a representação da vítima também nos processos em curso; ou 2) há posicionamento do STJ, que considero mais pertinente, da seguinte forma:

“A posição mais acertada seria a de que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo, considerando a condição de procedibilidade da representação e não de prosseguibilidade, conforme nos mostra Rogério Sanches” (STJ. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Relator, HC n. 573093 – SC – 2020/0086509-0).

Por fim, é de se concluir que a necessidade de representação inserida no artigo 171 do Código Penal foi um equívoco ou talvez um descuido ao beneficiar a criminalidade em detrimento das pessoas de bem.

Autores

  • é advogada, foi Promotora e Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo FHC. É autora de sete livros, entre os quais "A paixão no banco dos réus" (ed. Saraiva).

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