Opinião

Convicções como inimigas da verdade

Autor

  • Felipe Herdem Lima

    é mestre em Direito da Regulação pós-graduado em Direito Empresarial autor dos livros: Liquidação Extrajudicial e seu devido processo administrativo Direito Bancário: Conceitos básicos Sistema Financeiro Nacional Contemporâneo: regulação e desafios; Resolução Bancária: Aspectos controversos e Novas Tendências do Sistema Financeiro Nacional; e sócio do escritório Herdem & Latini Advogados.

25 de agosto de 2020, 6h34

Primeiramente, preciso dizer que possuo conhecimento do "campo minado" que estarei trilhando ao decidir realizar algumas considerações sobre a necessidade de reavaliação da presunção de veracidade da Administração. São vários os motivos que me levariam a não entrar nesse terreno ardiloso, como por exemplo a opinião majoritária da doutrina sobre a necessidade e importância do atributo, bem como o tempo que este princípio vigora em nosso ordenamento. No entanto, o meu gosto pela debate prevaleceu.

Dessa forma, imagino que o primeiro passo desta aventura seja conceituar, ainda que de forma bem didática, como a doutrina conceitua e classifica este princípio, que veja, não encontra qualquer amparo legal. Pois bem, doutrinadores relacionam em regra, a presunção de legalidade dos atos administrativos com o poder de autotutela ou imperatividade da administração, nesta hipótese, a presunção seria como pressuposto deste poder ou do próprio princípio da legalidade, destacando instintivamente estes atributos como implícitos nos ordenamento, decorrentes de seus princípios gerais [1]. Em sentido semelhante, Hely Lopes Meireles, identifica a presunção de legitimidade de qualquer ato administrativo, de qualquer espécie, "independentemente de qualquer norma que legal que a estabeleça". Para o professor, a presunção decorre do princípio da legalidade e "responde a exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não poderiam ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para após dar-lhes execução" [2].

Ocorre que a concepção mencionada acima, mantém-se ainda hoje, sendo possível, citar a título de exemplo, a observação de Alexandre de Moraes, no sentido de que a presunção de legalidade ou veracidade se sustenta como "manifestação da soberania estatal"; necessidade de garantir o pleno cumprimento do ato administrativo em virtude do interesse público almejado; e em razão "de controles administrativos e jurisdicionais sobre a legalidade e veracidade do ato" [3]. O reconhecimento dessas presunções em favor do ato administrativo também pode ser observado nas obras de Amílcar de Araújo Falcão [4], José Cretella Júnior [5], Odete Medauar [6], José dos Santos Carvalho Filho [7] e Fábio Medina Osório [8], entre outros. Assim, como resume Demian Guedes, em excelente obra sobre o tema, apesar de algumas diferenças terminológicas, a doutrina brasileira de um modo geral reconhece ao ato administrativo uma presunção de legalidade ou de legitimidade, atrelando a ele uma presunção de veracidade [9]. Vale lembrar que, para fins desta pequena reflexão, irei me concentrar apenas na presunção de veracidade dos atos administrativos, qual seja, a presunção de acerto dos pressupostos fáticos descritos ou apontados nos ato.

Feitas essas ponderações, o palco do debate se concentrará na virada do regime democrático e a vigência do Estado democrático de Direito, tendo como atriz coadjuvante a processualização da Administração Pública, horizontalizando a relação Estado-cidadão. O processo administrativo é hoje o palco da vivência diária do poder. Sobre esse prisma constitucional não é condizente mais se falar em presunção de veracidade como critério para distribuição do ônus da prova dentro do processo administrativo. Como expõe Guedes, a relação entre cidadão e Administração não pode mais se fundamentar num ato de fé, calcado unicamente na condição de autoridade pública do agente [10]. De maneira inversa, a relação deve primar pela razão, pela prevalência da verdade e da transparência no processo.

É inegável a função de instrumento do poder do processo administrativo, mas, também é necessário é primordial a garantia dos interesses e direitos dos particulares. Mas uma vez, Guedes é perfeito em sua colocação: "O processo deve ser compreendido, assim, não como um cenário de sujeição, mas como instrumento de uma relação de relação juridicamente equilibrada entre cidadão e Estado" [11]. Logo, garantias processuais constitucionais devem entrar nessa arena em favor do administrado, posto que os direitos constitucionais dos cidadãos não devem ser reduzidos por uma atividade administrativa autoritária, que se recusa a produzir prova de suas alegações, manejando intransponíveis óbices processuais ao administrado, que a todo tempo, vê-se obrigado a provar fatos negativos diante de um processo sem provas.

Os princípios e garantias constitucionais devem atuar como norteadores da Administração, incidindo também na atividade processual administrativa, tais como: publicidade, transparência, verdade material, imparcialidade e impessoalidade fazem da prova das alegações dos órgãos estatais um elemento essencial para a configuração de uma Administração Pública democrática e controlável [12]. Não está se propondo a imposição do ônus probatório sempre em desfavor da Administração Pública, nem que esta produza prova de todos os fatos alegados no processo, apenas como defende Guedes, o que se impõe aos órgãos estatais, diante da impugnação dos administrados, é o dever de comprovar as suas alegações de fato, cabendo ao particular, em regra, a prova das suas próprias afirmações, feitas em seu interesse.

O que não se pode admitir é uma distribuição irracional da distribuição do ônus da prova, que acaba por servir como um instrumento de autolegitimação das alegações estatais. Destarte, a presunção de veracidade deve ser afastada no decorrer do processo administrativo, admitindo-se a validade e a correção dos fundamentos de fato do ato da Administração até a sua impugnação pelo particular, em sede judicial ou administrativa. Em resumo, após a redemocratização do país, os papéis ainda estão invertidos, ou seja, não é mais o cidadão que precisa se reconciliar com a verdade, e sim, o Estado, mediante um processo administrativo que horizontalize a relação entre ambos e o respeito das garantias constitucionais, caso contrário deixaremos nosso passado nos governar de seu túmulo.

 


[1] A relação entre a referida presunção com os princípios da imperatividade dos atos administrativos (ou com a autotutela atribuída à Administração) é apontada também, entre muitos outros, por Paulo Magalhães da Costa Coelho: "Se os atos administrativos desde logo, são imperativos, tornando-se, portanto, obrigatórios, há que militar em seu favor a presunção iuris tantum de legalidade". (Coelho, Manual de direito administrativo. São Paulo : Saraiva, 2004p. 147).

[2] MEIRELES, Hely. Direito Administrativo brasileiro, 18 ed. São Paulo Malheiros, 1993. p. 141.

[3] MORAES. Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Atlas, 2005.

[4] FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao direito administrativo. DASP- Serviço de Documentação, 1960, p. 54.

[5] CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo do Brasil: v. 5 – Processo Administrativo. São Paulo: R. dos Tribunais, 1961, p. 37.

[6] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo brasileiro, 18 ed. São Paulo: R. dos Tribunais, 2000.

[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 200, p. 89.

[8] OSÓRIO. Fábio Medina. Direito Administrativo sancionador. São Paulo: R. dos Tribunais , 2000, p. 360.

[9] GUEDES, DEMIAN. Processo Administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 26.

[10] GUEDES, DEMIAN. Processo Administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 146.

[11] GUEDES, DEMIAN. Processo Administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 146.

[12] GUEDES, DEMIAN. Processo Administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 147.

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    é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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