Opinião

O (livre) convencimento motivado: uma visão de consenso

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19 de agosto de 2020, 18h07

Prolegômeno
A independência da magistratura, indubitavelmente, é uma das "pedras angulares" republicanas. Muito antes de se consubstanciarem em "privilégios", as garantias do Poder Judiciário, em geral, e do magistrado, em particular, destinam-se a emprestar conformação de independência que a ordem constitucional pretende outorgar à atividade judicial [1].

Assim, a independência da jurisdição é instrumento garantidor do acesso à ordem jurídica justa.

Como se verá nas linhas abaixo traçadas, há, atualmente, uma grande discussão acerca dos balizamentos da atividade decisória, chegando a desembocar na arquitetura de uma pretensa superação do princípio da persuasão racional ou livre convencimento motivado.

Não se pretende, neste, tecer críticas a nenhuma das visões (tidas como) conflitantes. Ao reverso, além de buscar expor algumas dessas vertentes de forma simples e didática procura-se, humildemente, demonstrar que não se tratam de posições antagônicas.

A evolução dos sistemas de valoração da prova. Breve relato
O Direito Processual em geral, ao longo do seu desenvolvimento, experimentou a notável evolução dos sistemas de valoração da prova. Não seria ocioso (nem mesmo impreciso) dizer que a "evolução" operada nessa seara permitiu a formatação de todo sistema processual como hodiernamente o conhecemos.

Apenas à guisa de ilustração, recorda-se que, no campo do Direito Processual Penal, no período antigo do Direito germânico, adotava-se, à par da lex talionis, um sistema ordálico no campo da valoração das provas, como muito bem recorda Bittencourt [2].

Já em um segundo momento (e sem pretender traçar uma linha histórica assaz aprofundada), passa-se, ainda sob influência canônica, a adotar o sistema da prova tarifada [3].

Contudo, a "humanização" do processo em geral, contudo, acabou por realizar verdadeiro "giro copérnico" ao visualizar a parte não como o objeto do processo (civil ou penal), mas sim como seu sujeito.

Ao fazê-lo, o sistema tarifado de prova (juntamente com diversos outros pontos, como, por exemplo, a responsabilidade penal objetiva) é abandonado, arquitetando-se, primordialmente, o sistema do livre convencimento motivado (isso sem citar, por questões didáticas, o sistema da íntima convicção (até hoje, com as devidas críticas, aplicável aos processos afetos ao tribunal do júri).

O sistema do livre convencimento motivado e o Código de Processo Civil de 1973
Conceitualmente, caracteriza-se o sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional como "aquele em que o juiz, observados os limites do sistema jurídico, pode dar a sua própria valoração à prova, sendo dever seu o de fundamentar, isto é, justificar a formação de sua convicção[4].

Indubitável que a motivação das decisões é verdadeiro corolário do devido processo legal. Não por outro motivo que a própria CRFB cuidou-se de explicitá-lo ao aduzir, no seu artigo 93, IX, que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade…

E, sobre essa pedra fundamental lançada foi erigido o artigo 131 do Código Buzaid (CPC/1973), in verbis: "o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento" [5].

Parcela considerável da doutrina, ao analisar supracitado dispositivo, situa-o como um "intermediário" entre o sistema da "prova legal" (tarifação) e o sistema da "íntima convicção", ou "julgamento conforme a consciência" [6].

Trata-se de princípio pelo qual a convicção do juízo se formula segundo balizamentos racionais, os quais são demonstrados por meio de idônea motivação.

Nessa senda, a jurisprudência do STJ (erguida ainda na época da vigência do Código Buzaid) mostra-se profícua na sua aplicação. Como ilustração, o princípio é invocado para justificar o julgamento antecipado do mérito (lide) [7], bem como a não-adstrição do juízo às conclusões periciais [8].

Críticas à formulação do princípio: o livre convencimento
Aduz Streck, em análise de voto proferido no AgRg de nº 279.889/AL, do STJ:

"Já como preliminar é necessário lembrar antes mesmo de iniciar nossas reflexões no sentido mais crítico que o Direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é" [9].

Supracitado autor, certamente, é o principal crítico das manifestações jurisprudenciais erigidas em torno do princípio do livre convencimento motivado, tributando, entre outras razões, a uma equivocada recepção da convencionada jurisprudência dos valores do Direito tedesco pós-segunda guerra.

A concepção de que o juízo deve agir apenas conforme sua consciência (e, a partir daí, fundamentar sua decisão, utilizando o Direito como verdadeiro instrumento de uma convicção íntima), caracterizando uma espécie de "ativismo judicial à brasileira" é por ele duramente criticada, inclusive com a utilização da expressão solipsismo judicial [10].

Neste trabalho, e até mesmo reverenciando as precisas palavras do ilustre mestre, não se pretende (e isso seria deveras impossível) se aprofundar nessa questão.

Todavia, situa-se que as críticas lançadas pelo doutrinador, bem como o lobby epistêmico (palavras por ele mesmo utilizadas [11]) foram determinantes à arquitetura redacional do artigo 371 do atual CPC, in verbis: o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

A 'evolução silenciosa' do convencimento motivado
De proêmio destaca-se que a expressão acima "em aspas" se consubstancia em reverente homenagem ao (excelente) estudo de Gajardoni acerca do artigo 139, IV, do CPC [12].

A expressão acima utilizada justifica-se pois, a bem da verdade, não prima a redação do artigo 371 do atual CPC por ser revolucionária.

Isso porque, como alerta Didier, a retirada do adjetivo livre se deu (e considerando a provocação realizada por Lênio Luiz Streck) mais pela incompreensão de sua extensão do que por qualquer processo efetivamente inovador [13].

Ou seja: trata-se mais de uma evolução desta (compreensão).

Hodiernamente, entende-se que as motivações dos juízos devem ser, em primeiro lugar, racionais, evitando retóricas vazias e análises que ocorrem tão somente "à vol d’oiseau" [14].

Além disso, devem ser controláveis, eis que a atividade jurisdicional, mesmo nos processos individuais, não se presta somente à solução de conflitos de interesses. Para além disso, em toda e qualquer manifestação judicial há a (re)afirmação da validade e imperatividade de todo o ordenamento jurídico.

Nessas bases torna-se (ainda mais) significativa a redação do artigo 489 da mesma lei adjetiva. Deveras, em uma linha de convencimento motivado, o CPC, sem esmiuçar o conceito (o que seria inviável em uma lei de caráter "instrumental"), se cuida, especialmente no seu §1º e incisos, em trazer hipóteses nas quais não se considera fundamentada (motivada racionalmente) a sentença.

Evita-se, e.g. , o emprego de retóricas vazias (inciso III) ou mesmo de conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso (inciso II).

E até mesmo para permitir um “melhor envelhecimento” do texto, nossos Códigos e leis e o CPC/2015 não é diferente têm sido redigidos de forma mais aberta, com hipóteses de incidência menos "rígidas". Há uma verdadeira profusão de standards jurídicos e, acima de tudo (e como não poderia deixar de ser), reconheceu-se a força normativa dos princípios.

Resumindo (e até mesmo de forma vulgar, alerta-se), a análise de Streck sobre os impactos do "pamprinciologismo" no Direito pátrio, temos que a positivação dos valores acabou sendo tergiversada, transmutando-se ora em saída cômoda a casos difíceis ou incertezas de linguagem, ora como forma de "positivação" de uma certeza ou pensamento de cunho pessoal (típicas do solipsismo) [15].

Nessa toada, e para evitar a chamada ampla discricionariedade dos juízos [16], nosso atual CPC "extirpou" o termo "livre" da persuasão racional e forneceu balizamentos (contrario sensu) para uma decisão (no caso, a sentença, mas vigorando para todo ato com conteúdo decisório) devidamente fundamentada.

E, sem qualquer sombra de dúvidas, esse foi o mote que animou a edição da Lei nº 13.655/2018, introdutor de profundas alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, citando, especialmente, aquelas dos artigos 20 e 23 do diploma.

Ou seja: ainda que não se tenha produzido efeitos práticos imediatos, a supressão do termo "livre", em relação ao convencimento motivado traduz profunda alteração paradigmática não apenas com funções de controle ou interpretativas, mas até mesmo com mudanças normogenéticas.

Não há (mais) liberdade para a formação do convencimento?
Apesar de todas as balizas impostas, e, aqui, pedindo vênia, a resposta ao título do tópico pode apenas ser negativa.

A bem da verdade, embora possa soar simplista e extremamente grosseiro, temos que apenas pode se convencer (de algo) e formular tal convicção aquele que efetivamente é livre.

Nesse diapasão, Gajardoni afirma:

"E não deixou por uma razão absolutamente simples: o princípio do livre convencimento motivado jamais foi concebido como método de (não) aplicação da lei; como alforria para o juiz julgar o processo como bem entendesse" [17].

E arremata:

"O que houve, portanto, foi apenas o advento de uma disciplina mais clara do método de trabalho do juiz, não a extinção da autonomia de julgamento. Para nosso bem, na Justiça dos homens o fator humano é insuprimível. Por isso, enquanto os julgamentos forem humanos, a livre convicção do julgador, dentro de algumas importantes balizas, sempre estará presente" [18].

Deve-se destacar, contudo, que o simplismo adotado no primeiro parágrafo deste tópico, ao ser borrado que "a resposta ao título do tópico pode apenas ser negativa" foi proposital e deve ser tomada cum granu salis.

Isso porque é inegável que, como atividade humana, a formulação de uma decisão judicial sofre influências de convicções pessoais, linguagem adotada, concepções sociais e filosóficas, entre outras.

Contudo, não podemos nos descurar que o ato decisório, apesar de "emanado de um ser humano", a este não pertence. É dizer, e de forma simples: "a decisão é do Estado" [19].

E, assim sendo, a "liberdade" do julgador pode (e deve) ser controlável (e isso sempre ocorreu veja, nessa senda, a arquitetura do sistema recursal pátrio) e pode sofrer balizamentos, sem que isso ofenda a atividade jurisdicional.

E, nesse ponto, manifesta é a concordância com a lição gizada pelo eminente processualista, quando afirma que o (livre) convencimento motivado jamais foi arquitetado como "meio de (não) aplicação da lei".

Ao reverso!

Contudo, é igualmente compreensível o "cuidado" expressado na supressão do termo livremente no artigo 371 do CPC (aliás, anotando que o Projeto no NCPP, no seu original, ainda mantém o termo, com pleito de emenda para sua supressão não analisado), vez que, ao invés de "engessar" ou "robotizar" a atividade jurisdicional, esse "zelo epistemológico" acaba por reforçar o que é (rectius: ao menos deveria ser) evidente: as decisões judiciais são controláveis e devem ser proferidas dentro de firmes balizas das normas; e a "atividade criativa", própria de qualquer texto humano, não pode, dentro do Direito, ser instrumento de veiculação de uma irracional (pré) concepção. Ao reverso, deve desvelar procedimentos altamente racionais e que permeiam a atividade.

Conclusão
Assim, em caráter expositivo, as presentes linhas foram borradas com o declarado intuito de descrever a "tensão" experimentada quanto ao tema. Malgrado a (ainda presente) candência da discussão e força dos pensamentos expostos pelos diversos autores citados, tem-se que estes não são (ao menos necessariamente) inconciliáveis, possuindo alguns pontos de aderência, bem como uma ampla abertura à formulação de um discurso de consenso.

 


[1] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 932.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17.ed. 1.vol São Paulo : Saraiva, 2012, p. 76.

[3] Vide: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2014, p.278.

[4] Ibid., p. 275.

[5] O presente estudo possui declaradamente foco no sistema processual civil. Contudo, para que não fique sem tal citação, recorda-se que o artigo 155 do CPP possui semelhante redação no seu artigo 155, ao aduzir que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

[6] Nesse sentido: DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil 18.ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.103.

[7] AgInt no AREsp n. 1.457.765/SP, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/8/2019, DJe 22/8/2019.

[8] AgRg no AREsp 8.590/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 1/7/2011.

[9] STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.25.

[12] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. A revolução silenciosa da execução por quantia. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-revolucao-silenciosa-da-execucao-por-quantia-24082015. Acesso em 15/8/2020.

[13] DIDIER Jr. Fredie. Curso de direito processual civil. 2.vol. 10.ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 103.

[14] TARUFFO, Michele. La semplice verità. Il giudice e la costruzione dei fatti. Bari: Laterza, 2009, p . 194.

[15] STRECK, Lênio Luiz. O pamprincipiologismo e a flambagem do Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-out-10/senso-incomum-pamprincipiologismo-flambagem-direito . Acesso em 16/8/2020.

[16] Termo que, independentemente de pontuais discordâncias, é deveras impreciso, até mesmo porque, como corrente no Direito Administrativo, esta se funda em conveniência e oportunidade.

[17] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2015/04/06/livre-convencimento-motivado-cpc/. Acesso em 16/8/2020.

[18] Id. Ibid.

[19] O que, aliás, é corolário da “Teoria do Órgão”.

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