Opinião

Carreira de oficial de Justiça deve ser reconhecida como exclusiva de Estado

Autor

  • Gerardo Alves Lima Filho

    é presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça do DF oficial de Justiça do TJ-DFT especialista em Direito na ESMA/DF e mestre em Direito e Políticas Públicas no UniCEUB.

18 de agosto de 2020, 6h35

Um dos temas mais debatidos no Brasil na atualidade diz respeito à anunciada apresentação de uma reforma administrativa. O texto ainda é desconhecido, contudo já foram publicadas na imprensa declarações de autoridades fazendo referência à perda da estabilidade, redução de salários, novos mecanismos de avaliação dos servidores públicos, entre outras medidas.

O debate no Congresso Nacional se encontra capitaneado por duas Frentes Parlamentares: a Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa e a Frente Parlamentar Mista do Serviço Público. Enquanto a primeira sustenta a necessidade da reforma para a retomada do crescimento econômico, a segunda manifesta preocupação com a precarização do serviço público.

Nesse contexto, algumas declarações do presidente da República trouxeram à tona outro tema, imbricado com a reforma administrativa, que demanda regulamentação: a definição das carreiras exclusivas de Estado. Isso porque Jair Bolsonaro manifestou opinião de que as carreiras típicas de Estado teriam mantida a estabilidade na reforma administrativa.

No entanto, resta a dúvida acerca de quais são as carreiras típicas ou exclusivas de Estado (trataremos indistintamente as expressões "carreira típica de Estado" e "carreira exclusiva de Estado"). É lugar-comum apontar-se que integram essas carreiras os servidores das Forças Armadas, órgãos de segurança pública, arrecadação etc., entretanto diante da definição até mesmo de um regime jurídico específico torna-se necessário construir critérios e uma definição precisa de quais servidores compõem essas carreiras. Neste artigo, nos propomos a identificar se os oficiais de Justiça devem ser reconhecidos como carreira exclusiva de Estado.

Inclusive, digno de registro que não abordaremos neste trabalho as demais questões da reforma administrativa. Mas é importante já manifestarmos a percepção de que os problemas no serviço público são relacionados com a falta de gestão, de planejamento e de controle, e não com prerrogativas do servidor público. Isso posto, podemos aprofundar na questão das carreiras exclusivas de Estado.

A CF/88 dispõe em seu artigo 247 que o servidor público estável que desempenhe atividades exclusivas de Estado possuirá garantias especiais a fim de evitar a perda do cargo público. Essa norma possui como escopo a proteção da sociedade, na medida em que viabiliza que o servidor público exerça suas atribuições de maneira impessoal e sem receio de retaliações.

Entrementes, a CF/88 não definiu critérios e nem especificou quais seriam as carreiras que desenvolveriam essas atividades exclusivas de Estado. E até hoje não houve a aprovação de qualquer regulamentação sobre o tema. De forma indireta, o artigo 4º, III, da Lei 11.079/2004 (Lei das Parcerias Público-Privadas) faz referência à "indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado". Esse critério não se afasta muito do aplicado por décadas com base no artigo 2º da Lei 6.185/1974, qual seja, o que leva em consideração as atividades inerentes ao Estado como poder público sem correspondência no setor privado, citando expressamente as áreas da segurança pública, arrecadação de tributos etc.

Com base nessas premissas legais, pode-se inferir que as atividades exclusivas de Estado são aquelas que não encontram correspondência no setor privado, especialmente no que diz respeito às funções de regulação, jurisdicional, poder de polícia, segurança pública, arrecadação de tributos, entre outras previstas na legislação supracitada. Esse rol é meramente exemplificativo, mas oferece um norte das carreiras que podem ou não ser enquadradas como típicas de Estado.

Para se analisar, portanto, se uma carreira deve ou não ser reconhecida como exclusiva de Estado, faz-se mister o cotejo das suas atribuições com as funções arroladas pelo legislador como indelegáveis. Desse modo, para a análise do enquadramento dos oficiais de Justiça, far-se-á essa comparação levando-se em consideração as atividades desempenhadas por esses profissionais.

Os oficiais de Justiça possuem diversas leis que regulamentam suas atribuições. Na esfera federal, a Lei nº 11.416/2006, em seu artigo 3º, I, c/c artigo 4º, I, § 1º, estabelece que os oficiais de Justiça são os profissionais bacharéis em Direito responsáveis pela execução de tarefas de elevado grau de complexidade, consubstanciadas pelo cumprimento de mandados e atos processuais de natureza externa, de acordo com a legislação processual civil, penal, trabalhista e demais leis especiais. Cada estado possui disciplina própria para os oficiais de Justiça do respectivo tribunal de Justiça, contudo as atribuições processuais são as mesmas até mesmo em virtude da competência privativa da União de legislar sobre direito processual, conforme a dicção do artigo 22, I, da CF/88.

No CPC, as atribuições dos oficiais de Justiça em síntese se referem a citações, intimações, notificações, prisões, penhoras, arrestos, buscas e apreensões, reintegrações de posse, arrolamento de bens e demais atos cautelares e executivos, avaliações, certificação de autocomposição, entre outras. No CPP, o oficial de Justiça é responsável pelos atos de condução coercitiva, citação, intimação, notificação, pregão e acompanhamento dos jurados para garantir a incomunicabilidade e sigilo dos votos no tribunal do júri, alvará de soltura e captura de internando que recebeu medida de segurança. Na CLT, compete ao oficial de Justiça os atos relacionados com a execução e avaliação de bens.

No Código de Processo Penal Militar, o oficial de Justiça possui como atribuições executar buscas domiciliares ou pessoais, citações, condução coercitiva, entre outras. Na Lei de Execução Fiscal, o oficial de Justiça deve realizar a citação na hipótese de ser frustrada a tentativa pelo correio e proceder à penhora ou arresto de bens. No âmbito eleitoral, de acordo com o artigo 5º da Resolução 23.517/2017 do Tribunal Superior Eleitoral os oficiais de Justiça cumprem mandados de intimação, notificação, citação, penhora, avaliação, busca e apreensão, prisão, constatação, condução coercitiva de testemunha/acusado, arresto e verificação de vínculo de domicílio.

Na cooperação jurídica internacional, a título de exemplo, as atribuições dos oficiais de Justiça são referidas expressamente no artigo 17 e indiretamente no artigo 10 da Convenção de Haia relativa à Citação, Intimação e Notificação no Estrangeiro de Documentos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial (promulgada pelo Decreto 9.734/2019). Ainda que o Brasil tenha optado por manter o Ministério da Justiça e Segurança Pública como autoridade central para transmissão dos documentos judiciais, a alusão aos oficiais de Justiça demonstra a relevância das atribuições desses profissionais no mundo.

Ainda poderiam ser apontadas diversas outras leis que tratam de atribuições dos oficiais de Justiça, mas o objetivo já foi alcançado de demonstrar o núcleo comum desempenhado. No geral, os oficiais de Justiça cumprem em processos civis (tributários, administrativos, de família, comerciais etc.), penais, trabalhistas, militares e eleitorais, mandados de citação, intimação, notificação, prisão, captura, penhoras, avaliações, arrestos, sequestros, buscas e apreensões, despejos, reintegrações de posse, afastamentos do lar, conduções coercitivas, buscas domiciliares ou pessoais, entre outros.

Cumpre agora realizar um cotejo dessas atribuições com aquelas previstas como próprias das carreiras exclusivas de Estado para se verificar a sua similitude ou não. Conforme se verificou acima, o tratamento legal da matéria, ainda que de forma indireta, indica que são carreiras típicas de Estado aquelas que exercem atividades sem correspondência no setor privado, mormente no que diz respeito às funções jurisdicional, poder de polícia, segurança pública e arrecadação de tributos.

Inicialmente, importante destacar que as atividades dos oficiais de Justiça não possuem correspondência no setor privado. Isso porque no Brasil há o monopólio estatal da força e qualquer um que se aventurasse, por exemplo, a realizar uma busca e apreensão de um bem estaria praticando no mínimo o delito de exercício arbitrário das próprias razões previsto no artigo 345 do CP.

No que tange à função jurisdicional, digno de registro que ela é exercida pelo conjunto das atividades dos atores processuais do Judiciário que praticam atos com autonomia, não se restringindo à atuação do magistrado. A título de ilustração, dificilmente em um processo de cobrança de valores ocorrerá a entrega da prestação jurisdicional se o oficial de Justiça não penhorar e avaliar bens do devedor. O mesmo ocorre em um processo de busca e apreensão de um menor ou na reintegração de posse de um imóvel se não tiver participação efetiva de um oficial de Justiça praticando atos em nome próprio.

As funções desempenhadas pelos oficiais de Justiça integram a tutela jurisdicional. Tão relevante quanto decidir um conflito com caráter de definitividade é tornar efetivo o direito do vencedor. E não seria demais destacar que os oficiais de Justiça receberam esses poderes do próprio legislador, como demonstra o artigo 782 do CPC.

A esse respeito, cumpre salientar também que o artigo 4º do CPC dispõe expressamente no sentido de que as partes possuem direito à obtenção de solução integral do mérito em prazo razoável, "incluída a atividade satisfativa". Em outras palavras, a atividade satisfativa que integra a prestação jurisdicional é realizada por meio da atuação do oficial de Justiça.

O legislador atribui para os oficiais de Justiça poderes para a prática de atos processuais inclusive de natureza decisória. Por exemplo, na citação por hora certa é o crivo do oficial de Justiça que decidirá se a pessoa se ocultou ou não e a citação é ato indispensável para a validade do processo de acordo com o artigo 239 do CPC. Além disso, dentre vários bens do executado, o oficial de Justiça decidirá sobre qual deles incidirá a penhora ou até mesmo se não incidirá constrição por estarem protegidos pela impenhorabilidade do bem de família. Da mesma forma, a atribuição de valor na avaliação é uma decisão. Naturalmente, todas essas decisões seguem balizas legais, e, no caso de inconformismo, poderá a parte interessada requerer ao juiz modificação do ato praticado pelo oficial de Justiça, mas a natureza dessa petição seria de recurso contra uma decisão já tomada  a decisão do oficial de Justiça.

Enfim, os oficiais de Justiça praticam atos que integram a função jurisdicional, razão pela qual devem ser enquadrados como carreira exclusiva de Estado nos termos da legislação vigente. Inclusive, o PL 3.351/2012 (arquivado em virtude do término da legislatura) que objetivava definir as carreiras exclusivas de Estado, estipulava em seu artigo 2º, III, que receberiam essa definição no âmbito do Poder Judiciário as atividades exercidas pelos integrantes das carreiras jurídicas de magistrado e as relacionadas à atividade-fim dos tribunais (incluindo os oficiais de Justiça). Igualmente, o PL 319/2007 (arquivado por questões financeiras e orçamentárias porque o projeto estabelecia reajuste de remuneração), de autoria do Supremo Tribunal Federal, previa em seu artigo 3º que os servidores efetivos do Judiciário executam atividades exclusivas de Estado, ou seja, o STF entende que os servidores do Judiciário, incluindo os oficiais de Justiça, exercem carreira típica de Estado.

De outro lado, resta evidente que os oficiais de Justiça também desempenham atividades caracterizadas como poder de polícia (outro fator indicativo das carreiras exclusivas de Estado). O poder de polícia é definido pelo artigo 78 do Código Tributário Nacional como atividade da administração pública que limita direito em virtude de interesse público relacionado com a segurança, higiene, ordem, costumes, disciplina da produção e do mercado, atividades dependentes de autorização para funcionar, tranquilidade pública etc.

E o oficial de Justiça com frequência cumpre mandados para fechar um estabelecimento que não se encontra cumprindo as regras de vigilância sanitária, como está ocorrendo durante a pandemia do coronavírus. Outrossim, por determinação judicial o oficial intima pessoas para cumprir as medidas de isolamento social. Assim, também por esse critério o oficial de Justiça deve ser enquadrado como carreira exclusiva de Estado.

Com relação à segurança pública, impende sublinhar que os oficiais de Justiça desempenham atribuições muito semelhantes com as da polícia judiciária. Enquanto os policiais civis e federais cumprem mandados de intimação e busca e apreensão em inquéritos, por exemplo, os oficiais de Justiça cumprem mandados de intimação e busca e apreensão em processos judiciais.

Ressalte-se ainda que os oficiais de Justiça também cumprem mandados de prisão e captura. Então, mesmo que não sejam integrantes dos órgãos descritos no artigo 144 da CF/88, pela semelhança de algumas atribuições com os policiais, os oficiais de Justiça devem ser reconhecidos por esse critério como carreira típica de Estado.

Por fim, em relação à função de arrecadação de tributos, é cristalino que os oficiais de Justiça realizam referida atividade promovendo penhoras e arrestos de acordo com a Lei de Execução Fiscal. Ocorre uma atuação direta na recuperação da dívida ativa do Estado. Bilhões de reais são recuperados todos os anos para o Estado em decorrência do trabalho dos oficiais de Justiça. Com base nessa função também, os oficiais devem ser reconhecidos como carreira exclusiva de Estado.

Diante de tudo o que foi exposto, resta claro que os oficiais de Justiça se enquadram nos critérios que definem uma atividade como carreira típica de Estado por praticarem atos não correspondentes com o setor privado e que podem ser identificados com uma das seguintes funções: jurisdicional, poder de polícia, segurança pública e arrecadação de tributos. E nesse momento é de extrema relevância chamar atenção para esses aspectos a fim de evitar que os oficiais de Justiça recebam regime jurídico incompatível com suas atribuições, prejudicando toda a sociedade.

Com efeito, o regime jurídico específico dos servidores públicos definido pela CF/88 teve por desiderato a garantia da impessoalidade dos serviços prestados, de modo a beneficiar todos os cidadãos. As prerrogativas dos oficiais de Justiça são imprescindíveis para que a Justiça chegue para todos da mesma forma sem receio de retaliação em decorrência do poder político ou econômico do destinatário da ordem judicial.

A atividade dos oficiais de Justiça é fundamental para a efetivação dos direitos fundamentais, o adequado funcionamento do Judiciário e o aprimoramento do processo democrático no Brasil. Contudo, esses avanços demandam valorização dos profissionais encarregados de materializar os direitos dos cidadãos, o que nesse momento perpassa pelo reconhecimento dos oficiais de Justiça como integrantes das carreiras exclusivas de Estado.

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  • Brave

    é presidente da Associação dos Oficiais de Justiça do Distrito Federal, membro do Conselho Deliberativo da Associação dos Servidores da Justiça do DF, oficial de justiça do Tribunal de Justiça do DF, professor de Direito da Faculdade Projeção e mestrando em Direito e Políticas Públicas no UniCEUB. Bacharel em Direito na Universidade Federal da Bahia e especialista em Direito na Escola da Magistratura do Distrito Federal.

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