Opinião

Modelo tributário simples vale com efetividade e isonomia

Autor

  • George Alex Lima de Souza

    é especialista em Direito Tributário pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) auditor fiscal da Receita Federal e diretor parlamentar do Sindifisco nacional.

21 de agosto de 2020, 6h06

A burocracia, uma das grandes queixas do contribuinte brasileiro e uma das razões que derrubam o Brasil no raking do relatório Doing Business do Banco Mundial, não é a causa dos problemas do sistema tributário brasileiro, mas resultado da pouca ou nenhuma efetividade na aplicação da lei.

Explico. Nosso ordenamento jurídico é permeado de exceções e lacunas que facilitam a vida de quem não quer cumprir a regra a todos imposta. O Estado então reage criando controles mais rígidos, aumentando a burocracia, tentando preservar o sistema contra o contribuinte malicioso. Caso não houvesse esse tipo de comportamento pernicioso, que lesa o patrimônio público, talvez a história fosse diferente.

Há um caso emblemático, que aconteceu nos Estados Unidos, que demonstra como a simplificação só é possível em países de tradição jurídica mais severa. Certa vez, um empresário, interessado em exportar uma aeronave para o Brasil, ao ser chamado numa repartição pública norte-americana para dar continuidade ao processo da transação comercial, colocou na mesa do funcionário uma série de documentos, como contrato social, suas alterações, as certidões dos sócios, cível e criminal, a procuração etc. O atendente, que consultava no sistema os dados da aeronave, estranhou aquele ato inesperado e perguntou do que se tratava. Quando ouviu a explicação do brasileiro, acostumado ao cipoal burocrático daqui, de que aquela pilha de papéis eram os originais e cópias autenticadas dos arquivos enviados dias antes por e-mail, respondeu: "Não precisamos comprovar nada, porque se houver alguma tentativa de fraude, o senhor sai daqui preso".

A nossa burocracia estatal decorre da necessidade dos entes públicos de prevenirem e garantirem a proteção do interesse público. Quanto mais tentativas de se violar o sistema, mais burocracia, maior a desconfiança entre a Administração Pública e o cidadão. Por que não prospera em nosso país a relação pautada na boa-fé? Por que há leis que “não pegam”, principalmente as contra os crimes fiscais? Por que a lei trata como de menor importância os crimes fiscais?

Quando o crime é de natureza tributária, o autor sequer precisa responder penalmente. Nossa legislação permite que quem cometa o delito pague a qualquer tempo seu débito e não responda criminalmente (STJ/ HC 362.478-SP).  Descumprir a legislação tributária compensa e muito. O ilícito pode representar uma enorme vantagem comercial, já que os custos operacionais de quem sonega são menores e, portanto, seus preços tendem a ser mais competitivos. Em verdade, como a legislação tributária vem sendo cada vez mais afrouxada, não é necessário sequer pagar o tributo para se livrar do processo criminal. O parcelamento do débito já é suficiente para que o processo penal não tenha seguimento. E não é demais lembrar que desde o primeiro Refis, em 2000, outras dezenas de parcelamento especial se sucederam.

Até 2012, havia um programa especial de parcelamento tributário a cada três anos. A partir de então mais de duas dezenas de parcelamento aconteceram, em que multas de ofício, mora e juros foram afastados, gerando enorme vantagem aos que planejaram não pagar e aguardar o próximo Refis. Essa prática se dissemina e deseduca contribuintes que antes pagavam seus tributos nos prazos corretos. Se você frauda e sonega milhões não responde penalmente. Paradoxalmente, se o crime for a subtração de dois frascos de shampoo, o ladrão é encarcerado. Qual o sentido nessa lógica?

O legislador e a própria sociedade esquecem-se de que o tributo é um bem de todos e que por ser universal deve ser revertido a toda a sociedade. O crime contra a ordem tributária deveria ser tratado com gravidade, porque atinge toda a coletividade. No acumulado dessas práticas delituosas contra o Estado e contra sociedade, a sonegação estimada atinge R$ 350 bilhões por ano, drenando os recursos que poderiam viabilizar hospitais, escolas, ferrovias, hidrovias, aeroportos regionais, enfim, a infraestrutura que daria ao país melhores condições de vencer qualquer crise, de superar quaisquer projeções de crescimento econômico.

Em razão dessa percepção de impunidade, o Estado não consegue exercer eficazmente o seu jus puniendi e reage, criando obstáculos cada vez mais difíceis de serem transpostos, a fim de evitar a ocorrência dos ilícitos, que já se sabe, dificilmente conseguirá reprimir. Ao agir dessa forma, mistura o joio e o trigo, trata a todos com desconfiança e joga por terra a boa-fé que deveria pautar as relações. Em nosso país, uma minoria faz com que estabeleçamos regras rigorosas para uma maioria ordeira e ciosa de suas obrigações.

Mas a desconfiança excessiva não é desarrozada, em se tratando do Brasil, onde temos situações curiosas. Empresa pequena compra empresa gigantesca. Empresas são criadas apenas para emitir notas fiscais de serviços, que não foram prestados, objetivando gerar créditos tributários a terceiros. No Brasil, mesmo em tempos pandêmicos, contratos na área da saúde são superfaturados e pessoas ficam ricas às custas da desgraça coletiva. No Brasil, há empresário que retém a contribuição social de seu empregado e, ao invés de entregá-la aos cofres públicos, monetiza-a. Há também servidores públicos que se envolvem em esquemas de corrupção e prejudicam quem deveria zelar, o Estado.

A mais difícil das reformas a que o Brasil precisa se submeter, em verdade, não é a tributária, mas a cultural. Há exemplos recentes de medidas de política pública que culminaram com uma positiva mudança de comportamento das pessoas. Após uma campanha atrelada a uma ação de fiscalização igualmente forte fez com que os motoristas passassem a respeitar a faixa de pedestre, a usar o cinto de segurança, a evitar a ingestão de álcool antes de dirigir etc.

No direito tributário, podemos trilhar o mesmo caminho. Muito se fala em "retirar o peso do Estado das costas do contribuinte". Algo perfeitamente compreensível e desejável. É preciso que os contribuintes tenham liberdade para empreender, que a tributação não seja um impedimento nem um estímulo a se iniciar qualquer negócio. É preciso tratar o bom contribuinte com boa-fé, porque a maioria é zelosa com suas obrigações e tenta vencer o emaranhado tributário formado por mais de 390 mil normas editadas somente após a Constituição de 1988, segundo o IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação).

Mas o que fazer para desestimular as condutas ilícitas de uma minoria, que frauda e sonega recursos que irrigariam e viabilizariam as políticas públicas? Como cessar esse açoitamento do interesse público e mitigar esse prejuízo à coletividade?

Primeiro, criar mecanismos para estimular ainda mais o cumprimento das regras tributárias, concedendo vantagens como notificação em caso de irregularidades detectadas pelo sistema, prazos para autorregularização, prioridade nas respostas a consultas formuladas ao Fisco e nas análises de processos de compensação e restituição, por exemplo. Noutra via, garantir ao Estado meios eficazes de punir as condutas ilícitas. As ações estatais que desburocratizam ou reduzam os custos tributários precisam estar atreladas a sanções aos que se aproveitam da confiança com que é tratado pelo Estado.

A reforma tributária que se se avizinha é uma boa oportunidade para o Estado iniciar essa mudança de paradigmas, prestigiar a simplicidade, a transparência e a punibilidade. Com regras mais claras, os custos tributários tendem a reduzir. Com efetividade da aplicação da lei, a sonegação também tende a encolher. Com essas mudanças, podemos sonhar com um ambiente em que desconfiança entre Estado e contribuinte dê espaço a boa-fé que deveria reger essa relação.

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