Opinião

É preciso fixar balizas constitucionais sobre busca e apreensão domiciliar

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

20 de agosto de 2020, 13h03

É consabido que a função primária do Direito Penal consiste na tutela dos bens jurídicos essenciais, aqueles que exigem "uma proteção especial, no âmbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico em outras áreas extrapenais" [1].

Para além dessa primordial tarefa que, como conceitualmente demonstrado, denota a atuação subsidiária e fragmentária do Direito Penal, cabe ao Estado (titular do ius puniendi) a concretização do Direito Penal subjetivo, com respectiva responsabilização penal do agente nos casos em que reste comprovada a prática de fato típico, ilícito e culpável.

É importante ressaltar, contudo, que a imposição da sanção prevista no preceito secundário do tipo penal demanda que a persecutio criminis in iudicio seja conduzida com respeito às garantias individuais, requisito indispensável para que se confira legitimidade à própria decisão judicial condenatória.

Feitas essas considerações, passo ao exame do tema central deste artigo, que se propõe a oferecer uma reflexão, à luz do Direito comparado e dos princípios constitucionais da segurança jurídica, da proibição de excesso e da eficiência do Estado (aplicável à fase pré-processual [2]), sobre a necessidade de estabelecimento de balizas aptas a aferir a validade temporal de mandado de busca e apreensão domiciliar no processo penal.

A busca e apreensão domiciliar encontra disciplina nos artigos 240 a 250 do Código de Processo Penal e, como medida instrumental de natureza cautelar, demanda a comprovação dos requisitos da fumaça do bom direito e do perigo na demora, sem os quais não há que se falar em deferimento da diligência, que visa, ao fim e ao cabo, excepcionar direito fundamental de primeira dimensão albergado no artigo 5º, XI, da Constituição da República.

Sujeita, portanto, à cláusula de reserva de jurisdição, cabe à autoridade que requerer a medida (e aqui nos referimos tão-somente à autoridade policial e ao membro do parquet, já que em um processo penal acusatório não cabe mais a figura do juiz, que determina a colheita de provas de ofício em sede inquisitorial [3]), demonstrar, ainda que em juízo de cognição sumária, a presença do periculum in mora, até mesmo porque, tal como adverte Eugenio Pacelli et al, "a não comprovação de qualquer situação de urgência ou de necessidade reconhecida pelo Direito, ainda que derivada de erro cometido em boa-fé pelo agente público, poderá dar azo à invalidação da diligência" [4].

Neste ponto é importante constatar que o CPP (diploma editado no início da década de 1940) não prevê um prazo legal para cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar [5], omissão legislativa que termina por conferir plena discricionariedade tanto à autoridade judicial (para fixar o prazo que bem entender) quanto à autoridade que cumpre o mandado (já que, mesmo que fixado eventual prazo por parte do magistrado, a sua inobservância não implicará na nulidade da diligência [6]).

Relevante registrar que o modelo processual de viés acusatório é resultado de um lento e gradual processo histórico de conquistas no âmbito dos direitos humanos, revelando-se em um Estado democrático de Direito como o único caminho legitimado a viabilizar a elucidação de supostos delitos cometidos e imposição de eventuais sanções penais.

E é justamente por viabilizar a persecução penal (com todas as medidas restritivas de direitos fundamentais a ela possivelmente inerentes, v.g. afastamento de franquias constitucionais de sigilo de telecomunicações, inviolabilidade domiciliar etc.) que o processo penal (especialmente quando trate de situações excepcionais que possam repercutir na salvaguarda de direitos individuais) deve ser objeto de regramento expresso, claro e delimitado, sob pena de compactuar com indevida discricionariedade em um campo que deveria ser pautado pelos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proibição de excesso.

Eugenio Pacelli, em comentários sobre garantismo e intervenção penal, assevera que "partindo do modelo de Estado de Direito, particularmente no que respeita à gestão das relações entre o Poder Público e o particular, Ferrajoli procura estabelecer limites mais ou menos objetivos para a contenção da nascente e crescente liberdade judiciária, do ponto de vista específico do Direito Penal e do Processo Penal" [7].

Corroborando a argumentação em torno da imperiosa necessidade de que toda e qualquer intervenção do Estado no âmbito privado do cidadão seja expressamente motivada à luz dos ditames constitucionais, colho trecho de decisão exarada pelo ministro Celso de Mello nos autos do HC 186.421 [8], no qual delimita os contornos de um processo penal que pretenda ser denominado de garantista:

"A razão desse entendimento resulta do fato, juridicamente relevante, de que o processo penal figura como exigência constitucional ('nulla poena sine judicio') destinada a limitar e a impor contenção à vontade do Estado, cuja atuação sofre, necessariamente, os condicionamentos que o ordenamento jurídico impõe aos organismos policiais, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.

O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência, espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra possíveis excessos e o arbítrio do Poder, especialmente em face de eventuais abusos perpetrados por agentes estatais no curso da 'persecutio criminis'. (…)

É por essa razão que o processo penal condenatório não constitui nem pode converter-se em instrumento de arbítrio do Estado. Ao contrário, ele representa poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Não exagero ao ressaltar a decisiva importância do processo penal no contexto das liberdades públicas, pois – insista-se – o Estado, ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, faz do processo penal um instrumento destinado a inibir a opressão judicial e a neutralizar o abuso de poder perpetrado por agentes e autoridades estatais. (…)".

É preciso ter em mente que a ordem constitucional de 1988 representou uma divisão de águas no processo penal brasileiro, erigindo o juiz, seja o de garantias [9] ou do processo, ao relevante patamar de garantidor dos direitos fundamentais daqueles alçados à condição de investigados/acusados.

Contextualizando o debate, trago à colação precedentes dos Tribunais de Justiça dos Estados do Maranhão [10] e do Pará [11], que concluíram pela validade de provas colhidas em busca e apreensão executadas, respectivamente, após um ano e três anos de expedidos os mandados.

No caso julgado pelo tribunal maranhense a prova foi admitida, sob o fundamento de que: a) não há prazo estabelecido em lei para realização da diligência; e b) de que a demora na execução dos mandados se deu por decisão da autoridade policial, visando resguardar a eficiência do trabalho investigativo.

Já no caso analisado pela corte paraense, a diligência de busca e apreensão foi considerada regular apesar de constatado que a demora no cumprimento do mandado ocorreu em virtude da "falta de aparato policial".

Ora, do breve apanhado exposto neste artigo extrai-se que se foi requerida medida cautelar de busca e apreensão domiciliar é porque havia, em tese, periculum in mora. Todavia, a delonga imotivada no cumprimento da ordem judicial, por si só, já demonstra a ausência concreta do referido requisito e eventual ineficiência do Estado-acusação no cumprimento da ordem a tempo e modo razoável, tudo a indicar a invalidade do ato processual.

Outra constatação que denota a nulidade do ato é a de que se a intenção fosse a de retardar a ação policial, o Estado deveria ter feito uso da ação controlada prevista no artigo 8º da Lei 12.850/13.

É preciso levar em consideração que os instrumentos legais de investigação existem em nosso ordenamento e é com base neles que a polícia judiciária e o dominus litis da ação penal devem se guiar.

A persecução penal, por envolver possíveis restrições a direitos fundamentais, deve ser conduzida de modo que: I) não macule os princípios constitucionais da proibição de excesso e da segurança jurídica de cidadãos investigados (excepcionando sem data de validade a garantia da inviolabilidade domiciliar — direito individual previsto como cláusula pétrea [12]); e II) não conceda ao Estado-acusação verdadeira carta branca para que, sem motivação concreta [13], retarde por tempo indeterminado o cumprimento de ordem de busca domiciliar (fato que inexoravelmente resultará em uma espécie de indulgência à possível ineficiência do aparelho estatal investigativo).

Com o fim de subsidiar a argumentação ora explanada e já em sede de direito comparado, trago à baila dispositivo do CPP português que fixa prazo de 30 dias para cumprimento do mandado de busca e apreensão, cominando, inclusive, nulidade [14], sanção que corrobora os argumentos expostos neste artigo e revela, nas palavras de Francesco Carnelutti, "que o processo penal é um banco de prova da civilização" [15].

Resta, pois, demonstrada a necessidade da fixação de balizas de ordem constitucional para disciplinar o tema sob enfoque com vistas a resguardar tanto a idoneidade do processo penal (e consequente legitimidade da sentença) quanto os direitos fundamentais do investigado/acusado, sob pena de decretação de nulidade em virtude do evidente prejuízo causado pelo retardo  de uma ação estatal levada a termo de forma desarrazoada, sem amparo legal e que termina por influir diretamente no convencimento judicial [16].

 


[1] TOLEDO, Francisco de Assis. 5. Ed. São Paulo: Saraiva. 1994. P. 17.

[2] RECURSO EM HABEAS CORPUS. INVESTIGAÇÃO DA PRÁTICA DO CRIME DE PECULATO. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITOS POLICIAIS. EXCESSO DE PRAZO. QUASE 6 ANOS DE DURAÇÃO DAS INVESTIGAÇÕES. INEFICIÊNCIA ESTATAL CARACTERIZADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.

1. Transcorridos quase 6 anos do início das investigações sem que tenha sido formada a opinio delicti e sem que haja notícias concretas de que os procedimentos estejam próximos do fim, está configurada a ineficiência estatal, a ensejar o trancamento dos inquéritos policiais por excesso de prazo.

2. Recurso em habeas corpus provido para trancar os referidos inquéritos policiais.

(RHC 106.041/TO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 10/08/2020).

[3] Referida conclusão decorre do modelo de processo penal garantista inaugurado pela Constituição Cidadã, tendo tal matéria sido expressamente disciplinada no artigo 3º-A do CPP (com eficácia suspensa por decisão liminar proferida pelo Min. Luiz Fux nos autos da ADI MC n. 6299, DJe 03/02/2020).

[4] Comentários ao Código de Processo Penal. 12. Ed. São Paulo: Atlas, 2020. P. 613.

[5] AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. NULIDADE. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. AUSÊNCIA DE PRAZO LEGAL PARA O CUMPRIMENTO DA MEDIDA. (…)

4. Além de não haver, no ordenamento jurídico brasileiro, prazo específico para o cumprimento de mandado de busca e apreensão, no caso, a espera de tempo maior para o cumprimento da medida visou a resguardar o trabalho policial investigatório, que transcorria sigilosamente para a apuração inicial de tráfico transnacional de drogas. (…)

9. Agravo regimental não provido.

(AgRg no REsp 1382803/MA, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 22/09/2017).

[6] HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. REVOGAÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR. IMPOSSIBILIDADE. (…). Ademais, ainda que fosse cumprido em data posterior ao vencimento, inexistiria constrangimento ilegal, pois não se trata de prazo peremptório. Ausência de previsão legal de prazo específico para cumprimento dessa diligência. Discricionariedade do magistrado para estabelecimento, a fim de nortear o agente responsável pelo ato. Preliminar afastada. (…)

7. Impetração conhecida parcialmente e, na parte conhecida, denegada a ordem.

(TJ-SP – HC: 20762715520198260000 SP 2076271-55.2019.8.26.0000, Relator: Gilda Alves Barbosa Diodatti, Data de Julgamento: 09/05/2019, 15ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 10/05/2019).

[7] Curso de Processo Penal. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2018. P. 37.

[8] DJe 22/07/2020.

[9] Ainda não implementado na realidade forense brasileira em virtude de liminar concedida pelo Min. Luiz Fux nos autos da ADI MC n. 6299, DJe 03/02/2020.

[10] TJ-MA – APL: 0121352010 MA 0011448-68.2010.8.10.0000, Relator: RAIMUNDO NONATO MAGALHÃES MELO, Data de Julgamento: 31/07/2012, PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 27/08/2012.

[11] TJ-PA – APR: 00082589320168140059 BELÉM, Relator: VANIA LUCIA CARVALHO DA SILVEIRA, Data de Julgamento: 13/03/2018, 1ª TURMA DE DIREITO PENAL, Data de Publicação: 02/04/2018.

[12] Artigo 60, 4º, IV, da CF/88.

[13] Artigo 564, V, do CPP.

[14] "Artigo174.º

Pressupostos (…)

3 – As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.

4 – O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máxima de 30 dias, sob pena de nulidade".

Disponível em: < http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=101&artigo_id=&nid=199&pagina=2&tabela=leis&nversao=&so_miolo=>. Acesso em 11/8/2020.

[15] As misérias do processo penal. 3. Ed. Leme: Edijur, 2019. P. 7.

[16] Artigos 157, caput, 563 e 566, todos, do CPP e artigo 5º, LVI, da CF/88.

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