Ambiente Jurídico

Obstrução de fiscalização ambiental constitui crime

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

22 de agosto de 2020, 8h00

A Lei 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências, constitui um dos mais importantes diplomas normativos de tutela do meio ambiente em nosso país.

Spacca
Apesar de ser chamada popularmente de "Lei de Crimes Ambientais", seu conteúdo é bem mais alargado, abrangendo dispositivos relacionados também à responsabilidade civil (artigo 4º), ao processo penal ambiental (artigos 25 a 28), a infrações administrativas ambientais e respectivo processo (artigos 70 a 76) e à cooperação internacional para preservação do meio ambiente (artigos 77 a 78).

No campo penal propriamente dito, a Lei de Defesa do Meio Ambiente (como preferimos chama-la) tipifica, de forma estruturada, crimes contra a fauna (artigos 29 a 37), contra a flora (artigos 38 a 53), crimes de poluição e assemelhados (artigos 54 a 61), crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio Cultural (artigos 62 e 65) e, finalmente, os crimes contra a administração ambiental (artigos 66 a 69-A).

Na seção V do Capítulo V, que trata dos crimes contra a administração ambiental, a Lei de Defesa do Meio Ambiente buscou tutelar a credibilidade e o bom funcionamento dos órgãos públicos incumbidos do trato de questões ambientais, incriminando condutas que podem ser praticadas tanto por funcionários públicos (crimes próprios tipificados nos artigos 66 e 67) quanto por qualquer agente (artigos 68 a 69-A).

Ao referir-se à administração ambiental, a legislação repressiva buscou estabelecer normas protetivas para o amplo rol de atividades do poder público (aparelhamento preordenado à atuação na área do meio ambiente), incluindo todos os órgãos, pessoas jurídicas e agentes que as executam, visando tutelar o normal desenvolvimento de qualquer dos Poderes dos entes da Federação, protegendo-os de ataques que possam atingir a sua existência, o seu prestígio e a sua eficácia[1].

Dispositivo que merece especial atenção, pelo seu alcance e relevância prática na lida cotidiana dos agentes públicos incumbidos da defesa do meio ambiente, é o relacionado ao crime que denominamos de “Obstrução de Fiscalização Ambiental”, previsto no art. 69, que assim dispõe:

Art. 69. Obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.

Como se sabe, a Constituição Federal, em seu artigo 23, incumbiu expressamente todos os entes integrantes da Federação da obrigação de  proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos (III);  impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (IV),  proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (VI), bem como preservar as florestas, a fauna e a flora (VII).

Nesse cenário, como bem observa Alexandre Sikinowski Saltz[2]:

Se a administração está obrigada a exercer o seu poder de polícia ambiental a ninguém é dado obstaculizar ou criar embaraços a tal ação, seja o órgão federal, estadual o municipal. E a ação fiscal protegida pela norma incriminadora compreende as quatro acepções de ambiente, alcançando não apenas o ambienta natural, senão o artificial, o cultural e o do trabalho também.

O objeto jurídico tutelado pelo tipo penal, segundo a lição de Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, é a proteção do meio ambiente, através da repressão a qualquer conduta que possa inibir a ação fiscalizadora do Estado. Portanto, o que a norma persegue é que o Estado fiscalize eventuais infrações de maneira eficiente.[3]

Trata-se de crime comum, em que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, podendo alcançar, inclusive, servidores públicos e pessoas jurídicas. As vítimas são o Estado e a coletividade, considerando que o bom funcionamento da administração pública ambiental, para além de um dever do poder público, é um direito de toda a sociedade.

Cuida-se de delito de mera conduta e perigo abstrato[4], cuja configuração prescinde de qualquer resultado naturalístico ou de dano ambiental. A simples dificuldade criada é suficiente para a consumação do delito, mesmo que a fiscalização, ao final, se concretize[5].

O tipo subjetivo caracteriza-se com a vontade livre e consciente de criar obstáculos ou dificultar a ação fiscalizadora do órgão ambiental, “não se perquirindo as razões pelas quais o autor resistiu à fiscalização ambiental” (STJ – HC 131.791/RJ, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, Sexta Turma, DJe 03.10.2011).

Já a conduta incriminada se verifica ao obstar (opor-se, causar obstáculo, criar embaraço, obstruir, impedir) ou dificultar (atrapalhar, prejudicar, perturbar, estorvar, embaraçar) a ação fiscalizadora (exercício de funções relacionadas a inspeção, policiamento, verificação, vistoria, exame, controle) do Poder Público (abrangendo qualquer órgão público que tenha por missão o exercício de fiscalização) no trato de questões ambientais.

Entendemos que a conduta típica se verifica não somente quando cometida em relação a agentes integrantes do Poder Executivo (como fiscais ambientais, polícia ambiental e agentes de órgãos integrantes do Sisnama), podendo se verificar em relação a membros do Ministério Público (ex: promotor de Justiça que ao fazer diligência para verificação do cumprimento de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta, tem acesso negado ao empreendimento objeto do acordo); do Poder Judiciário (ex: Juiz de Direito  que, durante inspeção judicial para verificar o cumprimento de liminar de embargo de atividades poluidoras, tem os pneus de seu veículo furados a mando do empreendedor alvo da fiscalização) e mesmo do Poder Legislativo (integrantes de Comissão Parlamentar de Inquérito criada para averiguar causas de desastre ambiental que recebem dados inexatos e incompletos de órgão público).

As questões ambientais relacionadas à atividade de fiscalização obstada ou dificultada não se restringem à dimensão natural do meio ambiente, podendo se referir a aspectos urbanísticos, laborais e também aos relacionados ao patrimônio cultural.

No caso de bens culturais tombados, por exemplo, o artigo 20 do Decreto-lei 25/37 dispõe que eles ficam sujeitos à vigilância permanente do órgão de proteção, que poderá inspecioná-los sempre que for julgado conveniente, não podendo os respectivos proprietários ou responsáveis criar obstáculos à inspeção.

Nesse contexto, o pároco que deliberadamente impede o servidor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de ingressar em templo protegido como patrimônio cultural com o objetivo de verificar o estado de conservação dos elementos artísticos e esculturas tombados, incide no tipo penal ora estudado.

A Constituição, ao impor tanto ao poder público quanto à coletividade o dever de preservar e defender o meio ambiente (artigo 225, caput, da CF/88) criou para todos os cidadãos a obrigação de colaboração para o alcance de tal objetivo.

Dentro desse contexto, vale destacar que a prerrogativa — também de índole constitucional — da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), que assegura a qualquer cidadão o direito ao silêncio e de não produzir provas em seu desfavor, não autoriza a prática de ações positivas que dificultem a ação fiscalizadora do poder público, obstando a ação estatal de zelo pelo meio ambiente.

Davi de Paiva Costa Tangerino leciona no sentido de que “o direito de abster-se não se confunde como direito de impedir a ação do agente imbuído de seu dever, cujo revés é a obrigação de realização de determinados ditames administrativos, incluso franquear o acesso da fiscalização”[6], lição essa que vem encontrando amparo nos Tribunais, pois “o direito à autodefesa ou à não autoincriminação não autoriza que o agente pratique outros crimes para encobrir crime anterior ou para esquivar-se de eventual flagrante” (TRF 4ª R.; ACR 5010771-70.2019.4.04.7005; PR; Oitava Turma; Rel. Des. Fed. Marcelo Cardozo da Silva; Julg. 22/07/2020; Publ. PJe 23/07/2020).

A jurisprudência vem entendendo que configuram o delito de obstrução de fiscalização ambiental condutas tais como as seguintes:

  • Agentes que, a pretexto de prestarem contas de venda de produto florestal com aparente legalidade, apresentaram dados inexatos à autarquia ambiental responsável pelo controle de estoque e de essências de madeira comercializadas por pessoas jurídicas. (TRF 1ª R.; ACr 0004467-55.2004.4.01.3900; Quarta Turma; Rel. Juiz Fed. Conv. Fábio Ramiro; DJF1 15/05/2019);
  • Criador de animais que se opôs à entrada dos agentes fiscalizadores que pretendiam vistoriar suas atividades relacionadas à criação de passeriformes, fazendo-se necessária a solicitação de mandado de busca e apreensão e apoio do Juizado Volante Ambiental e da Polícia Militar (STJ –  RESP 1.586.436 – MT – 2016/0062875-0 – Rel. Min. Félix Fischer, j. 28.07.2018);
  • Agente que interviu no trabalho da equipe de fiscais do ICMBIO tentando impedir que a equipe desempenhasse regularmente suas atividades de fiscalização no interior de Área de Proteção Ambiental. (TRF 1ª R.; ACr 0009676-55.2011.4.01.3901; Quarta Turma; Rel. Des. Fed. Néviton Guedes; DJF1 03/07/2018);
  • Madeireiros que, sabendo da iminente realização de fiscalização ambiental, realizam o bloqueio de estradas de acesso ao local onde foram encontradas madeiras armazenadas de forma irregular, por meio de construção de valetas, que impediam o acesso de carro, além de espalharem vegetação pelo meio do caminho (TJPA; APL 0014661-78.2011.8.14.0051; Ac. 170508; Santarém; Terceira Turma de Direito Penal; Relª Desª Maria de Nazaré Silva Gouveia dos Santos; Julg. 09/02/2017; DJPA 13/02/2017; Pág. 232);
  • Empregado que impõe negativa de acesso dos fiscais do Instituto Estadual do Ambiente – INEA à empresa, a fim de realizar fiscalização no local, mantendo o portão do empreendimento fechado (TRF 2ª R.; ACr 0002329-21.2011.4.02.5104; Primeira Turma Especializada; Rel. Juiz Fed. Conv. Marcello Ferreira de Souza Granado; Julg. 17/07/2013; DEJF 02/08/2013; Pág. 5);
  • Dono de bar que, durante aferição de nível de ruído produzido no estabelecimento para fins de constatação de poluição sonora, ignora pedido dos policiais militares e abaixa o volume dos aparelhos de som, impedindo a medição. (TJRN; ACr 2012.016231-4; Câmara Criminal; Rel. Juiz Conv. Gustavo Marinho Nogueira Fernandes; DJRN 24/04/2013; Pág. 17).
  •  Responsável por empresa que, com a finalidade exclusiva de obstar/dificultar a fiscalização do órgão ambiental competente, e com isso, conseguir transportar e vender madeira em quantidade superior ao projeto de manejo, auferindo lucro por meio da venda ilegal de produto florestal, promove a inserção de dados falsos nas ATPF'S. (TRF 1ª R.; ACr 2003.39.00.014359-0; PA; Quarta Turma; Rel. Des. Fed. Mário César Ribeiro; Julg. 13/12/2011; DJF1 12/01/2012; Pág. 232);
  • Proprietário rural e então Presidente da Cooperativa dos Mineradores do Centro-Oeste Mineiro que liderou a obstrução (com máquinas e veículos) de estrada vicinal por onde viatura da Policia Militar se dirigia para realizar fiscalização em área de extração de pedra. (TJMG; APCR 1.0261.04.026990-2/0011; Formiga; Quarta Câmara Criminal; Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez; Julg. 29/04/2009; DJEMG 28/05/2009)

Verifica-se, desta forma, que a ninguém socorre o direito de criar obstáculos à atuação do poder público no seu dever de fiscalização do meio ambiente, sendo o tipo penal do art. 69 da Lei 9.605/98 um importante instrumento para prevenir e sancionar condutas que  atentem contra o livre exercício do poder fiscalizatório dos entes incumbidos da defesa e proteção dos bens ambientais.


[1] GALVÃO, Fernando. Direito Penal. Crimes contra a administração pública. Belo Horizonte: D’Plácido. 2015. p. 24

[2] SALTZ, Alexandre Sikinowski. Dificultar ação fiscalizadora (artigo 69). In: MARCHESAN, Ana Maria Moreira e STEIGLEDER, Annelise Monteiro (Org.). Crimes Ambientais. Comentários à Lei 9.605/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado.  2013. p. 314.

[3]  Crimes contra a natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais. 9. Ed. 2012. p. 292-293.

[4] Para a consumação do crime previsto no artigo 69 da Lei n. 9.605/1998, prescindível a ocorrência de qualquer resultado naturalístico,  bastando a simples adequação aos verbos do tipo (obstar ou dificultar), de perigo abstrato, isto é, que dispensa a prova da efetiva lesão ao meio ambiente. (TRF 1ª R.; IP 0041960-19.2010.4.01.0000; Segunda Seção; Relª Juíza Fed. Conv. Rogéria Maria Castro Debelli; DJF1 26/09/2017).

[5] A materialidade do crime consistente em obstruir ou dificultar ação fiscalizadora do poder público no trato de questões ambientais se liga ao ato de fiscalização em si, sendo desnecessária a ocorrência de dano ambiental. – Se o agente dificultou a ação do poder público, obstruindo a estrada que dá acesso à propriedade alvo da fiscalização, o delito do art. 69 da Lei nº 9.605/98 está configurado, ainda que a verificação tenha sido, ao final, efetivada. (TJMG; APCR 1.0261.04.026990-2/0011; Formiga; Quarta Câmara Criminal; Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez; Julg. 29/04/2009; DJEMG 28/05/2009)

[6] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo; SOUZA, Luciano Anderson de (Coorde). Comentários à Lei de Crimes Ambientais. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 319.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!