Direito Civil Atual

Vigilância em saúde na pandemia viola direitos de personalidade do paciente?

Autor

  • Renata Oliveira Almeida Menezes

    é Professora Adjunta de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte professora da Pós-graduação lato sensu da Universidade Federal de Pernambuco Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais - Universidade Federal de Campina Grande e Universidad del Museo Social Argentino; Mestre e Doutoranda em Direito Privado – Universidade Federal de Pernambuco e Universidade de Lisboa.

24 de agosto de 2020, 11h43

Os direitos da personalidade dos pacientes, que se correlacionam à intimidade, na relação clínica ou hospitalar têm tutela reforçada pelo dever deontológico de sigilo. Esse compromisso de honrar a confidencialidade necessária para a operacionalização dos cuidados de saúde, não é restrito aos médicos, são igualmente responsáveis todos os demais profissionais da área e as instituições que intervierem no caso clínico ou tiverem acesso à documentação.

Não raras são as vezes em que ocorre a devassa dos dados sensíveis dos pacientes, sem que haja a correta ponderação dos direitos da personalidade atingidos, mesmo quando há possibilidade de se mitigar os danos e, ainda assim, conseguir atingir os interesses públicos pretendidos. A pandemia causada pela COVID-19 apresenta uma situação emergencial, em que as providências em sede de gestão pública e sanitária requerem urgência, mas é premente se verificar se a vigilância em saúde necessariamente implica em violação dos direitos da personalidade dos pacientes.

História clínica ou processo clínico é o suporte biográfico da assistência sanitária de um paciente e o seu acesso irrestrito por terceiros pode colocar em risco direitos da personalidade, especialmente a intimidade, o sigilo e a integridade moral e psíquica. Deste modo, a titularidade da história clínica é reflexo da titularidade dos direitos da personalidade, cabe em regra aos pacientes.

Considerando-se que “o serviço da saúde e o benefício social têm limites. Um limite intransponível está no benefício da Pessoa que se destinam a servir. Só esta os justifica […]”1; há que se delimitar a extensão da vigilância em saúde e da notificação compulsória de doenças e agravos no contexto da pandemia, para garantir a proteção dos direitos da personalidade dos pacientes, e para que se proteja a dignidade contra uma exegese meramente utilitarista do direito à saúde.

Devido à variabilidade biológica, os efeitos dos fatores que causam doenças e suas consequências somente são caracterizados significativamente a níveis grupais2, demonstrando a importância da vigilância em saúde. Trata-se de processo contínuo e sistemático para a coleta, consolidação e disseminação de dados, que mapeia a situação sanitária da população brasileira, denominado;3 e fundamenta-se nos princípios da universalidade, integralidade e equidade.4

Trata-se de medida pública contumaz e essencial na busca pela eficácia do Sistema Único de Saúde, que para conseguir dados bioestatísticos imprescindíveis à uma gestão eficaz da saúde, acaba por ter acesso a conteúdo sensível contido nas histórias clínicas dos pacientes.

A pandemia atual é uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional 5 e Internacional, o que faz com que seja mais constante e precise ser mais ágil o acesso dos dados e a obtenção de informações relacionadas à COVID-19, por parte das autoridades sanitárias. Esse imediatismo enseja ampla divulgação informacional, nas plataformas digitais oficiais do governo e na imprensa; ressaltando a necessidade de anonimato sobre os dados identificativos dos pacientes que serviram para a contabilização dos casos da doença.

O monitoramento da extensão doença no Brasil e a análise comparativa com outros países auxilia na gestão da crise, inclusive no que tange as decisões sobre a alocação de recursos públicos para a aquisição de fármacos e de equipamentos biotecnológicos; disponibilização de leitos; e viabilidade e necessidade de medidas de isolamento social, setorizadas ou não.

Nesse aspecto o dever de notificação compulsória é destacado pois obriga os médicos, demais profissionais de saúde e instituições de saúde a comunicarem as ocorrências diretamente ao Ministério da Saúde ou às secretarias de saúde municipal e estadual, que devem, por fim, remeter todas as informações ao Ministério e às demais esferas de gestão do SUS.

Deve ser feita a notificação compulsória quando houver suspeita ou confirmação de doença, agravo ou evento de saúde pública6; em complemento, a Lei 6.259 de 19757, afirma no artigo 7º, inciso I, que se aplica aos casos de doenças que podem implicar em medidas de isolamento ou quarentena, e no insico II, de doenças constantes na relação elaborada pelo MS.

A COVID-19 enquadra-se na previsão expressa no inciso I, o fato de requerer medidas de isolamento e quarentena, já basta para que enseje o dever de notificação. Já sobre o inciso II, a Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020, ao dispor a Lista Nacional de Notificação Compulsória, abarca outras modalidades do Coronavírus8, mas nela não consta a COVID-19.

A doença causada pelo Coronavírus na versão atual pode: ser assintomática; ter sintomas leves, configurando Síndrome Gripal; ou ser mais grave, resultar em Síndrome Respiratória Aguda Grave. A Nota Técnica Nº 20/2020 do Ministério da Saúde, de 17 de abril de 2020, ao estabelecer a notificação imediata de casos de Síndrome Gripal via plataforma do eSUS VE e de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave hospitalizada no SIVEP-Gripe, acabou por preconizar o dever de notificação da COVID-19. Há doenças e agravos que são de notificação semanal, porém a infecção pelo novo Coronavírus enseja a notificação compulsória imediata – em até vinte e quatro horas a partir do conhecimento da ocorrência.

Ora, se revelação do estado de saúde de uma pessoa atenta contra a personalidade, por desrespeitar o segredo profissional que se destina à proteção dos doentes9; a providência de notificação imediata, tão necessária para a gestão da crise, demanda mais ainda do Direito um constante controle eficacial da dignidade, igualmente rápido.

O Ministério da Saúde dispõe de modelo de Ficha de Investigação de Síndrome Gripal Suspeito de Doença Pelo Coronavírus 2019 – COVID-19 (B34.2); ela auxilia na padronização da notificação; esclarece quais dados são essenciais para a vigilância em saúde; agiliza o monitoramento e a análise dos dados. Esse aumento de fluxo informacional sublinha a necessidade constante de equilibrar os propósitos públicos com a tutela da pessoa individualizada.

Há cessão, em alguma medida de privacidade, quando se concede aos outros o acesso às histórias pessoais ou aos corpos, mas se mantém algum controle sobre as informações.10 Esse comando é efeito do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e consequentemente, da liberdade geral de ação; que na acepção positiva afirma que a pessoa é livre para se autogerenciar; e na negativa, impõe abstenção de terceiros, inclusive médicos, de invadirem a esfera individual do paciente.11

Na gestão dos seus desígnios está inserida a autonomia para ampliar ou restringir o acesso de terceiros aos dados pessoais clínicos, mas a carga negativa da liberdade geral de ação não necessariamente é desrespeitada por ser implementada a vigilância em saúde na pandemia atual; tampouco esse procedimento implica em ignorar as características dos direitos da personalidade, violando ou dispondo dos direitos à intimidade, ao sigilo e à integridade moral e psíquica.

Essa regra aplica-se contanto que o procedimento de notificação se atenha ao previsto nas plataformas competentes; não adicionem às fichas outras informações desnecessárias para os fins públicos e vexatórias para os titulares das histórias clínicas; e que as autoridades públicas, gestoras e sanitárias, ajam adstritas à divulgação dos dados necessários.

Em contraposição, situação não condizente com a tutela dos direitos da personalidade é configurada quando se divulgam os dados da COVID-19, sem preservar o anonimato dos enfermos ou mortos. Romper o anonimato não ocorre somente quando há a divulgação da identidade específica do indivíduo infectado, pode ocorrer se os entes públicos, ao publicarem mapas de rastreio dos casos de portadores da doença, forem tão minuciosos a ponto de terceiros conseguirem identificar o endereço dos enfermos, e consequentemente, identificá-los.

Ora, se com o aparecimento da doença cria-se uma nova situação de vida à qual o paciente tem que se adaptar; um reajustamento complicado e multidimensional;12 é indiscutível que o desrespeito aos direitos da personalidade é capaz de piorar os processos secundários do quadro clínico, que eventualmente podem consumir mais energias até que os aspectos fisiológicos de defesa, por ter a potencialidade de afetar a parte psíquica do doente.

De modo que a tutela da intimidade, via o direito ao sigilo médico, é imprescindível para que se proteja e se honre a confiança imprescindíveis ao atendimento clínico e hospitalar; e, por consequência, para que se estabeleça com eficácia a proteção global do enfermo. Em que pese a necessidade e a importância da vigilância em saúde, ainda que em situações extremas de pandemia, é dever da gestão pública não se olvidar que a proteção universal da pessoa, engloba o respeito à individualidade, e que deve-se, ao máximo, buscar a compatibilização entre interesse público e interesse privado.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Ensaios clínicos – ponderações ético-jurídicas. In: GOZZO, Débora; LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012.

2 COGGON, David. A importância da estatística na pesquisa em saúde. Cogitare Enferm. Jan/Mar; 20(1). 2015, p. 10.

3 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Curso de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

4 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Vigilância em Saúde. Brasília: 2017. Disponível em: https://www.saude.gov.br/vigilancia-em-saude/sobre-vigilancia-em-saude. Acesso em: 17 de junho de 2020, p. 5.

5 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020 . Brasília: 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0204_17_02_2016.html. Acesso em: 17 de junho de 2020.

6 Art. 2º, VI, da Portaria 204/2016, do Ministério da Saúde.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 204, de 17 de fevereiro de 2016 . Brasília: 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0204_17_02_2016.html. Acesso em: 17 de junho de 2020.

7 Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências.

8 No item 43 consta “Síndrome Respiratória Aguda Grave associada a Coronavírus. SARS-CoVb. MERS- CoV”.

9 RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Traité de Droit Civil: D’après le Traité de Planiol. Tome Premier. Paris: Librairie de Droit et de Jurisprudence, 1956, p. 348.

10 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press, 1994, p. 418.

11 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Paciente terminal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Curitiba: Juruá Editora, 2017, p. 36.

12 BALINT, Michael. O médico, o seu doente e a doença. Lisboa: Climepsi Editores, 1998, p. 231.

Autores

  • é Professora Adjunta de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, professora da Pós-graduação lato sensu da Universidade Federal de Pernambuco, Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais - Universidade Federal de Campina Grande e Universidad del Museo Social Argentino; Mestre e Doutoranda em Direito Privado – Universidade Federal de Pernambuco e Universidade de Lisboa.

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