Diário de classe

O Direito e o papel do constrangimento no processo civilizador

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22 de agosto de 2020, 8h00

Em 1939, ano em que a barbárie tomava conta da Europa com o início da Segunda Grande Guerra, o sociólogo e historiador das ciências Norbert Elias, ironicamente, publicou seu Processo Civilizador1. Talvez por isso, a obra de Elias foi arremessada a um certo limbo acadêmico, ganhando notoriedade somente com uma tradução em língua inglesa, cerca de três décadas após a edição alemã.

Basicamente, a tese sustentada em seu livro era a de que o declínio da violência no Velho Continente encontrava relação com uma espécie de viragem psicológica, seminalmente localizada nos séculos XI e XII, período em que os europeus, segundo ele, passaram a refrear seus impulsos de modo geral. Passaram a prever, com isso, não apenas as consequências de seus atos no longo prazo, como, ainda, a levar em consideração o que pensavam e sentiam outras pessoas.

Esse processo, segundo Elias, amadureceu mais fortemente entre os séculos XVII e XVIII, projetando uma incipiente transição entre barbárie e civilização, a partir de uma curiosa fonte de informação documental: os manuais de etiqueta — incluindo aí as famosas “utopias” — da época. Neles, o Processo Civilizador encontrou uma série de condutas que, a sua maneira, constrangiam determinados comportamentos, até então naturalizados na cotidianidade, mas que passaram a ser considerados, digamos, “deselegantes”2. Ou seja, ao prescrever determinadas condutas, davam pistas descritivas de como era a vida na Europa do Medievo e dos primeiros ventos da Modernidade Política, em sua fase de amadurecimento, com o surgimento do Estado — compreendido aqui como forma de organização social e política eminentemente moderna.

Na raiz desse contexto de eixo temporal e comportamental, o uso de facas reúne um dos mais emblemáticos exemplos encontrados por Elias. Ao ter sua utilização cada vez mais reduzida à mesa a partir das prescrições desses mesmos manuais, desembainhá-las para apontar à face de alguém foi, com o tempo, tornando-se cada vez mais constrangedor3. Evidentemente, embora o percurso civilizatório — jamais completo, diga-se — não possa encontrar nesses manuais de boas maneiras as suas causas definitivas ou sequer uma espécie de mítico marco zero desse processo — e nem são essas as nossas intenções aqui —, o ponto relevante é perceber que uma determinada conduta, até então naturalizada, passava a ser, finalmente, “constrangida”.

E o que se depreende disso?

Para além das conclusões de Elias, bem inseridas em um inegável contexto histórico, essa “ideia” — a do “constrangimento” — é o ponto de partida para avançar, aqui, a um interessante encadeamento propositivo envolvendo o Direito. Afinal, se ele é um mais que robusto ingrediente no caldo que nos faz transitar da barbárie à civilização, talvez seu ápice (civilizatório) não esteja localizado justamente no seu edifício, mas no constrangimento que impõe a sua observação. Quero dizer, Constituições são, claro, “civilizantes”, mas “civilizado” mesmo é o respeito a seu texto. Ou seja, se a já distante aurora da Modernidade Política é condição de possibilidade a intersubjetivos horizontes republicanos, permitindo o surgimento de um Direito democraticamente produzido, é o constrangimento ao respeito a esse mesmo Direito a condição de possibilidade a um bem demarcado espaço de civilidade.

Em miúdos, isso significa que é preciso o estabelecimento de formas de controle, ou seja, de “constrangimento” — notadamente, como boas teorias da decisão. É o que Lenio Streck4 vai chamar de “constrangimento epistemológico” — como um “não pode ser assim” que, talvez, coloque-se entre as expressões associadas a sua obra mais significativas de nossa atualidade, diga-se, tão marcada por polarizantes posicionamentos políticos e morais5.

Para resumir (e finalizar): a Constituição, ao propor uma wittgensteiniana forma de vida, estabelece, com isso, também seus alicerces e limites, sobremodo, contra particularismos e subjetividades. O edifício sempre inacabado e em constante movimento da “civilização” está aí. Já seu “processo” — ou seu empreendimento civilizatório, como um caminho também sempre sem fim — depende, para além de um mero estabelecimento, da unidade dessa mesma linguagem pública que o constitui. Mas o que permite essa unidade? A resposta: na babel de nossos desacordos morais, o sentido civilizante do Direito — em outras palavras, o que lhe faz linguagem pública — está na sua autonomia, condição possível, claro, somente através de filtros a constranger em direção à respostas — para usar outra expressão streckeana — constitucionalmente adequadas.


1 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

2 Como exemplos, do século XIII, o De la zinquanta cortesie da távola, de Bonvesin de la Riva: “Regras para cavalheiros: quando assoar o nariz ou tossir, vire-se de modo que nada caia em cima da mesa”, ou o De civitate morum puerilium, de Erasmo, no século XVI: “Assoar o nariz no chapéu ou na roupa é grosseiro, e fazê-lo com o braço ou o cotovelo é coisa de mercador”. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 147-148.

3 O psicólogo Steven Pinker, reconhecido leitor de Elias, ao elencar um significativo catálogo de exemplos dados pelo autor do Processo Civilizador envolvendo o uso de facas, diz: “Foi durante essa transição que o garfo passou a ser de uso comum como utensílio de mesa […] Facas especiais foram postas à mesa para que as pessoas não tivessem de desembainhar as delas, e eram feitas com pontas redondas em vez de agudas […] Só se deve usar uma faca quando é absolutamente necessário”. PINKER, Steven. Os anjos bons de nossa natureza. Tradução de Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 2013, p. 119-120.

4 Em seu Dicionário de Hermenêutica, Streck diz que “o constrangimento epistêmico ou epistemológico se coloca, assim, como mecanismo de controle das manifestações arbitrárias do sujeito moderno. Isso porque o problema central desse sujeito “assujeitador” […] reside na indiferença radical por ele manifestada em relação a qualquer forma de exterioridade, quer seja divina, mundana, quer social. O sujeito torna-se estranho a tudo que não é ele, como se os olhos se tivessem virado nas órbitas para olharem apenas para suas próprias cavidades”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2020.

5 Como, por exemplo, o tão recente quanto lamentável estupro de uma menina de dez anos de idade e a farisaica discussão em torno do aborto tema abordado nesta mesma semana por Streck na Conjur (aqui).

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