Embargos culturais

A carta de Caminha e a história como uma galeria com poucos originais e muitas cópias

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
Em passagem de sua carta Pero Vaz de Caminha constatou que nenhum dos indígenas que viu era “fanado”. Isto é, nenhum deles era circuncidado. Pode-se imaginar até onde ia a curiosidade do escrivão da esquadra de Cabral. Mas há nessa informação um aspecto nada suspeito, e que vai selar o futuro (de destruição em massa) dos habitantes dessa terra. Os europeus do século XV acreditavam que as pessoas poderiam ser cristãs, ou muçulmanas ou judias. Se os nativos não eram fanados (circuncidados) não seriam judeus. E também não seriam cristãos ou muçulmanos. O que fazer com eles?

Esse é o pano de fundo da fórmula de domínio, e outro ponto que diferencia a ocupação portuguesa no Brasil da ocupação inglesa na América do Norte. Os protestantes ingleses (que se acreditavam eleitos para a Graça Divina) não se preocupavam em catequisar os nativos. Não se movimentaram nesse sentido, pelo menos até o século XIX, quando os metodistas pensaram seriamente em conquistar a alma do gentio. Por outro lado, a catequese era preocupação permanente do católico. E porque os nativos andavam nus (não cobriam as vergonhas) formatou-se uma concepção edênica. Essa terra era o paraíso, e aqui o habitante não havia caído no pecado original. Esse ponto foi explorado por Sérgio Buarque de Holanda em belíssimo livro (Visões do Paraíso).

A Carta de Caminha pode ser alegoricamente considerada como uma certidão de nascimento do Brasil. Com um certo esforço, naturalmente. À época não havia mínima ideia de que seríamos um dia um Estado independente. Autor e destinatário da carta (o Escrivão e o Rei) transitavam em espaço contido nas fronteiras de Portugal, ainda que alargadas. Justificava-se a posse portuguesa em terras do Novo Mundo, que ainda não se sabia novo. Além do que, atestava-se o pioneirismo lusitano (que já se fazia envolvente desde Os Lusíadas).

Trata-se também (e agora em sentido prático e utilitário) de ato cartorial que deu início a regime de propriedade, centrada no Estado, modelo que mais tarde se cristalizou definitivamente na Lei de Terras de 1850, fórmula definitiva desenhada no Segundo Reinado. Com a lei de terras negou-se a posse da terra a escravos foragidos. Tem-se em torno (e a partir) da carta de Caminha a justificativa histórica para todo o sistema cartorial brasileiro. A carta pode ser entendida como um ato documental que nos vincula culturalmente a Portugal. E é também um ato de fé e de desconfiança. Seria possível?

A carta, era um gênero literário que também se encontrava em narrativas de viagens. Uma carta se prestava para propósitos muito bem definidos. A carta de Caminha não foge à regra; pelo contrário, a comprova. Pode ser lida ao lado de vários outros relatos de viajantes, a exemplo de Jean de Lèry, Hans Staden, Gândavo, Cardim, von Koseritz, Ribeyrolles, Saint-Hilaire, Rugendas, Debret, e tantos outros. Para quem se interesse por direito, o relato mais interessante é de von Martius, alemão que esteve no Brasil entre 1817 a 1820 e que nos deixou interessantíssimas informações sobre o estado do direito entre os autóctones.

A carta de Caminha vincula a terra descoberta a Portugal e prepara a justificativa para o domínio absoluto da região. Algumas informações contidas na carta dão também conta de que o Brasil (cujo nome ainda não utilizavam) era a utopia que há muito buscavam. É um documento cartorial justificativo de posse (e de propriedade), de acordo com a tradição do direito romano. Atendia-se ao princípio da uti possidetis (quem possui continua possuindo), que foi definitivamente adotado no Tratado de Madrid, em 1750, que garantiu para Portugal terras além da linha de Tordesilhas, por obra bélica dos bandeirantes e por obra diplomática de Alexandre de Gusmão.

A carta de Caminha é tratada nos manuais de história e de literatura como documento que atesta a presença da esquadra de Cabral no Brasil, legitimando-se a posse da terra, bem como vínculo cultural que nos faria herdeiros diretos da tradição lusitana. Seus traços heroicos marcam uma posse que não era fictícia, que no plano fático fez-se pela força das armas. Prepara justificativa para o genocídio, sem que se fale da carnificina que seria feita.

Esse documento ganha também aura de mistério, quando se lembra que a carta caiu no esquecimento, perdida na Torre do Tombo em Portugal, ao lado de tantos outros documentos, à espera de uso. É documento híbrido. Não é texto ficcional. Compartilha uma visão do paraíso, percepção que desenvolvia no mundo renascentista. Historiografia tradicional, centrada em Capistrano de Abreu, e cheia de romantismo ufanista, outorgou à carta de Caminha o sentido de “(…) diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura (…)”. Por outro lado, para Nelson Werneck Sodré, em leitura bem menos ingênua, fazia-se um louvor em favor do nativo, no sentido de que o escriba português não se furtava de “(…) deliciosa e esmerada descrição de seus corpos [dos ameríndios] e de seus ornamentos, não escondendo detalhe algum e pondo sempre em evidência dotes corporais que saltavam à vista”.

Há uma ênfase nas qualidades do Brasil, a exemplo de um solo ubérrimo. Não se pode esquecer que a carta não era um documento escrito com o objetivo de divulgação ou de publicação. O fato de estar na Torre do Tombo, por tanto tempo, é prova de que se pretendia que a carta não fosse divulgada. Pode-se também pensar a carta de Caminha como um documento jurídico. Tinha em mira certos efeitos burocráticos.

A carta foi aproveitada pela tradição que se desenvolveu no Brasil, e que nos vincula a Portugal. No sentido literário, marca-se linha que nos aproxima da tradição literária lusitana. Juridicamente tem-se um arquétipo cartorial, relativo às linhas de posse e de propriedade da terra, ainda antes do modelo das sesmarias e das capitanias hereditárias.

Na Carta, Caminha principia com explicação dos porquês do documento. Lembra que ainda que se Cabral e demais capitães da frota redigissem relatos sobre o achamento da terra nova, daria testemunho próprio. Pede que o Rei tome por boa vontade o seu esforço. É modesto. Enfatiza que outros relatarão bem melhor do que ele. Realista, registra que só escreverá sobre o que sabe.

Dizendo-se neutro, afirmava categoricamente que não aformosearia nem afearia o relato. Insiste em proposições como achamento e terra nova, o que provavelmente nos remete a categorias romanísticas clássicas de res nullius, isto é, de terras de ninguém. Caminha insiste que não falaria do caminho que traçaram (marinhagem e singraduras do caminho). O assunto seria mais de técnica náutica, e o burocrata não tinha conhecimento para tanto. Lembra que a esquadra partiu de Belém, numa segunda-feira, 9 de março. Alcançaram as Ilhas Canárias no dia 14 do mesmo mês. No dia 22 de março chegaram às Ilhas de Cabo Verde. Narrou que a nau de Vasco de Ataíde se perdeu. Seguiram caminho, depois de infrutíferas buscas por Vasco de Ataíde. No dia 21 de abril a esquadra deu conta de sinais de terra. No dia seguinte, 22 de abril, verificaram aves, às quais chamaram de fura-buxos.

Terra à vista; ao que consta um monte, ao qual chamaram de Monte Pascoal. E a terra nominaram de Terra de Vera Cruz. Ancoraram. Avançaram por terra firme no dia seguinte, e então avistaram homens que andavam pela praia. Caminha descreve os nativos: “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. Mas estavam armados: “nas mãos traziam arcos com suas setas”. Segue uma troca de objetos, o que já revela estranhamento mútuo. O português oferece um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, além de um chapéu preto. O nativo respondia com um chapéu (que Caminha chama de sombreiro) de penas de ave, “compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio, e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas”. Segundo Caminha, trocavam arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer outra coisa.

O capitão Nicolau Coelho avançou pelo rio que então teriam encontrado. Caminha revela espanto. Relatou que os homens traziam bicos de osso nos beiços. Alguns tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau. As moças eram gentis, “com cabelos muito prestos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Caminha está obcecado com a nudez das mulheres que via; uma delas, prossegue, tinha “tão bem feita e tão redonda a sua vergonha (…) tão graciosa, que muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela”. Em o outro passo registrou que via “vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que não havia vergonha alguma”. É muita vergonha, ou um sem-vergonha, como diria Dona Zulmira, minha querida avó, falecida, a quem tanto devo: ela me ensinou a tabuada do 7.

Caminha constatou e insistiu que os nativos não eram circuncidados (nenhum deles era fanado). O rito católico deu o ritmo do evento. Caminha menciona uma missa, que afirma ter sido por todos ouvida com muito prazer e devoção. Não sei se entenderam. Ao fim da missa os nativos pulavam, tocavam estranhas buzinas. Caminha conta que os autóctones traziam nas testas, “de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece [parecia] uma fita preta, de largura de dois dedos”. A feição era parda, “maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos”. Registrava que “os cabelos (…) eram corredios e andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas”.

O anúncio da dominação que seguiria o encontro revela-se quando Caminha registra que [os nativos] “não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja a viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que as terras e as árvores de si lançam”. Registrou que não havia certeza da existência de “ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal e ferro”. Havia muita água, “infindas”. Caminha tratou da religião na parte final da carta. É o momento mais dramático do registro: “nenhuma idolatria, nem adoração tem”. Para Caminha o melhor fruto que o Rei poderia colher estava na possibilidade da salvação daquela gente.

Reitera que escreveu com sinceridade, pede desculpas por ter se alongado e roga que o Rei se digne a trazer da ilha de São Tomé, a um tal Jorge de Osório, genro do escrivão. Alguns veem nesse pedido um indício de uma cultura de favores, que teríamos herdado de Portugal. É o ponto de partida para uma mania nacional que consiste em nos rebaixarmos. Uma colonização inglesa poderia ter feito de nós uma imensa Jamaica. Uma colonização francesa poderia ter feito de nós um imenso Haiti. Uma colonização holandesa poderia ter feito de nós um imenso Suriname. Como saber?

O fecho da carta de Caminha, com a suposta troca de favores é, para muitos, a chave interpretativa de nossa condição, projetando-se em outras categorias como “jeitinho brasileiro” (DaMatta) e cordialismo (Buarque de Holanda). Essa premissa, colocada de modo mais sofisticado, é nominada de patrimonialismo, assunto explorado por Raymundo Faoro, cujo livro seminal tratarei nas próximas intervenções.

Quanto à carta de Caminha, por aqui não havia cartórios e nem tabeliães, mas o registro ficou, provando-se a supremacia da fonte escrita, aberta, no entanto, a todo tipo de interpretações. A história é uma galeria de quadros, em que há poucos originais e muitas cópias, escreveu Tocqueville. A carta de Caminha, nesse sentido, é a certidão de nascimento para a expansão comercial nessas terras, ao mesmo tempo em que é a certidão de óbito para todos aqueles que atiçaram a curiosidade de Caminha e de sua chusma.

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