Opinião

O saneamento básico e o porvir: novidades e desafios para o Brasil

Autores

  • Ana Paula Destri Pavan

    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MPSC) atualmente lotada na 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Guaramirim (SC) mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) em dupla titulação com a Widener University Delaware Law School (Estados Unidos).

  • Gilson Jacobsen

    é juiz federal titular da 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Santa Catarina (3ª TRSC/TRF-4) e docente permanente do programa de pós-graduação em Ciência Jurídica (PPCJ) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

25 de agosto de 2020, 12h18

Apesar do isolamento social imposto pela Covid-19, parece importante que não deixemos para depois o enfrentamento de outros antigos e graves problemas que nos afligem e também matam.

Para além de milhares de mortes e do luto cada vez mais próximo de cada um, obliterar a realidade que nos circunda talvez seja uma das características mais nefastas dessa pandemia, como se tudo mais pudesse ficar em stand by.

No caso do saneamento — ou da falta dele —, o próprio governo [1] reconhece e informa que "cem milhões de brasileiros não contam com serviços de coleta de esgoto", assim como "35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada" no país.

Trata-se de uma triste e vergonhosa realidade que não pode ser esquecida em momento algum e que sobreleva a importância da recente inovação legislativa sobre o tema.

De fato, a Lei nº 14.026/2020 [2], que atualiza o Marco Legal do Saneamento no Brasil, alterou, entre outras, a Lei nº 11.445/2007 [3] e traz em seu texto algumas novidades que merecem menção, ainda que em breves linhas.

Vale lembrar que o texto do projeto aprovado por unanimidade no Senado Federal foi sancionado com 12 vetos presidenciais, os quais foram publicados através da Mensagem de Veto no 396/2020 [4]. O Congresso Nacional, por sua vez, finalmente se engajou e começou, no último dia 12 de agosto, por meio de suas sessões virtuais, a deliberar e eventualmente derrubar outros vetos presidenciais envolvendo temas de maior consenso [5].

Uma das mais relevantes alterações da nova lei consiste em vedar a prestação de serviços de saneamento por intermédio de contratos de programa, extinguindo a possibilidade de contratação, pelos municípios, de empresas estaduais de saneamento sem prévio procedimento licitatório.

A esse respeito, o artigo 10 da Lei nº 11.445/2007, com a nova redação dada pela Lei nº 14.026/2020, passa a prever, expressamente, que "a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal", vedando "a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária", bem como estipulando, no parágrafo 3º do referido artigo, que "os contratos de programa regulares vigentes permanecem em vigor até o advento do seu termo contratual".

Convém registrar que houve veto presidencial no tocante à possibilidade de renovação dos contratos de programa realizados sem licitação até 31 de março de 2022, com prazo máximo de vigência de 30 anos [6].

O novo texto legal traz, como um dos princípios fundamentais do setor, a prestação dos serviços de saneamento de forma regionalizada, de modo a estimular soluções dentre grupos de municípios, os quais continuam sendo os titulares desses serviços. Essa prestação regionalizada, por sua vez, dependerá das definições tomadas por cada região, uma vez que não ocorrerá em âmbito federal.

Em épocas de conurbações cada vez mais frequentes, nada mais natural que a nova legislação possibilite a adoção de planos regionais de saneamento, os quais terão preponderância sobre os planos municipais de saneamento, acaso existentes (artigo 17 e parágrafos da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Não obstante a autorização legislativa para a formação de blocos de municípios para a prestação de serviços de saneamento de forma regionalizada, "um dos pontos vetados pelo presidente Jair Bolsonaro obrigava a União a apoiar com dinheiro e assistência técnica a organização e a formação desses blocos municipais" [7].

Estipulam-se, ademais, como princípio fundamental para a prestação dos serviços públicos de saneamento, medidas visando à racionalização do consumo de água (artigo 2º, inciso XIII, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Já o artigo 8º, §4º, da Lei nº 11.445/2007, em sua nova redação, passa a permitir ao(s) chefe(s) do Poder Executivo "formalizar a gestão associada para o exercício de funções relativas aos serviços públicos de saneamento básico, ficando dispensada, em caso de convênio de cooperação, a necessidade de autorização legal".

Vale o registro, ainda, da previsão legal de cláusulas obrigatórias para os contratos de concessão dos serviços de saneamento, incluindo a definição e o cumprimento de metas para a sua universalização, de modo que os contratos vigentes e futuros ficam condicionados à comprovação de condições para viabilizar a universalização até 31 de dezembro de 2033 (artigo 10-A e artigo 10-B, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação). A esse respeito, a nova lei estabelece metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos, ambas até o término do referido prazo (artigo 11-B da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Nota-se, aí, um alinhamento, ainda que parcial, com a Agenda 2030 da ONU [8], especialmente com seu Objetivo de Desenvolvimento Sustentável no 6, mais precisamente as metas 6.1 e 6.2, que estabelecem até o ano de 2030 para se "alcançar o acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos”, bem como “o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto (…)".

A novel lei também veda a distribuição de lucros e dividendos pelo prestador de serviços de saneamento que estiver descumprindo as metas e os cronogramas do contrato específico em execução, de modo a estimular a consecução das metas contratuais de universalização desses serviços (artigo 11, §5º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Passa a haver, igualmente, a possibilidade de subdelegação dos serviços de saneamento contratados, observado o limite de 25% do valor do contrato, desde que haja previsão contratual ou autorização expressa do titular dos serviços (artigo 11-A da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Tocante aos empreendimentos habitacionais, os investidores imobiliários poderão adiantar investimentos no setor de saneamento a fim de que, posteriormente, sejam ressarcidos pelos prestadores dos respectivos serviços, inclusive com normas dispondo sobre regras de medição individualizada de consumo hídrico (artigo 18-A, parágrafo único, e artigo 29, §3º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Ademais, foi estabelecida regra alterando a revisão periódica dos planos de saneamento para período não superior a dez anos, bem como a possibilidade de elaboração de planos simplificados para os municípios com população inferior a 20 mil habitantes (artigo 19, §§4º e 9º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Passa a ser atribuição da Agência Nacional de Águas a elaboração das intituladas "normas de referência" para o setor de saneamento (artigo 22, inciso I, e artigo 25-A, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação), a fim de uniformizar a regulação da prestação desses serviços, haja vista que, antes da alteração legislativa, essa atribuição era realizada por inúmeras agências reguladoras ao longo do país, de modo desarmonioso e, em muitos casos, completamente informal.

Também surge previsão legal para que os serviços de saneamento possam ser remunerados através de taxa ou de tarifa, inclusive com a possibilidade de a cobrança ser efetuada na fatura de consumo de outros serviços públicos, desde que com a anuência da prestadora do serviço, a fim de se buscar sustentabilidade financeira (artigo 29 e §1º, e artigo 35, §1º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

A nova legislação, igualmente, permite a cobrança pela disponibilidade dos serviços de saneamento, não somente pela efetiva prestação. Além disso, fixou prazo não superior a um ano para que cada usuário realize a conexão devida às redes públicas, sob pena de a ligação ser feita pelo prestador do serviço, com a respectiva cobrança dos valores despendidos de cada usuário (artigo 45, §§4º e 6º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Ademais, a alteração legislativa autoriza a União a conceder benefícios ou incentivos fiscais, creditícios ou orçamentários como forma de estimular o alcance das metas de desempenho operacional dos serviços de saneamento (artigo 50, §5º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Prevê, ainda, a alteração do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento por uma nova base de dados com sistema auditado com informações do setor, o qual será organizado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional e terá a participação da ANA, para compatibilização com o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (artigo 53, §§3º, 4º e 6º, da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Por fim, considerando que o setor de saneamento tem abrangência interdisciplinar e diversos agentes atuantes, há previsão de um Comitê Interministerial de Saneamento Básico visando a coordenar as diferentes ações de gestão de recursos hídricos, saúde, meio ambiente e urbanismo (artigo 53-A da Lei nº 11.445/2007, com nova redação).

Desse modo, e sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, cumpre-nos registrar que ainda é muito cedo para se avaliar, com certeza, se as alterações legislativas recentemente sancionadas terão o condão de serem bastantes para o Brasil cumprir os compromissos nacionais e internacionais voluntariamente assumidos no tocante à prestação dos serviços de saneamento. O que certamente se antevê, por ora, é que muitos passos ainda precisarão ser dados no longo e importantíssimo caminho a ser percorrido para que tenhamos serviços de saneamento no Brasil à altura dos objetivos de desenvolvimento sustentável.

 


[1] GOVERNO DO BRASIL. Novo Marco de Saneamento é sancionado e garante avanços para o País. Notícias.

 Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/transito-e-transportes/2020/07/novo-marco-de-saneamento-e-sancionado-e-garante-avancos-para-o-pais. Acesso em: 11/8/2020.

[2] BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 julho 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14026.htm>. Acesso em: 16/7/2020.

[3] BRASIL. Lei nº 11.445, de 5 janeiro 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11445.htm>. Acesso em: 7/2020.

[4] BRASIL, Mensagem de veto nº 396, de 15 julho 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm>. Acesso em 16/7/2020.

[5] AGÊNCIA SENADO. Publicados 12 vetos ao marco legal do saneamento, 16 jul. 2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/16/publicados-12-vetos-ao-marco-legal-do-saneamento.> Acesso em: 17/7/2020.

[6] BRASIL, Mensagem de veto nº 396, de 15 julho 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm>. Acesso em 16/7/2020.

[7] AGÊNCIA SENADO. Publicados 12 vetos ao marco legal do saneamento, 16/7/2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/16/publicados-12-vetos-ao-marco-legal-do-saneamento.> Acesso em: 17/7/2020.

[8] NAÇÕES UNIDAS. ONU Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em: 8/2020.

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    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MPSC), atualmente lotada na 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Guaramirim (SC), mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) em dupla titulação com a Widener University Delaware Law School (Estados Unidos).

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    é juiz federal em Blumenau (SC), ex-promotor de Justiça e mestre em Ciência Jurídica pela Univali.

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