Opinião

Breves notas sobre o PL nº 4207/20

Autor

  • Dayana de Carvalho Uhdre

    é procuradora do Estado do Paraná doutoranda pela Universidade Católica de Lisboa mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) pós-graduada pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e membro da Comissão de Inovação e Gestão da OAB-PR.

24 de agosto de 2020, 16h09

Já não se pode falar que o protocolo bitcoin, primeira e mais conhecida aplicabilidade do que se convencionou chamar tecnologia blockchain, esteja ensaiando os seus primeiros passos. O protocolo bitcoin já ultrapassou sua primeira década de existência, deixando de ser tecnologia conhecida na restrita comunidade de cyberpunks e/ou simpatizantes, passando a ter a atenção de praticamente todos os "Estados-nações". E, nesse universo "cripto", são quatro os principais focos de preocupações e das incursões regulatórias estatais: I) utilização das criptomoedas para fins criminosos (evasão de divisas, lavagem de dinheiro, financiamento ao tráfico e ao terrorismo); II) captação pública de valores e a necessária proteção dos investidores; III) higidez do sistema financeiro e monetário; e IV) tributação.

O Brasil não está alheio a isso. O PL nº 4207/20, mais recente proposta legislativa sobre o assunto, traz em suas exposições de motivos de forma expressa justamente as quatro ordens de preocupações acima mencionadas. Antes, porém de verificarmos se de fato esses quatro eixos foram tratados no referido projeto, salutar algumas notas sobre a nomenclatura utilizada pelo legislador: afinal dar nome e sentido à realidade com que lidamos é condição inafastável à identificação do que pretendemos regular.

Notas sobre os termos usados
Ao nos imiscuirmos sobre ao que visa o diploma regular, encontramos algumas dificuldades, confusões e perplexidades. O PL nº 4207 é uma das cinco propostas legislativas atualmente em trâmite [1]. E em cada um deles distintos termos são utilizados para identificar as realidades que visam normatizar. Moedas digitais, moedas virtuais, criptomoedas, fichas digitais representativas de bens e direitos, tokens, tokens virtuais, criptoativos, ativos digitais são alguns deles. Uma tal multiplicidade induz a confusões semânticas que ao invés de maior segurança jurídica redundam em caos e perplexidades, em verdadeira contra-marcha ao estabelecimento de ambiente propício ao desenvolvimento tecnológico.

Inexiste consenso mundial quanto aos termos ou expressões mais adequadas para se referir a essa realidade, mas já se identifica uma tendência [2]. Criptoativos ou tokens têm sido termos usados para se referirem ao gênero dos ativos criptográficos existentes em plataformas de registro distribuído (DLT, blockchains). "Criptomoeda" é vocábulo usado para identificar uma das espécies de criptoativos. O critério de discriminem aqui é a função por esse criptoativo exercida no protocolo em que inserido. Daí ser clássica a classificação dos criptoativos em "criptomoedas" (quando exercida algumas das funções econômicas da moeda), “tokens de investimentos” (quando se verifique o desempenho de papéis subsumíveis ao conceito jurídico de valor mobiliário).

Por se tratar de discussões e debates que transcendem a realidade de uma única jurisdição, parece consentâneo ao princípio da simplicidade, e eficiência regulatória, fazer-se uso de nomenclaturas mais uníssonas em um cenário global.  No entanto, a opção do legislador do PL nº 2702/20 fora pelo termo mais genérico "ativos virtuais", que congregaria "qualquer representação digital de um valor, criptografado ou não, que não seja emitido por banco central ou qualquer autoridade pública, no país ou no exterior, e que seja aceito ou transacionado como meio de troca ou de pagamento; e os ativos virtuais intangíveis ('tokens') que representem, em formato digital, bens, serviços ou um ou mais direitos, que não se enquadrem no conceito de valor mobiliário".  

Tal escolha é válida ao buscar flexibilidade e maior capilaridade sob o que poderia estar sob o âmbito da tutela estatal. No entanto, contrapondo os incisos I e II do artigo 2º entre si e também com o artigo 7º do mesmo projeto de lei, detectamos que em que pese tal opção mais generalista algumas contradições merecem um exame mais detido por parte de nossos congressistas. Primeiro, interessante notar que foram utilizadas duas definições distintas para se referir ao gênero "ativo virtual", sendo que apenas a segunda definição recebera a identificação específica de "ativo virtuais intangível" ou "token". Ocorre que em última instância tudo é intangível: tudo são ativos virtuais. E mais, ingressando na segunda definição (o de "token") é possível tomá-la como o todo. Ora, ao se identificar tokens como representações digitais que representem bens, serviços ou direitos que possam ser emitidos, registrados, transacionados ou transferidos tal definição abrange representações digitais de valores que sirvam como meios de pagamento, afinal são de direitos que ao fim e ao cabo se tratam.

Segundo, restara afastada da noção de ativo digital intangível (token) as representações de bens, serviços e direitos que redundem no conceito de valor mobiliário. Entretanto, no artigo 7º da proposta legislativa é estabelecido que caberá  à "Comissão de Valores Mobiliares a supervisão e a regulação da atividade descrita no artigo 1º, nas circunstâncias específicas em que a emissão, a transação ou a transferência dos ativos virtuais seja compatível com a natureza de valores mobiliários". Assim, ao mesmo tempo que afasta do conceito de tokens as representações digitais que detenham "natureza" de valores mobiliários, as reconhecem como pertencente àquela definição, tornando ainda mais confusa sua definição.

Assim, nos parece que melhor teria andado a propostas se tivesse feito uso do termo "token" como gênero, esclarecendo que se trataria de representação digital de quaisquer bens, serviços e direitos, sejam bens, serviços e direitos emitido, registrado, retido, transacionado ou transferido por meio de dispositivo eletrônico compartilhado, que possibilite identificar, direta ou indiretamente, o titular desse token virtual. Tal gênero, a seu turno, poderia ser desmembrado em espécies consoante a funcionalidade principal para que vocacionada: payment token, security -tokens, e utility-tokens, em consonância à tendência que já se tem verificado aqui e alhures.

Sobre o PL nº 4207/20 vis a vis os quatro eixos de risco
Regressando aos quatros eixos de preocupações anteriormente elencados, análise do PL nº 4207/20 nos revela que todos eles, ainda que brevemente, foram contemplados. Relativamente à utilização desses ativos virtuais para fins criminosos, a proposta prevê que as pessoas (física ou jurídicas) que exerçam "as atividades de intermediação, custódia, distribuição, liquidação, transação, emissão ou gestão de ativos virtuais por ordem e conta de terceiros" estarão sujeitas às obrigações determinadas nos artigos 10 e 11 da Lei nº 9.613/1998. Ainda propõe a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP).

Quanto ao risco de captação pública de valores e a necessária proteção dos investidores-consumidores, a proposta legislativa traz em seus artigos 3º, 4º e 7º inúmeros dispositivos que visam a minorar as assimetrias informacionais nesse mercado, bem como os riscos de fraudes, seja na emissão de esses ativos, seja na custódia e liquidação dos mesmo. Destarte, autoriza que apenas pessoas jurídicas poderão emitir tokens desde que esses ativos tenham finalidade compatível ao mercado ou a atividade exercida pela empresa emissora, e observadas as condições por aquela lei impostas (artigo 3º, caput).

Ainda prevê a possibilidade de empreendimentos cujo objeto social consista especificamente em emitir, intermediar, custodiar, distribuir, liquidar, negociar e/ou administrar ativos virtuais para terceiros (artigo 4º, caput). Nesse caso, os empreendimentos deverão se constituir sob a forma societária anônima ou por quotas de responsabilidade limitada, o capital social deverá ser de ao menos R$ 100 mil, e deverão manter segregados os ativos virtuais pertencentes a si daqueles pertencentes aos terceiros para quem prestam serviços (artigo 4º, incisos I, II e III). Ainda as pessoas que exerçam o efetivo controle e administração dessas sociedades empresariais deverão possuir reputação ilibada e competência técnica necessária para o desempenho de suas funções artigo 4º §3º.

No artigo 4º aduz ser dever das exchanges o de prestar informações aos investidores-consumidores de forma clara, precisa, não enganosa (inclusive relacionada a eventual obrigação fiscal), bem como proibindo-as de fornecer informações promocionais que possam induzir decisões imprecisas ou não fundamentadas (artigo 4º, IV, V, VI, VII, VIII). Há  ainda a preocupação em se preservar captação, armazenamento e utilização indevida dos dados pessoais desses investidores-consumidores por essas empresas que intermediam — direta ou indiretamente —operações com esses ativos virtuais (artigo 4º, § 4º, incisos I, III, XI e XII). Obviamente que tais dispositivo não afastam a aplicação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), mas apenas reforçam a necessidade de se garantia a adequada proteção dos dados pessoais, mormente em um mercado tendencialmente fluido e global.

Por fim, relativamente ao terceiro e quarto eixo de preocupações, apenas poucas linhas foram endereçadas (artigos 5º e 6º). Em síntese, a proposta apenas direciona aos órgão competentes, no caso Bacen e Receita Federal do Brasil, o gerenciamento dos riscos relativos à: I) higidez do sistema financeiro e monetário; e à II) tributação dessas "manifestações de riqueza". Relativamente ao viés tributário, restara incompleta a proposta, posto que por sermos um Estado federado, as transações com esses ativos virtuais poderão também estar sob a tutela das autoridades fiscais dos Estados e/ou municípios.

Algumas considerações
Não temos de inventar a roda. Muitas vezes apenas estamos apenas diante de novas formas de se realizarem operações já atualmente realizadas e cujos riscos foram já objeto de tratamento jurídico. Daí que, sob o aspecto jurídico, não se trata de regulamentar os "tokens" em si, mas as operações com ele realizadas e que tenham implicações jurídicas. E, para se identificar se tais operações têm implicações jurídicas devemos reconhecer os riscos jurídicos [3] atrelados às transações, em exame, com aqueles tokens realizadas.

O desafio, portanto, é adaptar o regramento posto, que tinha por cenário algumas formas conhecidas de se realizarem os comportamentos reprováveis — e por isso objeto de regramento —, a essas novas ferramentas facilitadoras desses mesmos comportamentos desconformes.  E nesse mister estarão envolvidos todos os agentes que exerçam papéis centrais na salvaguarda dos interesses jurídicos potencialmente atingidos pelos riscos mais relevantes que esse novo ferramental pode impingir.

Daí que, em que pese as críticas feitas, é de se pontuar que andara bem a Proposta nº 4207/20 ao buscar atribuir aos entes competentes para lidar com as matérias elencadas como de tutela prioritária a tarefa de adaptarem suas normativas vigentes a fim de minorarem os riscos relacionados aos seus descumprimentos, por meio da utilização dos ativos digitais.

 

[1] Os outros quatro seriam os projetos de lei nº 2303/2015 e nº 2060/2019 da Câmara dos Deputados, e projetos de lei nº 3825/2019, nº 3949/2019 e nº 4207/20 do Senado Federal.

[2] Sobre o assunto vide: UHDRE, Dayana de Carvalho.Criptomoedas, criptoativos, tokens? Do Caos à uma tentativa de organização. Disponível na URL: <https://comunidade.thelegalhub.com.br/direito-digital/criptomoedas-criptoativos-tokens-do-caos-a-uma-tentativa-de-organizacao>.

[3] Sobre o assunto, vide: COLLOMB, A., DE FILIPPI, P., & SOK, K. (2019). blockchain Technology and Financial Regulation: A Risk-Based Approach to the Regulation of ICOs. European Journal of Risk Regulation, 10(2), 263-314.

Autores

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    é procuradora do estado do Paraná, professora de Direito Tributário da Fapi – Faculdade de Direito de Pinhais, professora convidada no curso de pós-graduação em Direito Tributário da Academia de Direito Constitucional (Abdconst) e professora seminarista no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet). Doutoranda pela Universidade Católica de Lisboa, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-graduada pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e graduada em Direito pela UFPR. Membro da Comissão de Direito Tributário e da Comissão de Inovação e Gestão da OAB-PR, além de coordenadora do Grupo de Discussão Permanente de Criptoativos da seccional.

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