MP no debate

Nova tutela de evidência e sua (não) repercussão na indisponibilidade de bens

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24 de agosto de 2020, 8h00

O novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/2015, promulgado no dia 16 de março de 2015 com previsão de 1 (um) ano de vacatio legis (artigo 1.045), substituiu o antigo modelo de tutela antecipada pela sistematização de duas diferentes espécies de tutela provisória: de urgência e de evidência. Cuida-se das disposições contidas no Livro V, artigos 294 a 311, do diploma processual civil.

As tutelas provisórias de urgência, por seu turno, passaram a comportar duas outras subdivisões: quanto à satisfatividade da medida, revelam-se de forma cautelar ou antecipada; quanto ao momento processual, podem manifestar-se de modo antecedente ou incidental.

Neste diapasão, a tutela provisória de urgência antecipada ostenta cunho satisfativo, antecipando, de forma precária e carente de confirmação final, o direito ou o bem da vida pleiteado pelo autor. Lado outro, a tutela provisória de urgência cautelar, de feição meramente conservativa, garante medida capaz de assegurar a higidez do direito ou do bem da vida pleiteado no processo, sem, entrementes, antecipá-lo ao autor.

No que toca à tutela de evidência, o legislador inovou, regulando-a de forma expressa no Código de Processo Civil de 2015.

O artigo 311 da lei processual admite que o Juiz antecipe os efeitos da decisão final, transferindo ao réu o ônus da demora processual, quando presentes uma das quatro hipóteses previstas nos seus incisos (I a IV), independentemente o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.

Neste ponto, diferencia-se da tutela de urgência sobretudo por não exigir a presença de um dos clássicos requisitos da medida emergencial: o periculum in mora. Tradicionalmente, periculum in mora e fumus boni iuris são condições processuais sem as quais não é dado ao magistrado o deferimento de tutelas antecipatórias ou cautelares.

A novel conjectura legal da tutela de evidência, não obstante, prescindiu do perigo da demora, trazendo hipóteses que, se verificadas no caso concreto, já autorizam a antecipação. Trata-se dos casos enumerados no já mencionado artigo 3111 do diploma processual civil.

Feita a introdução acima, necessária à integral compreensão do tema aqui proposto, tratemos agora das espécies de tutela cautelar previstas na Lei de Improbidade Administrativa.

Como visto alhures, as cautelares estão inseridas no contexto das tutelas provisórias de urgência, a exigirem, como regra, a demonstração do fumus boni iuris e do periculum in mora.

Com efeito, a Lei nº 8.429/92 prevê três espécies de medidas cautelares: indisponibilidade de bens (art. 7º); sequestro (art. 16); e afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função (art. 20, parágrafo único).

No que tange à medida de indisponibilidade de bens (art.7º), esta funciona, cautelar que é, como medida assecuratória do resultado útil da tutela jurisdicional, garantindo que o réu na ação de improbidade administrativa terá patrimônio suficiente, ao final do processo, para o ressarcimento dos cofres públicos – ou para o pagamento da pena de multa.

Nesta senda, o art. 7º da lei de improbidade administrativa, acerca dos requisitos para a concessão da tutela cautelar de indisponibilidade de bens, dispõe que “quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado”.

O parágrafo único do art. 7º, por sua vez, dispõe que “a indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito”.

O Superior Tribunal de Justiça, ao tratar da cautelar em debate ainda na vigência do CPC/1973, pacificou entendimento no sentido de que o deferimento da medida de indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa, a despeito da natureza jurídica de cautelar, dispensa a comprovação do periculum in mora, isto é, a prova de que o demandado está de fato realizando atos concretos de dilapidação do seu patrimônio, bastando a demonstração do fumus boni iuris.

Ocorre que em grande parte dos julgados que fundamentaram a tese, o colendo Tribunal da Cidadania referiu-se a essa forma de cautelar como “tutela de evidência”. Por serem anteriores ao novo CPC, a nomenclatura aplicada queria demonstrar, única e exclusivamente, que se tratava de uma tutela cautelar com periculum in mora presumido, porquanto implícito no comando normativo: o caput do artigo 7º da LIA.

Na época, não havia regulamentação expressa e sistematizada da tutela de evidência no ordenamento jurídico brasileiro, malgrado algumas ressalvas doutrinárias2. De qualquer modo, quando falava em “tutela de evidência”, o STJ não tinha por base o revogado artigo 273, II, do CPC de 1973 ou qualquer outro dispositivo legal que pudesse vagamente remeter a uma medida deste viés, mas única e exclusivamente a própria literalidade do artigo 7º da Lei de Improbidade Administrativa, que não trouxe o perigo de dano como requisito da cautelar de indisponibilidade de bens, como já demonstrado.

É este o caminho perfilhado pelo precedente representativo da controvérsia. Trata-se do Recurso Especial nº 1.366.721/BA, decidido sob a sistemática dos recursos repetitivos em 19 de setembro de 2014. Antes, portanto, do Código de Processo Civil de 20153.

Para que não restem dúvidas. O STJ, na vigência do revogado Código de Processo Civil de 1973, consagrou de forma vinculante, por meio da sistemática de pacificação jurídica do julgamento de casos repetitivos, a tese de que a decretação cautelar da indisponibilidade de bens prevista no artigo 7º da Lei 8.429/92 não depende da comprovação do periculum in mora, pelos seguintes fundamentos:

1) O periculum in mora é presumido de forma absoluta na redação do dispositivo legal. Cuida-se de interpretação literal do caput do art. 7º da LIA, que não o previu de forma expressa;

2) Estamos diante de uma opção do legislador fundamentada na necessidade de máxima proteção do patrimônio público, porquanto a exigência de demonstração da dilapidação patrimonial praticamente esvaziaria o instituto, por caracterizar prova diabólica (de difícil ou impossível produção);

3) Esta opção legislativa encontra respaldo no artigo 37, §4º, da Constituição Federal, que prevê expressamente a indisponibilidade de bens como medida de combate à improbidade administrativa.

Resta claro, portanto, que o advento posterior do CPC de 2015 não tem o condão de revogar o entendimento consolidado no STJ. Ainda que, atualmente, haja regramento específico para a tutela de evidência, o entendimento jurisprudencial foi consolidado sob a sistemática anterior, mantendo-se intocáveis todos os fundamentos acima enumerados.

Quando o STJ, em suas decisões mais antigas, denominava “tutela de evidência” a indisponibilidade de bens nas ações de improbidade administrativa, obviamente não estava a referir-se à tutela de evidência que viria a ser regulamentada posteriormente no CPC de 2015, por um motivo muito simples: não existia o CPC de 2015! Aludia a Corte, na verdade, a uma específica modalidade de tutela diretamente extraída do artigo 7º da Lei 8.429/92. É elementar que as decisões mais recentes devem, outrossim, ser interpretadas à luz dos seus precedentes fundantes.

Sustentar posição diferente, argumentando que a medida cautelar de indisponibilidade de bens na sistemática processual da improbidade passou a estar sujeita ao regramento do novo artigo 311, como temos visto em algumas manifestações processuais, é flertar com a má-fé. Não há qualquer respaldo jurisprudencial ou mesmo doutrinário nesta linha de raciocínio.

Não ignoramos que há, sim, divergência quanto à necessidade de demonstração do perigo de dano na cautelar em questão, mas não em virtude da recente regulamentação da tutela de evidência. Trata-se, na verdade, de antiga discussão, pacificada pelo precedente repetitivo do STJ, mas ainda sujeito a críticas de parcela minoritária da doutrina.

Fato é que, caso perfilhemos a posição que considera a medida uma tutela de urgência, forçoso permanecer fiel ao precedente do colendo Tribunal da Cidadania, que trata o periculum in mora como requisito presumido iuris et iuris pela lei de regência. Lado outro, ainda que sigamos a orientação de que se trata de fato de uma tutela de evidência, o fundamento legal desta tutela é o próprio artigo 7º da Lei 8.429/92, não o artigo 311 do novo código de processo civil (como não era, na sistemática anterior, o artigo 273, II, do revogado diploma processual). Em qualquer dos casos, portanto, não se exige do autor do pedido que comprove o perigo de dano, nem qualquer ato de dilapidação patrimonial praticado pelo agente ímprobo.

A fim de espancar qualquer questionamento, atente-se à redação da tese de nº 12 da edição nº 38 do periódico “Jurisprudência em Teses” do STJ: “É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em ação civil Pública por ato de improbidade administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro.”

Claro está que, independentemente da vulgar discussão acerca da correta nomenclatura da medida cautelar (tutela de urgência com periculum in mora presumido ou tutela de evidência de regulamentação própria – art. 7º da LIA), não se discute que o fundamento da consolidada jurisprudência do STJ permanece íntegro. Superadas as filigranas terminológicas, qualquer mudança de orientação deve, destarte, partir do próprio STJ.

Por fim, ainda que superada toda a argumentação supra desenvolvida, no eventual confronto entre a previsão contida no artigo 7º da Lei de Improbidade Administrativa e as disposições do novo Código de Processo Civil, é cediço que, por tratar-se de lei especial, deve a primeira prevalecer sobre a segunda.

Assim, não obstante a superveniência do CPC de 2015, o deferimento da medida cautelar de indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa continua não exigindo a demonstração da dilapidação patrimonial. Tampouco, enquanto vigente a atual orientação do Superior Tribunal de Justiça, quaisquer das hipóteses previstas no artigo 311 do novo Código de Processo Civil.


1 Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:

I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte;

II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;

III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa;

 IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.

 Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.

2 Parcela da doutrina entendia que tutela de evidência tinha previsão dispersa e não sistematizada no CPC de 1973, a exemplo de Daniel Assumpção das Neves, que fala em previsão “espalhada” (NEVES. Daniel Amorim Neves. Novo Código de Processo Civil Comentado, 3ª Ed. Juspodivm, 2018). Há, ainda, quem mencione a hipótese prevista no artigo 273, II, do revogado código de processo civil de 1973 como exemplo de tutela de evidência. Tratava-se de previsão equivalente ao atual artigo 311, I, do CPC de 2015, que permite a antecipação dos efeitos da tutela (satisfativa) quando caracterizado o abuso no direito de defesa.

3 “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. APLICAÇÃO DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CAUTELAR DE INDISPONIBILIDADE DOS BENS DO PROMOVIDO. DECRETAÇÃO. REQUISITOS. EXEGESE DO ART. 7º DA LEI N. 8.429/1992, QUANTO AO PERICULUM IN MORA PRESUMIDO. MATÉRIA PACIFICADA PELA COLENDA PRIMEIRA SEÇÃO. 3. A respeito do tema, a Colenda Primeira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 1.319.515/ES, de relatoria do em. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator para acórdão Ministro Mauro Campbell Marques (DJe 21/9/2012), reafirmou o entendimento consagrado em diversos precedentes (…), de que no comando do art. 7º da Lei 8.429/1992, verifica-se que a indisponibilidade dos bens é cabível quando o julgador entender presentes fortes indícios de responsabilidade na prática de ato de improbidade que cause dano ao Erário, estando o periculum in mora implícito no referido dispositivo, atendendo determinação contida no art. 37, § 4º, da Constituição, segundo a qual os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível'. O periculum in mora, em verdade, milita em favor da sociedade, representada pelo requerente da medida de bloqueio de bens, porquanto esta Corte Superior já apontou pelo entendimento segundo o qual, em casos de indisponibilidade patrimonial por imputação de conduta ímproba lesiva ao erário, esse requisito é implícito ao comando normativo do art. 7º da Lei n. 8.429/92. Assim, a Lei de Improbidade Administrativa, diante dos velozes tráfegos, ocultamento ou dilapidação patrimoniais, possibilitados por instrumentos tecnológicos de comunicação de dados que tornaria irreversível o ressarcimento ao erário e devolução do produto do enriquecimento ilícito por prática de ato ímprobo, buscou dar efetividade à norma afastando o requisito da demonstração do periculum in mora (art. 823 do CPC), este, intrínseco a toda medida cautelar sumária (art. 789 do CPC), admitindo que tal requisito seja presumido à preambular garantia de recuperação do patrimônio do público, da coletividade, bem assim do acréscimo patrimonial ilegalmente auferido". 5. Portanto, a medida cautelar em exame, própria das ações regidas pela Lei de Improbidade Administrativa, não está condicionada à comprovação de que o réu esteja dilapidando seu patrimônio, ou na iminência de fazê-lo, tendo em vista que o periculum in mora encontra-se implícito no comando legal que rege, de forma peculiar, o sistema de cautelaridade na ação de improbidade administrativa, sendo possível ao juízo que preside a referida ação, fundamentadamente, decretar a indisponibilidade de bens do demandado, quando presentes fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa”.

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