Opinião

Os motivos para a carga tributária brasileira ser alta e mal distribuída

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17 de agosto de 2020, 12h20

I) A justificação, o conceito e a utilidade dos tributos
Os grupamentos humanos começam a se organizar quando impõem a todos o dever de respeitar os demais, o que faz surgirem os direitos à vida, à integridade física, à liberdade e ao patrimônio, entre outros. Antes do estabelecimento dos deveres de abstenção não existiam tecnicamente direitos, mas, apenas, pretensões de sobrevivência e apropriação, que dependiam dos esforços individuais.

A evolução das sociedades decorrente da sofisticação dos deveres permite o exercício da atividade econômica, a preservação da propriedade e dos direitos essenciais, gerando, por outro lado, um constante aumento de demandas sociais, que dependem da arrecadação tributária para serem satisfeitas.

O critério mais justo de apuração da possibilidade de contribuir para o desenvolvimento social, denominado capacidade contributiva, é a aferição dos resultados obtidos pelos contribuintes a partir da inserção social. Pode colaborar mais quem mais retorno obteve.

Por isso, o tributo pode ser conceituado como a retribuição à sociedade pelo sucesso em obter ou acumular riquezas, pois é a inserção em uma sociedade organizada que viabiliza a atividade econômica e a preservação da riqueza obtida. É a proliferação desse sucesso que permite os investimentos públicos, que produzem mais retorno a todos.

Sob o ponto de vista do ente arrecadador, o tributo é o meio pelo qual o Estado extrai uma parcela de cada conduta economicamente relevante para realimentar a economia com gastos públicos voltados ao desenvolvimento econômico e social. Esse ciclo será virtuoso se a carga for adequadamente distribuída e os recursos bem gastos, tornando-se vicioso quando uma dessas vertentes da circulação financeira é mal equacionada.

A inclusão dos tributos nos preços e nas rendas faz com que as relações jurídicas econômicas passem a interessar a toda a sociedade e não apenas aos partícipes. Os recursos por elas transferidos proporcionam um ciclo econômico produtor de mais riqueza, que justifica a tributação.

Ao lado da função primariamente arrecadadora dos tributos, pautada na aferição da riqueza gerada ou preservada (fundamento da tributação patrimonial), também existe a função indutora de comportamentos socialmente adequados. Essa utilização pelo legislador de objetivos e princípios externos ao Direito Tributário para adequar incidências tributárias é denominada extrafiscalidade [1].

Com base nela são estabelecidos estímulos à preservação ambiental e histórica, por meio de isenções de IPTU e ITR, por exemplo, assim como desestímulos ao consumo não saudável ou socialmente perigoso.

O uso da extrafiscalidade pelo legislador tributário não afasta a necessidade de respeitar a capacidade contributiva, que continua sendo o pressuposto de incidência. Contudo, ela deixa de ser o principal critério de sintonia da incidência tributária para funcionar como limite da incidência suportável, o que evita que os tributos tenham efeito confiscatório. Assim, a carga tributária sobre a fabricação e venda de armas, bebidas alcoólicas e cigarros pode ser elevada, mas nunca a ponto de inviabilizar a produção, o que constituiria em confisco do direito à livre iniciativa.

Em síntese, os tributos possuem cinco funções, sempre associadas à solidariedade social:

a) Retribuição fundada na inserção social que proporcionou a riqueza tributada;

b) Multiplicação da riqueza decorrente da maior circulação de recursos gerados pelo pagamento de tributos;

c) Redistribuição solidária da riqueza, que dignifica os que necessitam e, ao incluí-los, aumenta o círculo de agentes econômicos;

d) Utilização extrafiscal dos tributos, que direciona a conduta das pessoas em prol do desenvolvimento econômico e social;

e) Custeio da atividade pública especialmente dirigida ao contribuinte, que justifica a cobrança das taxas e contribuições de melhoria.

II) A distorção tributária brasileira
A comparação dos dispositivos tributários e orçamentários da Constituição Brasileira, que ultrapassam 500 [2], com os correspondentes textos dos demais países [3], que não alcançam 30, em sua maioria, chama a atenção para o caráter prolixo e confuso da nossa, que acumula um longo capítulo tributário com outras dezenas de artigos espalhados.

A complexidade e o detalhismo se espraiaram pelo sistema infraconstitucional, gerando constantes modificações tanto na carta constitucional quanto nas leis, decretos e jurisprudência, que causam insegurança, desestimulam os empreendedores e colaboram para um crônico desemprego e atraso econômico.

A leitura das demais constituições demonstra que o problema brasileiro não é apenas quanto à extensão, mas até de entendimento e de compatibilização entre as competências federativas. A maioria dos nossos litígios tributários tem algum fundamento constitucional e em leis complementares federais, o que atrai a competência tanto do STJ quanto do STF, produzindo um infindável reexame jurisprudencial.

Nenhum dos países com características semelhantes possui uma constituição financeira prolixa e, em consequência, alterada ordinariamente como a do Brasil, sejam as dos países federais, latino-americanos, de origem portuguesa ou mesmo as que surgiram logo após o fim de ditaduras [4].

O único fator que distingue a sociedade brasileira das demais é a ausência de um mito fundador, caracterizado por um grande rompimento, como as guerras de independência, unificação ou desocupação do território. A independência foi uma solução de conveniência para o imperador e a República foi noticiada ao povo a posteriori.

Essa trajetória histórica fez com que a sociedade brasileira não se sinta componente do Estado, que é visto como um ser apartado a ser controlado detalhadamente. O sentimento oposto seria essencial para a construção de uma legislação constitucional que confiasse na dinâmica legislativa e jurisprudencial, ao invés de tentar substituí-la constantemente. O Estado é apenas um condomínio indissolúvel do qual somos todos titulares solidários. É essa solidariedade que deveria pautar a construção do sistema tributário.

Também colaboraram para a inchação constitucional a ilusão de que a positivação de regras e direitos pode criar estabilidade [5], proporcionar direitos inexequíveis e impedir desvios. Ajudaria a evitar esse erro a lembrança dos ensinamentos de Thomas Paine [6], que considerava a pretensão de governar além do túmulo como a pior das tiranias.

O chamado núcleo duro da Constituição, protegido pelas cláusulas pétreas, foi ampliado em 1988 e ainda mais alargado pela jurisprudência, refletindo um desejo imaturo de segurança [7] que gerou uma Constituição muito mais emendada do que qualquer lei complementar ou ordinária, inclusive o Código Civil anterior, com quase um século de história.

O distanciamento entre a sociedade e o Estado afetou mais fortemente o sistema tributário, gerando tanto o mencionado detalhamento excessivo quanto a criação das chamadas imunidades, que constituem áreas de exclusão da incidência tributária.

A maioria aceitou, com impressionante naturalidade, que uma parcela das pessoas e fatos econômicos poderia ficar livre do ônus de repartir o custo do Estado a pretexto de implementar direitos, mesmo não tendo sido essa a opção dos demais países do mundo [8].

Também não foi levado em conta que direitos considerados mais essenciais pela própria Constituição, ao tratar do salário mínimo, como moradia, alimentação, saúde, higiene, lazer e transporte, não foram imunizados. A ponderação da carga tributária adequada em relação a todos os direitos pressupõe a aceitação do processo democrático legislativo como caminho para evolução social, pelo qual o brasileiro tem pouco apreço. A matriz das imunidades e da inchação constitucional é a mesma: a falta de confiança em nós mesmos.

O histórico brasileiro de desigualdades gerou um discurso compreensivelmente voltado à defesa das minorias, que facilita muito a criação de exceções tributárias. A consequência foi a criação um problema muito maior: de como proteger a maioria em face dos privilégios das minorias, sejam tributários, penais ou administrativos, pois são eles que aumentam os encargos do restante. Por fim, o próprio sentido de imunidade, proteção contra doenças, agravou as consequências dessa distorção conceitual que afeta o estudo tributário no Brasil.

Como efeito da construção doutrinária justificadora das imunidades, a justiça fiscal é habitualmente associada à não incidência tributária, pois se a ausência do tributo proporciona justiça, a conclusão implícita é que eles são inerentemente injustos.

Esse paradoxo inicial prejudicou o debate sério sobre justiça tributária e enfraqueceu o princípio da capacidade contributiva, que não foi considerado suficiente para proporcionar justiça, já que o constituinte optou por listar as imunidades.

Como não poderia deixar de ser, prevalece em nosso sistema a solução de listar exceções tributárias baseadas no poder de pressão sobre os legisladores, ao invés de valorizar as consequências econômicas a médio e longo prazo e a aferição principiológica da capacidade de contribuir. O efeito é uma carga tributária alta e mal distribuída.

 


[1] É inadequado denominar uma espécie tributária de extrafiscal, o que seria uma contradictio in terminis, pois todos os seus elementos são tributários (criação em lei, fato gerador, base de cálculo, alíquota…). Extrafiscal é apenas a fundamentação da variação da incidência.

[2] Detalhamos o problema em nosso A Inflação Constitucional Brasileira, Estudo sobre a exagerada dimensão dos sistemas tributário e orçamentário na Constituição de 1988. Lisboa: Bubok, 2014.

[4] Detalhamos essa comparação numérica no capítulo 3, da obra citada, A Inflação, demonstrando que nenhuma das explicações tradicionais justifica o exagero textual da Constituição de 1988.

[5] A estabilidade política contemporânea é produto do fim do conflito capitalismo/comunismo, que perdeu o sentido após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Os governos despóticos contemporâneos são pautados em eleições fraudadas, controle da imprensa e das estruturas estatais. A superabrangente Constituição de 1988 não gerou estabilidade alguma. Muito ao contrário, proporcionou grande insegurança jurídica em razão das constantes emendas e da multiplicação jurisprudencial decorrente da inclusão, por vezes detalhada, de uma grande gama de assuntos.

[6] The vanity and presumption of governing beyond the grave, is the most ridiculous and insolent of all tyranies. Man has no property in man; neither has any generation a property in the generations wich are to follow”. PAINE, Thomas, Rights of man, New York: Penguin, 1985, p 41 e 42.

[7] Pablo Lucas Verdu ensina que todo conceito é a decantação formal e a consolidação de determinadas realidades. A ideia de núcleo duro e intocável, no entanto, não decorre de qualquer constatação prática a partir da elaboração das leis, jurisprudência ou da própria aplicação diária dos princípios constitucionais. VERDU, Pablo Lucas. Curso de Derecho Politico, 2ª ed, Madrid: Tecnos, 1977, p. 621.

[8] Além da brasileira, apenas a Constituição das Filipinas traz um único dispositivo sobre imunidades, em seu artigo VI, seção 28, item 3, vedando a tributação sobre instituições e imóveis actually, directly and exclusively used for religious, charitable or educational purposes.

A leitura evidencia o caráter restritivo voltado a evitar ampliações interpretativas, exatamente o oposto do que ocorre no Brasil, onde as imunidades constitucionais são interpretadas ampliativamente como se isso proporcionasse justiça tributária.

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