Contas à Vista

O futuro não pode repetir o passado na votação de hoje da PEC do Fundeb

Autor

25 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam um país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos

O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para não, não para”

Agenor de Miranda Araujo Neto (Cazuza)/ Arnaldo Pires Brandão

O futuro da educação básica brasileira está hoje no centro do debate do Senado. Torcemos pela aprovação da PEC do Fundeb (PEC 26/2020), nos moldes relatados pelo Senador Flávio Arns. Contudo, sua tramitação sofre inúmeras pressões para repetir o passado e negar os avanços conquistados na Câmara dos Deputados no âmbito da PEC 15/2015.

Particularmente duas alterações têm sido propostas com maior ênfase pelos que, parafraseando a canção de Cazuza e Arnaldo Pires Brandão, defendem um “museu de grandes novidades”. Querem suprimir da PEC do Fundeb:

  1. a referência de padrão mínimo de qualidade vinculada a condições adequadas de oferta do ensino, cujo conceito de Custo Aluno Qualidade (CAQ)1 – tal como previsto no §7º a ser acrescido ao artigo 211 da Constituição – será regulamentado por lei complementar; bem como

  2. a vedação do uso dos recursos educacionais para pagamento de aposentadorias e pensões, de que trata o §7º a ser acrescido ao artigo 212 da CF.

Em ambos os dispositivos reside esforço de conter históricos desvios bilionários dos recursos educacionais, mas sempre há os que alegam cinicamente que a desigualdade educacional é problema grande demais para ser enfrentado operacional e estruturalmente na PEC do Fundeb.

Alguns dizem que não podemos padronizar que todas as escolas brasileiras devem ter biblioteca, banheiro, água tratada, coleta de esgoto e número máximo de alunos por professor etc. Todavia, não deixa de ser sintomático (hipocrisia fiscal?) que muitos desses são os mesmos que buscam permissivo para continuar a usar os escassos recursos educacionais para pagar aposentados e pensionistas em montante que, na federação, pode chegar à expressiva cifra de R$20 bilhões/ano2.

É oportuno lembrar que, no dia 17 de agosto deste ano e em votação UNÂNIME, o Supremo Tribunal Federal rechaçou — nos autos da ADI 5719 — o desvio dos recursos vinculados à educação para pagamento de inativos. Uma manobra dessa envergadura — como a feita pelos artigos 26 e 27 da Lei Complementar paulista 1.010/2007 e fraudulentamente reiterada pelo artigo 5º, inciso III da LC paulista 1333/2018 – é inconstitucional porque:

“a) ofende a competência legislativa da União – efetivamente exercida [no âmbito da LDB] – para a edição de normas gerais para a educação e ensino.

b) avilta o direito social fundamental à educação, pois prejudica a destinação de recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino.

c) afronta a racionalidade constitucional de destinação mínima de recursos provenientes da arrecadação para a educação, prevista no caput do art. 212 da CRFB.

d) ofende a proibição de vinculação de receita a despesa do art. 167, IV – pois despesas previdenciárias não constam da exceção à regra.” (grifos nossos)

Os quatro pilares acima firmados na ADI 5719 pelo STF refutam – forte e enfaticamente — quaisquer fraudes que visem quitar passivo previdenciário com os recursos vinculados da educação nos diversos entes da federação. Não cabe aviltar o financiamento da educação, mediante interpretação constitucionalmente ofensiva do artigo 70, inciso I e no artigo 71, VI da LDB. No piso em saúde, aludida fraude foi contida com a expressa dicção do artigo 4º, inciso I da LC 141/2012:

“Art. 4º Não constituirão despesas com ações e serviços públicos de saúde, para fins de apuração dos percentuais mínimos de que trata esta Lei Complementar, aquelas decorrentes de:

I – pagamento de aposentadorias e pensões, inclusive dos servidores da saúde;

Obviamente, inativos não mantêm e desenvolvem o ensino, tampouco executam ações e serviços públicos de saúde! Burlas a ambos os pisos para cobertura de passivo previdenciário, como bem situado pelo STF, configuram afronta à racionalidade constitucional dos deveres de destinação mínima às políticas públicas de educação e saúde, além de lesarem o rol taxativo de hipóteses excepcionais de afetação da receita de impostos, na forma do artigo 167, IV da CF.

Nesse sentido, vale resgatar o cristalino teor do Manual de Demonstrativos Fiscais, que é aplicável a todos os entes políticos e é elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Economia:

“[…] considerando a interpretação conjunta dos arts. 37 e 40 da Constituição, os arts. 70 e 71 da LDB, e o art. 22 da Lei 11.494/07, conclui-se que, para fins do limite constitucional com MDE [e dos recursos do FUNDEB], devem-se considerar apenas as despesas destinadas à remuneração e ao aperfeiçoamento dos profissionais em educação, e que exerçam cargo, emprego ou função na atividade de ensino, excluindo-se, por conseguinte, as despesas que envolvam gastos com inativos e pensionistas, pois a lei faz distinção entre as espécies de rendimento: remuneração, proventos e pensões. As despesas com inativos e pensionistas devem ser mais apropriadamente classificadas como Previdência.”3 (grifamos).

Tamanho é o consenso hermenêutico que o Tribunal de Contas da União, conforme Acórdão 851/2001-Plenário, bem reconhecera que a finalidade do Fundef/Fundeb não é pagamento de aposentadorias e pensões.

Assim, algumas propostas que têm assediado os Senadores na PEC do Fundeb sobre o cômputo de inativos com os recursos vinculados à educação são ideias que “não correspondem aos fatos” e apenas tentam fazer com que o futuro repita o passado com desvios, cuja inconstitucionalidade material e teleológica é flagrante. Que o Senado respeite, no precedente da ADI 5719, a integridade interpretativa do financiamento da educação, onde, por óbvio, não cabe o pagamento de aposentadorias e pensões.

Por outro lado, alguns dizem que “a educação já tem dinheiro demais” porque “o país vive uma transição demográfica”, mas esquecem-se de que há apenas três anos e meio foi universalizado o acesso à pré-escola e ao ensino médio. Ou seja, somente em 31 de dezembro de 2016 tornou-se efetivamente obrigatória a oferta estatal do ensino para todas as crianças e jovens de 4 a 17 anos, conforme o art. 6º da Emenda 59/2009.

Não há como aceitar a tese de médio e longo prazo acerca da transição demográfica, porque a realidade atual revela ainda uma colossal exclusão escolar. Ora, ainda estão fora da escola quase 2 milhões de brasileiros na faixa etária da educação básica obrigatória e apenas 1/3 das crianças de 0 a três anos tem acesso à creche.

Pregam a escassez como critério de eficiência abstrata e ontológica, ainda que a maioria da população brasileira adulta não tenha concluído o ensino médio, sendo que temos ainda 11 milhões de jovens e adultos analfabetos.

A suposta eficiência da imposição de subfinanciamento educacional tampouco resiste aos fatos, já que a evasão escolar no ensino médio nos custa R$ 214 bilhões por ano.

Negar maior financiamento e melhor alocação dos recursos educacionais é impor a escolha entre “matar ou morrer” em um país de PIB per capita pobre que prima, neste século XXI, por uma matriz exportadora típica do século XVI: produtos agropecuários e extrativismo mineral. Cazuza e Arnaldo Brandão nos avisam que é “melhor nem nascer” neste inverno educacional brasileiro.

Matamos e morremos como sociedade civilizada ao negarmos a prioridade orçamentária real da educação. Também é óbvio que somos economicamente subdesenvolvidos com baixa produtividade e reduzido potencial de inovação por consequência das nossas escolhas educacionais.

Mas a quem aproveita esse estado de coisas? Ainda parafraseando a canção que nos serve de epígrafe, negar a rastreabilidade dos custos e dos indicadores de gasto educacional a que o CAQ se refere, enquanto se busca manter o desvio dos recursos vinculados às atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino para pagar inativos, é ocultar que a “piscina tá cheia de ratos”.

Negar métricas de aferição operacional para o padrão mínimo de qualidade da educação básica obrigatória brasileira é “transformar o país num puteiro” de ignorância consentida, “pois assim se ganha mais dinheiro”.

Ironicamente, enquanto o financiamento da educação básica sofre severos riscos na PEC do Fundeb, persistem falhas consideráveis na capacidade de os entes federados cumprirem os artigos 11 e 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por que faltam recursos para a educação pública, enquanto abundam gastos tributários? Ora, a maioria das renúncias fiscais é concedida por prazo indeterminado e sem monitoramento da efetiva entrega das contrapartidas prometidas no ato da sua concessão.

Segundo Conceição Vilma Pinto, em artigo denominado “Os elevados e descoordenados benefícios fiscais do ICMS” ,

“Considerando uma amostra de 19 estados, que concentram cerca de 92% do total que é arrecadado via ICMS, observa-se que as renúncias tributárias do ICMS alcançaram, em 2018, o valor total de R$ 83,1 bilhões de reais. Em termos relativos ao que de fato foi arrecadado por esses estados, esse volume representa cerca de 18,6% do ICMS destes estados.

Se considerarmos o observado em 2012, segundo levantamento realizado pela Febrafite, estamos falando de um crescimento de 2,2% real do ICMS contra um crescimento real de 15,3% das renúncias. […] Mas, o que mais surpreende, além da falta de transparência fiscal, é a falta de avaliação. A inexistência de avaliação desses incentivos acabam por não permitir conhecer os custos versus benefícios das renúncias concedidas.” (grifo nosso)

Os dados recentemente analisados pelo Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (como se pode ler aqui) mostram bem a escalada das renúncias fiscais de ICMS:

De 2011 a 2019, o montante total de gastos tributários concedidos corresponde a praticamente um ano da arrecadação do principal tributo estadual (R$149,205 bilhões renunciado no período em face da arrecadação total de R$148,369 bilhões em 2019).

Além disso, no Estado mais rico da federação e que — até o julgamento da ADI 5719 — desviava cerca de R$6 bilhões anuais da manutenção e desenvolvimento do ensino para cobertura de passivo previdenciário, as renúncias fiscais de ICMS dobraram de valor na série histórica examinada: saíram de R$11,253 bilhões em 2011e foram a R$23,081 bilhões em 2019.

Tais dados revelam o quanto o debate do Fundeb no Senado reclama leitura íntegra e integrada das contas públicas de todos os entes da federação. Estamos hoje a debater como custear o efetivo progresso da educação básica obrigatória brasileira e isso passa pela ordenação legítima de prioridades orçamentárias.

Na PEC do Fundeb, não cabe repetir o passado do cômputo de inativos e de outros desvios, razão pela qual se impõe a aprovação do CAQ como parâmetro de controle do padrão mínimo de qualidade na aplicação dos recursos educacionais.

Como cantava indignadamente Cazuza, o tempo não para e veremos apenas um “museu de grandes novidades”, caso deixemos intactas as renúncias fiscais e neguemos efetividade ao custeio da política pública educacional.

Podemos e devemos ousar construir um futuro diferente, como suscitara o Ministro Edson Fachin no voto condutor da ADI 5719, na medida em que, para não repetirmos o passado, precisamos de uma “pedagogia da solidariedade da coexistência”:

"A educação, resposta e caminho para a promoção da igualdade e desenvolvimento humano, já era deficitária antes das vicissitudes da pandemia e demanda atenção e cuidado. Neste momento, urge a necessidade de se contemplar nas palavras do escritor Thomas Mann os horizontes de um mundo não nascido.

O imperativo da coexistencialidade se faz presente, e não há – para a teoria e prática do direito – caminho diverso da legalidade constitucional. A educação é direito de todos e dever do estado; direito social fundamental positivado na Constituição.

Desde o ensino fundamental aos cursos de pós-graduação, todos precisamos passar pela revolução do saber. O direito de ter acesso ao saber traz o dever de utilizá-lo como instrumento de transformação social e de majorar a compreensão inclusiva, plural e aberta da sociedade.

[…] Para a realidade do nosso país, essa é de fato uma contemplação de um mundo não nascido. […] Em um estado democrático de direito, ainda que vivamos momentos de emergência, é preciso que tenhamos atenção para o conhecimento próprio do direito e para o conjunto de regras que tutelam não somente a liberdade individual mas também a racionalidade coletiva o que, no espaço de normatividade da Constituição, se busca de maneira harmoniosa na coordenação de atribuição dos entes federativos.

Eis o desafio de se extrair do momento de crise interrogante a pedagogia da solidariedade da coexistência. É a partir desse olhar para a importância constitucional do direito à educação que se analisa a presente demanda" (grifos nossos)

Ao Senado, cabe hoje, pois, o inadiável papel de erigir os horizontes do mundo ainda não nascido plenamente no Brasil: dotar a educação pública brasileira de recursos suficientes para que ela promova a transformação social e a racionalidade coletiva que marcam a essência da nossa Constituição de 1988.

Desse modo, dois futuros estão postos para a escolha de cada qual das(os) senadoras(es): o que apenas repete o passado ou o que executa, de fato, o imperativo da coexistencialidade a que o STF se referia na ADI 5719. O tempo não para e todos seremos afetados pelo futuro do Fundeb hoje no Senado.


1 A respeito do CAQ, Salomão Ximenes e esta articulista escrevemos o seguinte artigo https://www.conjur.com.br/2020-ago-12/xavier-graziane-pinto-custo-aluno-qualidade-pec-fundeb

2 SOUZA, Fábio Araujo de. Inativos da educação: despesa da educação?. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação – Periódico científico editado pela ANPAE, [S.l.], v. 35, n. 3, p. 1018, dez. 2019. ISSN 2447-4193. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/95884>. Acesso em: 24 ago. 2020. DOI:https://doi.org/10.21573/vol35n32019.95884.

3 Trecho extraído da fl. 307 da 11ª edição do Manual, disponível em: <https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:33576>.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!