Hierarquia Normativa

Migrantes não podem ser deportados com base em portaria federal, diz juiz do AC

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19 de agosto de 2020, 21h26

O juiz Jair Araújo Facundes, da 3ª Vara Federal Cível e Criminal do Acre, ordenou nesta quarta-feira (19/8) que a União suspenda deportações, repatriações e outras medidas compulsórias em desfavor de migrantes que buscam acolhida humanitária ou refúgio no Brasil.

Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Migrantes, em maioria venezuelanos, buscam entrar no Brasil pelo Acre    Marcelo Camargo/Agencia Brasil

Os estrangeiros, a maior parte vindos da Venezuela, buscam entrar no país por meio do Acre, estado que faz fronteira com a Bolívia e com o Peru. O ingresso, entretanto, está sendo barrado desde 17 de março, data em que o governo federal editou a Portaria 120/20.

A medida restringia apenas a entrada de venezuelanos no país durante a situação de calamidade gerada pela epidemia do novo coronavírus. Posteriormente, entretanto, o diploma foi revogado em detrimento de normas mais amplas. A última delas, a Portaria Interministerial 1/20, editada em 29 de julho, restringe o ingresso de pessoas oriundas de qualquer país. 

Todas as portarias têm um ponto em comum: preveem a deportação, a inabilitação de pedido de refúgio, além da responsabilização civil, administrativa e penal de estrangeiros que entram no país sem autorização. Por isso, mais do que barrar o ingresso, a norma passou a ser utilizada para expulsar os migrantes.

Segundo a decisão de hoje, no entanto, a aplicação da portaria viola normativas de hierarquia superior, como a Lei da Migração (Lei 13.445/17), que proíbe a expulsão ou deportação coletivas; a Lei do Refúgio (Lei 9.474/97), que veda deportações de refugiados "para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada" e estabelece que o ingresso irregular no Brasil não constitui impedimento para a solicitação de refúgio; entre outras. 

"A despeito da validade prima facie da regra que proíbe o ingresso de estrangeiro durante a pandemia, as circunstâncias acima descritas indicam elevada probabilidade de que sua aplicação resultaria em severo risco à vida, à saúde e à integridade de pessoas aparentemente refugiadas, sendo parte delas formada por mulheres, grávidas, crianças e adolescentes", diz a decisão.

Ação civil pública
A decisão foi tomada no âmbito de uma ação civil pública ajuizada em face da União pela Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, Associação Direitos Humanos em Rede (Conectas Direitos Humanos) e Caritas Arquidiocesana de São Paulo. 

O texto é assinado pelos defensores públicos federais Matheus Alves do Nascimento e João Freitas de Castro Chaves; pelo procurador da república Lucas Costa Almeida Dias; pelos advogados da Conectas Gabriel de Carvalho Sampaio e Rodrigo Filippi Dornelles; e pelo advogado da Caritas Diego Souza Merigueti

Na peça, eles pedem a suspensão de deportações em curso ou futuras que tenham como alvo migrantes que chegam no país pelo Acre; a admissão migratória excepcional em território brasileiro, permitindo a permanência física daqueles que assim requererem; e que seja garantida, sem restrições, a solicitação de residência. 

"Essas sanções e o tratamento discriminatório conferido aos migrantes, especialmente aos venezuelanos, reconhecidos pelo Estado brasileiro como vítimas de graves e generalizadas violações de direitos humanos, têm dado margem para o cometimento de ilegalidades por parte da União, que extrai dos dispositivos indicados fundamento para praticar condutas incompatíveis com a legislação e, mais do que isso, que atentam contra normas fundantes da Constituição da República, do Direito Internacional dos Refugiados, do Direito Internacional dos Direitos dos Humanos, do Estatuto dos Refugiados e a Lei de Migração", diz a ação. 

A inicial também afirma que a portaria interministerial, ainda que editada no contexto de uma pandemia, deixa claro que a soberania nacional e as decisões do Poder Executivo encontram limites na lei e nos compromissos assumidos em tratados internacionais. 

"O Brasil não pode promover, por exemplo, a deportação coletiva de indivíduos, sem a discriminação específica de cada situação fática e jurídica. Não pode, ainda, inovar no ordenamento e estabelecer sanções contra o ingresso irregular que pura e simplesmente impeçam a permanência do migrante em território, vez que estabeleceu a admissão e a regularização migratória como diretrizes de ação", prossegue a peça.

Camila Asano, diretora de programas da Conectas, comemorou a decisão desta quarta. "É uma decisão acertada e fundamental para preservar os direitos de migrantes em situação de vulnerabilidade e solicitantes de refúgio. A Justiça Federal evita, assim, que se repitam situações lamentáveis de retiradas compulsórias ilegais de pessoas que se viram obrigadas a deixar seus países, justamente num momento tão grave de pandemia", disse à ConJur

Ilhados
Algumas situações no mínimo inacreditáveis foram criadas com a proibição de ingresso dos migrantes. Um grupo de pessoas que buscava vir ao Brasil pela fronteira com o Peru, por exemplo, teve que viver por mais de dois meses em uma ponte que liga os dois países. 

Eles foram impedidos de entrar e, ao mesmo tempo, de voltar ao Peru, já que a fronteira do país vizinho também foi fechada para estrangeiros em decorrência do novo coronavírus. 

O evento é descrito na ação civil pública. "Já se afirmou que o cenário é kafkiano, mas é também um cenário dantesco de imobilidade em uma ponte, onde pessoas extremamente vulneráveis, incluídas mulheres e crianças, relataram ficar sob sol, chuva, frio, tendo de se banhar no Rio Acre e fazer suas necessidades fisiológicas no mato, com riscos à higiene e até à saúde", diz. 

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1004501-35.2020.4.01.3000

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