Opinião

Um breve estudo sobre o RE 766.304

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22 de agosto de 2020, 15h13

Para quem não sabe, no último dia 7 foi iniciado no âmbito do Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 766304, na sistemática de repercussão geral, que trata da possibilidade ou não de o Judiciário determinar a nomeação de candidato, preterido em concurso público, em ação ajuizada após o prazo de validade do concurso.

O apelo extremo, que chegou à corte em agosto de 2013, fora interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul em face de acórdão que entendeu ser possível a propositura de ação judicial visando à nomeação para cargo público, mesmo após esgotado o prazo de validade do certame (melhor, prazo de eficácia). Alegou-se, no recurso, violação ao artigo 37, inciso III, da Constituição da República, segundo o qual o prazo de "validade" do concurso público é de até dois anos, prorrogável uma vez por igual período.

No caso concreto, ocorreu o seguinte: a candidata foi aprovada em concurso para cargo de professor do magistério estadual na décima colocação. Não obstante isso, acabou sendo contratada apenas temporariamente, ou seja, de forma precária e sob outro regime. Para a turma recursal houve preterição, mesmo a contratação emergencial de professores tendo ocorrido após a expiração do prazo de "validade" do certame.

Há quase sete anos, foi reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional relativa a essa questão.

O relator, ministro Marco Aurélio, considerou que o prazo previsto no artigo 37, inciso III, da CRFB seria decadencial. Assim, em tese, o candidato só poderia propor a ação dentro desse período para postular sua nomeação. Não obstante isso, no caso concreto, não havia como acolher o pedido autoral, notadamente pelo fato de a alegada preterição ter ocorrido apenas após o prazo de eficácia do certame. Ao final do voto, foi proposta a seguinte tese:

"A nomeação, considerado concurso público, deve ser buscada, judicialmente, no prazo de validade nele previsto".

Antes do pedido de vista do ministro Edson Fachin, o entendimento do relator foi acompanhando por Luiz Fux e Alexandre de Moraes, tendo este último desenhado uma tese própria (e mais detalhada):

"A ação judicial visando ao reconhecimento do direito à nomeação de candidato aprovado fora das vagas previstas no edital (cadastro de reserva) deve (a) ser ajuizada dentro do prazo de validade do concurso público e (b) ter por causa de pedir preterição ocorrida na vigência do certame".

Pedindo todas as vênias, é difícil extrair tais conclusões de um dispositivo constitucional que trata tão somente do prazo de eficácia do concurso público (artigo 37, inciso III). Nele não se falou em prazo prescricional, mas tão somente do período em que a Administração está autorizada a convocar os candidatos aprovados. Não se pode olvidar o entendimento de que a prescrição é regida pelo princípio da actio nata, sendo certo que o curso do prazo prescricional somente tem início com a efetiva lesão do direito tutelado, oportunidade em que nasce a pretensão a ser deduzida em juízo, caso resistida.

No entanto, é necessário separar as coisas, distinguir os casos.

Para o candidato aprovado dentro do número de vagas previsto no edital, não há como acionar a Administração, porquanto, até o último dia do prazo de "validade" do certame, ela tem a discricionariedade de proceder à nomeação.

Já se, durante o aludido período, ocorrer alguma forma de preterição do candidato aprovado dentro do número de vagas previsto no edital e daquele que, mesmo fora, comprove que há vagas suficientes para alcançar sua colocação, pode-se, em tese, propor uma ação judicial pleiteando a nomeação. Assim, a partir da lesão, surge para o candidato a possibilidade de impugnar os desvios cometidos, por meio de ação judicial.

Diante desse entendimento, como conceber que, encerrado o prazo de eficácia do certame, o candidato fique de mãos amarradas? Será um estímulo para a Administração ocultar, da maneira mais eficaz possível, as contratações irregulares, até o fim do referido prazo.

Com a devida vênia, os ministros da Suprema Corte estão criando um prazo decadencial para o candidato questionar judicialmente atos ilícitos da Administração a partir de uma leitura do inciso III do artigo 37 da Carta Magna, quando essa não foi a vontade do constituinte. Pelo que se sabe, o que está em vigor ainda no que diz respeito às ações contra a Fazenda Pública é o artigo 1º do Decreto nº 20.910⁄1932, segundo o qual "todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescreve em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem".

De prazo decadencial, mais uma vez pedindo vênia, não se trata, conforme decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça, uniformizador dos entendimentos sobre a legislação federal:

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PRETERIÇÃO. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. INOCORRÊNCIA. 1. 2. Esta Corte tem o entendimento de que a prescrição é regida pelo princípio da actio nata, sendo certo que o curso do prazo somente tem início com a efetiva lesão do direito tutelado, oportunidade em que nasce a pretensão a ser deduzida em juízo, caso resistida. 3. O ajuizamento de ação após o término do prazo de validade de concurso público não caracteriza caducidade, decadência ou falta de interesse processual, quando a parte tenta demonstrar a existência de ilegalidade em seu curso. 4. Hipótese em que foi manejada ação ordinária que alega preterição em concurso público dentro do prazo previsto no artigo 1º do Decreto n. 20.910/1932. 5. Agravo interno desprovido". (AgInt no REsp 1279735/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/06/2018, DJe 08/08/2018)

De fato, no âmbito dessa Corte Superior não há qualquer vacilação sobre a matéria. Confira-se mais um precedente da 1ª Turma [1]:

"PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. CONCURSO PÚBLICO. INTERESSE DE AGIR DO AUTOR. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES DESTA CORTE. NÃO INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL VIOLADO. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DA SÚMULA N. 284⁄STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. […] II – O acórdão recorrido adotou entendimento consolidado nesta Corte, segundo o qual "as normas previstas na Lei 7.144⁄1983 aplicam-se meramente a atos concernentes ao concurso público, nos quais não se insere, contudo, a controvérsia instaurada sobre aventada preterição ao direito público subjetivo de nomeação para o candidato aprovado e classificado dentro do número de vagas ofertadas no edital de abertura, hipótese para a qual o prazo é o previsto no Decreto 20.910⁄1932" (AgRg no REsp 1487720⁄RS, 2ªT., Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 24⁄11⁄2014)." (AgInt no REsp 1653425⁄DF, Relatora Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, DJe 09⁄06⁄2017).

Agora, um da 2ª Turma [2]:

"PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DO ART. 535 CPC⁄73. AGENTE FISCAL DO IMPOSTO ADUANEIRO. RESULTADO HOMOLOGADO EM 29⁄6⁄1962. PRORROGAÇÃO DO PRAZO. LEI 4.863⁄65. REVOGAÇÃO PELA EC 8⁄77. DIREITO À NOMEAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES. […] 2. Não deve ser reconhecida a prescrição de fundo de direito, haja vista que o termo a quo para o prazo prescricional se dá a partir da ocorrência do ato lesivo, que, no caso concreto, se deu com a efetiva preterição à nomeação no concurso público debatido, tendo sido manejada a demanda dentro do lapso temporal de cinco anos. […]". (REsp 1583522⁄SP, Relator Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe 22⁄04⁄2016)

Assim, ainda se tem esperança de que o ministro Edson Fachin, civilista de escol, que pediu vistas no caso em questão, consiga iluminar o caminho para que a corte possa enxergar uma solução justa, sem provocar mais angústias para aqueles que tanto lutam para serem nomeados para um cargo público.

 


[1] Seguindo a mesma linha: AgRg no REsp 1384574⁄MS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe 20⁄2⁄2015 e AgInt no AREsp 1213831/ES, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 7/12/2018.

[2] E mais: AgRg no REsp 1577607⁄RS, Relator Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 27⁄05⁄2016 e REsp 1666688⁄SP, Relator Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 9⁄10⁄2017.

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