Opinião

Pela longa estrada da vida na regulação do saneamento básico no Brasil

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

17 de agosto de 2020, 6h36

Os desafios da regulação no setor de saneamento básico são enormes, não só pela complexidade de se normatizar tal prestação, como pela multiplicidade de agentes reguladores existentes no país. A aprovação do novo marco legal no setor, instituído pela Lei nº 14.026/2020, fornece um desafio ainda maior: a Agência Nacional de Águas (ANA), transformada em Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico pela referida legislação, passará a ter competência para editar regulamentos de referência, que servirão de base nacional ao setor.

Essencialmente, esse é um dos conteúdos essenciais da referida lei e que desperta muitas reflexões. Duas delas podem ser antecipadas: 1) qual a natureza dessas normas de referência?; 2) qual deve ser o conteúdo desas regras? Na nossa visão, será esse segundo ponto o grande desafio da referida agência e do setor.

Muitas metodologias ou estratégias podem ser empregadas na construção dos modelos regulatórios. Um primeiro passo a ser dado consiste na melhoria da assimetria informacional do setor. A rigor, é fundamental que a regulação do saneamento básico tome por base de informações confiáveis, suficientes e fidedignas. Esse fator é essencial em se conseguir uma arquitetura normativa que desempenhe um real indutor do atingimento das metas de universalização e da qualidade do serviço a ser prestado. Definitivamente, a regulação de qualquer setor tenderá à ineficiência se lastreada em dados equivocados ou quando feita sem qualquer substrato informacional.

Uma política pública concertada e dialógica com os vários atores do mercado parece ser o passo inicial natural, a fim de se compreender e mapear as várias dificuldades e complexidades existentes. Em um segundo momento, esse banco de dados coletados poderá ser consolidado com as informações oriundas dos planos de saneamento vigentes, alterados ou confeccionados. Aliás, o artigo 19 da Lei nº 14.026/2020 determina que todos os referidos planos devem ser enviados ("comunicados", nos termos da lei) à ANA. Nesse primeiro aspecto, a agência reguladora federal poderá avaliar se o plano atende aos requisitos legais e regulamentares, bem como poderá prestar auxílio técnico nesse sentido. Mas não é só: a ANA deverá receber os dados de todos os planos de saneamento do país, seja quando da sua formatação, seja quando da sua execução, para inserção no Sinisa (Sistema Nacional de Informações em Saneamento). Tal banco de dados substituirá o sistema atual SNIS.

Essas medidas tendem a contornar a assimetria de informações ou mesmo sua ausência no campo da regulação do saneamento básico. Por isso, o sistema pretende compilar, revelar e sistematizar os dados oriundos das múltiplas regiões do país, para que se possa pensar em uma regulação de referência. Por exemplo: muito se fala em subsídios cruzados no setor. Mas há uma intensa dificuldade em mensurar claramente a eficiência desta política, ou mesmo em que faixa de consumo ele ocorre. O desconhecimento das informações é bastante problemático. Por isso que o Sinisa se mostra essencial. De outro lado, será muito importante prever, nos contratos, que os prestadores de serviço público de saneamento básico demonstrem e revelem claramente os dados necessários a perceber a evolução da execução das atividades, fator que vem a subsidiar a política regulatória.

Veja que é de suma importância a condensação de tais dados, a fim de aumentar a transparência, permitir a parametrização e sistematização das informações, aumentar o controle social etc. A partir do momento em que os dados se tornam públicos, pode ser aplicada a "regulação sunshine", ou seja, uma metodologia que tem por meta qualificar os níveis de transparência e de controle social sobre os serviços de saneamento básico, traduzindo os resultados de uma lista de indicadores selecionados em sinais de simples interpretação. Compreende-se, neste aspecto, que os dados fornecidos pelas prestadoras de serviço não são os únicos a serem mensurados, mas haverá uma comparação com outros players do setor ou com indicadores nacionais. A regulação por exposição se insere no contexto da "regulação por comparação", e pretende estabelecer um ambiente competitivo equilibrado, ao disponibilizar um conjunto de informações de modo uniforme aos participantes do mercado relevante (market share).

A estratégia de publicização dos dados por meio da medição, comparação e discussão pública dos resultados do desempenho dos prestadores de serviço gera um efeito coercitivo naqueles que possuem um desempenho "medíocre", porque ficam "embaraçados" com sua situação. Daí porque viriam a ser compelidos a corrigir suas falhas e melhorar sua performance. Por isso que os mecanismos de benchmarking são relevantes, para demonstrar o desempenho por indicadores esperados e o desempenho dos demais participantes do mercado regulado. É claro que a regulação sunshine terá de contornar determinados problemas ou complexidades. Por exemplo: os players do mercado podem não se incomodar com sua exposição; a divulgação dos dados pode prejudicar a imagem da empresa; pode existir dificuldade na obtenção da informação etc [1].

De outro lado, será essencial que a regulação de referência acerte a governança das múltiplas agências reguladoras independentes e espalhadas pelo Brasil, unificando um procedimento comum na confecção das regras que irão disciplinar a boa prestação do serviço.

A partir dessas duas providências, já se têm condições de se pensar a regulação dos graves problemas hoje vivenciados pelos prestadores do serviço público de saneamento básico, consistentes, por exemplo, no reuso dos efluentes sanitários tratados, nas perdas de água, na definição dos padrões de qualidade do serviço, na regulação tarifária etc. Esse último ponto será agora ainda mais sensível, especialmente porque o novo marco legal determina que a prestação do saneamento se faça por contratos de concessão, precedidos de licitação pública, e não por contratos de programa ou convênios de parceria (os quais, aliás, foram extintos pela Lei nº 14.026/2020).

O arranjo das prestações será outra tarefa ainda mais complexa. A legislação mencionada incentiva intensamente a formação de blocos regionais de prestação do serviço, ou seja, pretende que vários municípios sejam agregados em um bloco comum, o qual é responsável pela prestação das atividades de saneamento básico. Quer-se, com isso, obter ganho de economia de escala e de escopo. Contudo, isso não será tarefa simples, não só pelos fatores técnicos envolvidos, mas também pelos fatores políticos que não são nem um pouco desprezíveis. Nesse último caso, correntes político-partidárias antagônicas podem ter dificuldade de se acertar em integrar tal bloco (lembrando que a adesão não é obrigatória).

Em relação às dificuldades técnicas, posso dar um exemplo para aclarar. Veja que a região sul do Estado do Rio Grande do Sul é constituída de municípios com grandes extensões territoriais, ou seja, sem constituírem uma região que necessariamente possa ser coligada pelo Estatuto da Metrópole. Ou vamos a outro exemplo: imagine que o VPL (valor presente líquido) para a prestação do serviço seja em negativo para todos os municípios de uma determinada região. Ora, nessa situação, parece não fazer sentido que se tenha a constituição de um bloco regional, que justamente tem razão de ser quando se faz, por exemplo, subsídio cruzado, entre os municípios lucrativos e não lucrativos. Em tese e talvez de modo raro, poderia ainda assim fazer sentido a criação de um bloco nos municípios com VPL negativo, desde que se atuasse em economia de escala e de escopo à racionalização de recursos, fazendo com que este índice se tornasse, no todo, positivo.

Queremos dizer com tudo isso que a regulação do setor de saneamento básico no Brasil ainda deve percorrer um longo caminho. Mas é uma jornada que necessariamente deva ser percorrido. Sabemos bem que todo trajeto começa com um primeiro passo, o qual já foi dado com a aprovação do marco legal. E a velocidade com que se percorre uma jornada depende da nossa disposição em caminhar. E, ao que parece, isso não falta em relação às autoridades públicas e privadas, o que indica que o caminho pode ser longo, mas percorrido de modo rápido.

 


[1] TEIXEIRA, J. C.; HELLER, L. Modelo de priorização de investimentos em saneamento com ênfase em indicadores de saúde: desenvolvimento e aplicação em uma companhia estadual. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 6, 2001, p. 138-146.

Autores

  • Brave

    é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito (UFRGS), professor de Direito Administrativo e autor da obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!