Academia de Polícia

Abuso de autoridade: constranger preso a vexame, a mostrar corpo ou a produzir prova

Autores

  • Adriano Sousa Costa

    é delegado de Polícia Civil de Goiás autor pela Juspodivm e Impetus professor da pós-graduação da Verbo Jurídico MeuCurso e Cers membro da Academia Goiana de Direito doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

  • Eduardo Fontes

    é delegado de Polícia Federal ex-superintendente da Polícia Federal no estado de Amazonas autor de obras jurídicas pela Juspodivm professor de ciências criminais fundador do curso Próximo Delegado professor da Academia Nacional de Polícia especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça mestrando em Ciências Jurídicas e Políticas pela Univesridade Portucalense coordenador do Iberojur no Brasil aprovado nos concursos de procurador do estado de São Paulo e delegado de Polícia Civil no Paraná.

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

18 de agosto de 2020, 15h21

ConJur
É consabido que a Lei 13.869/19, ao revogar a Lei 4.898/65, tornou-se a atual Lei de Abuso de Autoridade, englobando a tipificação de crimes funcionais, cometidos pelo agente público que extrapola os limites de atuação e fere o interesse público.[1]

Vejamos o crime de constrangimento de preso a exibir corpo, a vexame ou a produzir de prova, hospedado no artigo 13 da Lei 13.869/19, cujo tipo penal é estruturado da seguinte forma:

Art. 13.  Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:
I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;
II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;
III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

Sublinhe-se, desde logo, que não basta o dolo de praticar a conduta típica de abuso, sendo preciso o animus abutendi. O agente público deve agir com a finalidade específica (elemento subjetivo especial) de, alternativamente (art. 1º, §1º): (a) prejudicar outrem; (b) beneficiar a si mesmo ou a terceiro; (c) por mero capricho; (d) por satisfação pessoal.

Claro que a presunção é de que o agente atua com boa-fé, cabendo a quem alega má-fé comprová-la com elementos concretos e não meras suposições. Portanto, não comete abuso de autoridade o agente que errar ou atuar com desídia.

Grife-se ainda que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (art. 1º, §2º), vedando-se crime de hermenêutica.

Para um escorreito exame da conduta (tipo objetivo), imprescindível notar que, de um lado, possuem alta envergadura os direitos constitucionais da pessoa à integridade moral, à honra e imagem (art. 5º, XLIX e X da CF), bem como a presunção de inocência (art. 5º, LVII da CF). A Lei de Execução Penal e o Código Penal reiteram a proteção à integridade moral do preso, protegendo-o contra qualquer forma de sensacionalismo (arts. 40 e 41, VIII da Lei 7.210/84 e art. 38 do CP).

De outro flanco, com igual importância estão estampados na Constituição o princípio da publicidade (arts. 5º, LX e 37 da CF), o direito de acesso à informação (art. 5º, XIV da CF), a liberdade de imprensa (art. 220 da CF) e o direito à segurança pública (art. 144 da CF). O Código Civil vaticina que a exposição da imagem da pessoa é lícita se se necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública (art. 20 do CC), e a Lei de Acesso à Informação que a divulgação das informações pessoais pode se dar para proteção do interesse público e geral preponderante, e não prejudicar apuração de irregularidades em que estiver envolvido (art. 31 da Lei 12.527/11).

Além disso, em razão da inexigibilidade de autoincriminação (art. 5º, LXIII da CF e art. 186 do CPP), também conhecida como nemo tenetur se detegere, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.

O texto legal criminaliza a conduta de constranger, que nada tem a ver com a vergonha ou a humilhação do preso ou do detento. Trata-se de constrangimento real, ou seja, de limitação forçada à liberdade do indivíduo de fazer (ou não fazer) o que deseja. Por isso, o constrangimento mencionado no caput não pode ser confundido com o constrangimento do inciso II, este sim ligado à vergonha do preso ou do detento.

O crime não se aperfeiçoa se o constrangimento se der contra investigado ou réu solto, mas apenas preso ou detento. Considera-se (a) detento aquele que teve sua liberdade ambulatorial restringida, mas ainda não formalizada (ex: capturado por policial militar, porém sem a prisão em flagrante decretada pelo delegado), e (b) preso aquele que teve sua prisão devidamente formalizada, seja decorrente de flagrante, temporária, preventiva ou de sentença penal condenatória irrecorrível.

A conduta é considerada criminosa apenas se houver violência (violência física), grave ameaça (violência moral) ou redução da capacidade de resistência da vítima (violência imprópria). A vis corporalis oscila entre graus distintos: desde simples vias de fato até a lesão corporal gravíssima. Não há infração penal, portanto, na simples divulgação de foto do preso.

Nessa esteira, por inexistir violência ou ameaça, é fato atípico, com relação ao inciso I, a divulgação da imagem do preso (ainda que sem interesse público) por: (a) publicação de foto; (b) captação de imagem pela imprensa em local público, seja no trajeto à delegacia de polícia, seja na área aberta ao público da unidade policial.

De outra banda, pode se falar em delito, se presente o elemento subjetivo especial, quando a divulgação da imagem do custodiado se der pelo seu posicionamento para as câmeras da imprensa (ainda que de cabeça baixa ou de costas), se forçado, ameaçado ou algemado (com capacidade de resistência diminuída).

Como visto, são 3 os meios de execução desse crime: a) exibição do corpo do preso ou do detento; b) submissão a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; c) produção de prova contra si mesmo ou contra terceiro. Os 2 primeiros protegem a privacidade, imagem e honra do preso (razão pela qual serão estudados em conjunto), enquanto o último salvaguarda a inexigibilidade de autoincriminação.

Configura abuso de autoridade, por afronta ao art. 13, II da Lei 13.869/19, a ação violenta de agente público que acarrete no preso sentimento de humilhação e desonra, se presente ao menos um dos elementos subjetivos específicos da norma de extensão (art. 1º, §1º). Exemplos são forçar o preso a gravar vídeo chorando e pedindo desculpas à Polícia Militar, a ficar nu ou a vestir uma roupa ridícula.

Não há que se falar em constrangimento não autorizado em lei pelo tão só fato de ser submetido a (a) algemamento permitido (súmula vinculante 11 do STF), ou mesmo (b) a sanções disciplinares em razão da prática de infrações (art. 53 da Lei de Execução Penal), a exemplo do regime disciplinar diferenciado (art. 52 da LEP).

De outro lado, caracteriza abuso de autoridade, por violação ao art. 13, I da Lei 13.869/19, constranger o preso, mediante violência, a exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública.

O fato de o policial utilizar-se de violência para mostrar o rosto de um criminoso, quando de sua captura, em face dos reclamos do povo que deseja seja ele exposto à execração pública (geralmente por meio da imprensa), pode configurar o crime, desde que presente ao menos um dos elementos subjetivos específicos da norma de extensão (art. 1º, §1º). Não é aceitável apresentar o preso como troféu, para satisfação da sanha populista e da autopromoção do agente público, pois ainda que não haja futura absolvição, a pena a ser imposta é no máximo de prisão, e não de execração pública.

Sobre o assunto, estabelece o CPP[2]:

Art. 3º-F. O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.

Parágrafo único. Por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em 180 (cento e oitenta) dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação normativa aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão.

Nota-se que o delito não se aperfeiçoa quando houver autorização do preso, ou quando houver justificativa de interesse público (assegurados a efetividade da persecução penal e o direito à informação), pois o que se veda é a mera apresentação do custodiado sem justificativa alguma (exibição do preso à curiosidade pública).

Destarte, é fato atípico a divulgação do preso buscando a eficiência da segurança pública, para (a) capturar evadido com mandado de prisão em aberto, (b) facilitar a identificação do criminoso por outras vítimas (garantindo a efetividade da persecução penal para desvendar outras infrações penais) ou (c) prestar contas (accountability) e possibilitar o escrutínio público sobre a atuação dos órgãos de persecução criminal, notadamente quando se tratar de crimes graves ou cometidos por autoridades (possibilitando o direito à informação).

A legislação faz essas ressalvas:

Código Civil, Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Lei 12.527/11, Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

II – poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.

§ 3º O consentimento referido no inciso II do § 1º não será exigido quando as informações forem necessárias:

V – à proteção do interesse público e geral preponderante.

§ 4º A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.

Em linha semelhante a jurisprudência.[3]

Não há que se falar em crime quando não houver divulgação da imagem do preso e tampouco imposição de situação de vexame, como na hipótese de divulgação apenas do nome do investigado.[4]

Noutro giro, quanto ao art. 13, III da Lei de Abuso de Autoridade, havia sido vetado, mas o Congresso houve por bem derrubá-lo. Nas razões do veto presidencial consta que “gera insegurança jurídica, pois o princípio da não produção de prova contra si mesmo não é absoluto como nos casos em que se demanda apenas uma cooperação meramente passiva do investigado. Neste sentido, o dispositivo proposto contraria o sistema jurídico nacional ao criminalizar condutas legítimas, como a identificação criminal por datiloscopia, biometria e submissão obrigatória de perfil genético (DNA) de condenados, nos termos da Lei nº 12.037, de 2009.”

Analisando a conduta incriminada, não afronta o privilégio contra a autoincriminação, e por isso não configura crime por parte do agente público, submeter o cidadão à identificação e à produção de prova que não exija comportamento ativo incriminador nem configure prova invasiva. Nesse panorama, são autorizados:

a) identificação civil (apresentação de documento e fornecimento de dados sobre identificação), sob pena de o cidadão incorrer na contravenção penal do art. 68 da Lei de Contravenções Penais, ou ainda no crime de falsa identidade (art. 307 do CP – súmula 522 do STJ);

b) identificação criminal (art. 3º da Lei 12.037/09), sob pena de o cidadão responder pelo crime de desobediência (art. 330 do CP);

c) reconhecimento pessoal (art. 260, 2ª parte do CPP);

d) acesso aos dados sigilosos não protegidos por reserva de jurisdição (não exigem autorização judicial), como os dados cadastrais (qualificação – art. 2º, §2º da Lei 12.830/13, art. 15 da Lei 12.850/13, art. 17-B da Lei 9.613/98, art. 10, §3º da Lei 12.965/14 e art. 13-A do CPP) e dados telefônicos (agenda e histórico de chamadas, e não as mensagens, que configuram dados telemáticos – art. 7º, III da Lei 12.965/14).

Vale sublinhar que o tipo penal foi além e criminalizou a conduta de constranger alguém com a finalidade de produzir prova contra terceiro, por ter o legislador considerado grave a violência para produção dessa prova ilícita.

Por fim, registre-se que se a conduta consistir em prosseguir com o interrogatório de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio, consuma-se o delito do art. 15, parágrafo único, I da Lei de Abuso de Autoridade, não sendo preciso nesse caso o emprego de violência ou tampouco a efetiva obtenção da confissão.


[1] Para um estudo completo sobre a matéria: COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.

[2] Juiz das garantias foi suspenso cautelarmente pela Suprema Corte: STF, ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305,, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 22/01/2020.

[3] STF, ADI 4.815, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 10/06/015.

[4] SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 523.

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    é delegado de Polícia Civil de Goiás; autor pela Juspodivm e Impetus; professor da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, Verbo Jurídico e CERS; membro da Academia Goiana de Direito; doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

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    é delegado de Polícia Federal; autor pela Juspodivm; professor do CERS; especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça; coordenador do IBEROJUR no Brasil; aprovado nos concursos de Procurador do Estado de São Paulo e Delegado de Polícia Civil no Paraná.

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    é delegado de Polícia Civil do Paraná; autor pela Juspodivm; professor da Verbo Jurídico, Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná; mestre em Direito pela UENP; colunista da Rádio Justiça do STF. Foi professor do CERS, TV Justiça do STF, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional de Justiça, Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola do Ministério Público do Paraná, Escola de Governo de Santa Catarina, Ciclo, Curso Ênfase, CPIuris e Supremo. www.henriquehoffmann.com

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