Opinião

O verdadeiro legado da 'lava jato'

Autor

  • Wadih Damous

    é advogado mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado PUC-RJ. Presidente da OAB-RJ (2007/12). Deputado federal pelo PT-RJ (2015/18).

21 de agosto de 2020, 15h12

Do "lavajatismo" se pode dizer aquilo que velha anedota diria de uma obra recém-lançada: trouxe coisas novas e coisas boas; só que as boas não são novas e as novas não são boas. A operação "lava jato", que parece estar vivendo seu ocaso, reuniu grupos operadores da Justiça criminal com claríssimas opções políticas, quando não eleitoreiras. Deltan Dallagnol ensaiou candidatar-se à Procuradoria-Geral da República na vaga que acabou sendo ocupada por Augusto Aras e também cogitou seriamente de disputar o Senado em 2018, como revelou o site The Intercept Brasil na "vaza jato". Sergio Moro foi ministro da Justiça do governo que ajudou a eleger.

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Antes desses dois e na esteira da desenfreada acumulação de poder punitivo pelas agências de persecução penal brasileiras, Joaquim Barbosa, uma espécie de precursor do "lavajatismo", já vinha pavimentando caminhos que sinalizavam para o uso político da toga. Haver se notabilizado como juiz criminal tecnicamente ruim, mas implacável, o credenciou a uma badalada e cortejada pré-candidatura presidencial. Isso tudo graças ao apoio entusiasmado da mídia nacional, que em certos momentos celebrava em uníssono as inovações de legalidade muito questionável que esse grupo de pessoas impôs à sociedade brasileira.

Conta-se, em Direito e processo penal, pelo menos meia dúzia dessas novidades preocupantes — coisas boas que não são novas e coisas novas que não são boas. Não houvesse o Supremo Tribunal Federal acolhido as ADPFs 395 e 444, assistiríamos até hoje aos abusos das conduções coercitivas, decretadas para espetacularizar investigações e ferir direitos individuais. Vimos a deturpação de conceitos jurídicos consolidados, como conexão e prevenção, produzir a competência mais ampla e universal do mundo em matéria penal. Por alguns anos, parecia existir somente um juiz criminal no país apto a processar e julgar casos rumorosos, independentemente da existência de fio probatório, e não apenas narrativo, entre as evidências recolhidas em uma e outra investigação. Os propósitos políticos da operação soçobraram qualquer argumentação de base jurídica. Ainda no processo, experimentamos a completa banalização de prisões preventivas, acionadas simbolicamente e transformadas em instrumentos de chantagem a delatores em potencial, cujos relatos sustentavam isoladamente novas prisões preventivas, num círculo vicioso que acabaria por transformar o Ministério Público Federal e a própria Justiça Federal nas agências mais poderosas e arbitrárias de nossa pós-democracia.

O Direito Penal não sofreria menos. A começar pela nova teoria do ato indeterminado no crime de corrupção, gestada na Ação Penal nº 470 com a finalidade confessada de criminalizar dinâmicas políticas inerentes ao presidencialismo de coalizão. Como dissecou tão bem Fernando Teixeira, em artigo primoroso, "de um crime envolvendo a mercantilização de atos estatais, a corrupção passiva passou a ser entendida como o recebimento de recursos por agentes públicos desconsiderados contextos e motivações" [1]. E como a maior parte dos candidatos a postos eletivos tem que fazer uma campanha e recebe doação para fazer essa campanha, tais doações passaram a ser um elemento de suspeição. Claro que importaram aos processos de criminalização somente as doações em dinheiro. Aquelas doações eleitorais simbólicas e espirituais, presentes, por exemplo, nas intervenções do general Villas Bôas em período pré-eleitoral e mesmo nas articulações de Deltan Dallagnol com grupos políticos conservadores, o que também revelou a "vaza jato", foram desconsideradas.

Alvejaram os empresários "sujos". "Sujos" porque desejosos de manter boas relações com as estruturas de poder, dado comum às democracias representativas em países de base capitalista. Toda e qualquer doação financeira empresarial, que, por vezes, deixou de ser registrada por comodismo fiscal ou mesmo para camuflar relações políticas, o que configuraria no máximo crime eleitoral, se transformou em razão de desconfiança. Os dois elementos teóricos centrais a este processo — "1) a adoção da tese da corrupção/enquanto 'crime formal' como forma de relativizar a necessidade de descrição precisa de elementos constitutivos do tipo, como acordo corruptivo e ato estatal; 2) a tese de que é suficiente elencar um conjunto de atos estatais hipotéticos (indeterminados) como bem de troca para estabelecer uma operação corruptiva" [2] — consagram a lógica daquela teoria canônica, segundo a qual quem está obrando ilicitamente responde por tudo de errado que acontecer, o que não é uma verdade de Direito Penal. Socorremo-nos outra vez do artigo citado para concluir o ponto: "a indeterminação do tipo corrupção-suborno pode levar a consequências imprevisíveis, criando risco para a estabilidade institucional e um problema de insegurança jurídica com suas consequências típicas" [3].

Nesse campo do inovacionismo teórico em Direito Penal, houve também a importação acrítica da teoria da cegueira deliberada, dispensável a quem já dispunha de uma sofisticadíssima dogmática do dolo eventual, repleta de disputas riquíssimas e de densa base filosófica, como a que há entre o cognitivismo, hoje predominante na Alemanha, e o voluntarismo. Poderiam ter incorporado a sólida crítica de Renato Silveira, catedrático da USP, para quem "a utilização da teoria da cegueira deliberada como parâmetro de ampliação do conceito de dolo eventual é extremamente problemática, pois nem toda a situação de ignorância deliberada implica, necessariamente, em dolo eventual" [4], de tal forma que "apesar de poder se dizer que todo dolo eventual se enquadraria no que se entende por cegueira deliberada, o inverso não é verdadeiro, e isso porque não se pode ter a substituição do conhecimento atual pela cegueira deliberada, pois seriam dois critérios distintos, não intercambiáveis (como expressado no caso United States vs. Jewell)" [5]. E, por último, as penas elevadíssimas, que abandonaram, sem grandes constrangimentos teóricos, critérios racionais de fixação das reprimendas e a própria noção de "termo médio", importante limitador do poder punitivo. Alcançou-se a cifra faraônica de três mil anos de penas.

Estão em curso expedientes salvacionistas gerados por esse jeito torto de fazer política, do que é exemplo o gerontopunitivismo melindrado e tardio contra cardeais do tucanato. Investidas policialescas de âmbito nacional, colocadas em prática para legitimar projetos de poder, violentos do ponto de vista real e simbólico, não são bem uma novidade na nossa história. Fizera-o, certamente pela primeira vez, o visitador do Santo Ofício de Lisboa ao Brasil colonial. Heitor Furtado de Mendonça, em 1591, percorreu as terras recém-descobertas para inquirir colonizadores e nativos que ameaçavam e contrariavam a fé católica. Embaixo de ameaças de penas espirituais, estimulavam-se denúncias mútuas acerca de hábitos judeus, pagãos ou desvio das práticas sexuais tidas como "normais". Não há nada de novo sob o Sol.

Não há esquecer que nem só o Direito Penal e o processo penal foram alvejados de morte. A economia — com quebra de empresas e milhares de desempregados — também foi alvo dessa política de terra arrasada. Mas essa é uma outra história a ser contada em outra ocasião.

 


[1] Crítica à “Teoria do Ato Indeterminado”: dinheiro e poder na microdinâmica da corrupção-suborno. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 169, ano 28, p. 41-80. São Paulo, Ed. RT, julho 2020.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. Boletim do IBBCRIM, ano 21, nº 246, maio de 2013.

[5] Idem.

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