Teoria da imprevisão

Devedor e credor têm de dividir ônus da crise causada pela pandemia, decide TJ-RS

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19 de agosto de 2020, 10h19

Não é justo aplicar a teoria da imprevisão com base no artigo 478 do Código Civil em favor de um devedor de obrigações mensais, que propõe moratória unilateral, sem levar em conta os efeitos da pandemia sobre o credor. O mais razoável é bilateralizar e equalizar os termos e condições de um acordo que preserve o fluxo de caixa de ambas as partes, a fim de não interromper os pagamentos.

Com a prevalência desta tese, a maioria da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu parcialmente agravo de instrumento interposto por uma empresa de transportes de passageiros. Ela recorreu à Justiça para pedir moratória de 90 dias, em função da pandemia, por não conseguir honrar o pagamento das duas últimas prestações de um contrato obrigacional de trato sucessivo entabulado livremente com um grupo de credores na Comarca de Gravataí.

O relator do recurso, desembargador Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, manteve a decisão proferida em sede liminar, quando acolheu integralmente o pedido de moratória, utilizando como fundamento a teoria da imprevisão com base no artigo 393 do Código Civil. No entanto, o colegiado aderiu, majoritariamente, à solução proposta pelo desembargador Aymoré Roque Pottes de Mello, voto divergente, que deferiu em parte a moratória obrigacional.

Para o desembargador vencedor, a simples mora proposta pelo devedor não é o melhor caminho. Num clima de pandemia, a solução equilibrada, que contempla a proteção do consumidor vulnerável, passa pelo reconhecimento do dever geral de renegociação dos contratos de longa duração, como sinaliza a doutrina europeia. Além disso, o consumidor também tem deveres: o de não sobrecarregar o devedor e o de cooperar de boa-fé com a execução.

A tese na prática
No caso dos autos, ao invés da moratória nonagesimal unilateral, a decisão mais equitativa deve levar em conta o cálculo da média aritmética simples do quantum total das obrigações vincendas pelo número de meses do diferimento proposto, tendo como ponto de partida a data do vencimento original da primeira parcela por vencer. Assim procedendo, explicitou no voto, o quantum das cinco parcelas mensais diferidas será significativamente menor do que as duas parcelas a vencer.

Trilhando esta linha de raciocínio, o desembargador Aymoré observou que, da data de vencimento (25 de abril) da primeira das duas parcelas (no valor de R$ 17,7 mil cada), até 25 de agosto (data de pagamento proposta para a segunda parcela moratória), há cinco vencimentos mensais em face do valor da moratória total – no valor R$ 35,5 mil.

"Calculando a média aritmética simples do total devido (2 parcelas) em relação às cinco datas-marcos da moratória bilateralizada, daí resultam 5 parcelas mensais no valor (sem correção) de R$ 7.104,98, que, a meu sentir, representa uma solução equitativa para ambas as partes litigantes, no contexto das imprevisibilidades decorrentes da pandemia do coronavírus Covid-19", anotou no acórdão.

Prorrogação de prazo de pagamento
A Unesul de Transportes firmou acordo judicial com os filhos de uma mulher atropelada que, pelas sequelas do acidente, viria a falecer posteriormente. Nos termos do acordo, a empresa assumiu a obrigação de indenizar os sucessores em R$ 420 mil, assim divididos: duas parcelas de entrada, no valor de R$ 90 mil cada; uma parcela de R$ 30 mil; 14 parcelas R$ 14 mil; e R$ 65 mil de honorários para os advogados da família da autora.

No curso da execução da obrigação, sobreveio a pandemia de Covid-19, cujas medidas sanitárias impactaram todas as relações sociais e empresariais. Como reflexo da dura realidade, a empresa teve de paralisar 100% de sua frota de ônibus, para todas as linhas estaduais, e reduzi-la em 50% nas intermunicipais. Além disso, desde março, quando começaram as restrições de locomoção, vem amargando inadimplência por parte das estações rodoviárias e de agências de passagens.

Neste cenário, a empresa pediu à Justiça a revisão contratual com base na teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva. Afinal, o artigo 393 do Código de Processo Civil diz que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado". O parágrafo único deste artigo explicita: "O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". No caso concreto, pediu a prorrogação do prazo de pagamento das duas últimas parcelas — com vencimento, respectivamente, em 25 de abril e 25 de maio de 2020 — para 90 dias.

Pedido indeferido na vara da comarca
O juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de Gravataí, na região metropolitana, indeferiu o pedido, sob o argumento de que empresa devedora não provou que tivesse tentado o ajuste com os credores na via administrativa. Para a juíza Quelen Van Caneghan, em despacho proferido no dia 23 de março, a pandemia não justifica a concessão de medidas que autorizem o não pagamento de compromissos financeiros, sob pena de se instaurar um inadimplemento em massa.

Além disso, como o acordo entabulado entre as partes se deu sem a intervenção judicial, a julgadora entendeu que não há como alterar o que foi pactuado, ainda mais em face da ausência de dados concretos acerca da repercussão e consequências do quadro de pandemia.

Agravo de instrumento
Em combate ao teor do despacho, a defesa da empresa interpôs agravo de instrumento no Tribunal de Justiça, repisando os mesmos argumentos do pedido inicial. Em decisão monocrática, tomada no dia 23 de abril, o relator do recurso na 11ª Câmara Cível, desembargador Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, acolheu o pedido, concedendo a antecipação de tutela.

Para iserhard, é inegável que o acordo firmado entre a empresa de transporte e os sucessores da vítima foi pactuado em uma realidade econômica e executado noutra. Ou seja, na parte final, foi executado num cenário excepcional e de grave crise sanitária, pois o país foi atingido pela imprevisível pandemia de Covid-19.

Na visão do relator, a pandemia e suas consequências negativas sobre a empresa podem ser consideradas como fatos imprevisíveis e extraordinários para fins de aplicação da teoria da imprevisão. Por consequência, dão ensejo à revisão do acordo ajustado entre as partes, na forma pretendida pela parte devedora: que o pagamento das parcelas vencidas nas datas de 25.04.2020 e 25.05.2020 possa ser feito em 25 de julho e 25 de agosto do corrente ano.

"Tal medida, inclusive, visa resguardar interesse público relativo aos serviços de transportes prestados pela agravante, na medida em que exigir o pagamento de parcelas de valor elevado, em momentos de grave crise como o presente, poderia acarretar eventual falência da empresa recorrente, em manifesto prejuízo à sociedade", complementou o desembargador-relator na decisão monocrática.

Posteriormente, na sessão virtual de 31 de julho, o colegiado julgou o mérito do recurso, reformando a decisão monocrática. No fim, prevaleceu o voto divergente proferido pelo desembargador Aymoré Roque Pottes de Mello, que redigiu o acórdão com a "decisão salomônica".

Clique aqui para ler o acórdão
015/1.11.0001335-2 (Comarca de Gravataí)

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