Direito Civil Atual

Como consequência da Covid-19, há cobertura securitária para lucros cessantes?

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

17 de agosto de 2020, 11h16

Nos Estados Unidos da América, na França e na Inglaterra, em lista meramente exemplificativa, as discussões acerca da cobertura securitária para lucros cessantes como consequência da pandemia provocada pela Covid-19 vêm ganhando ares de dramaticidade.

O Lloyd’s, de Londres, referência mundial em matéria de coberturas de resseguro, estima perdas globais da ordem de US$ 200 bilhões, as mais significativas desde o 11 de setembro.1 O CEO global da Axa, Sr. Thomas Buberl, líder no mercado de seguros na França, estima perdas da ordem de €50 bilhões.2 A Hiscox, seguradora estabelecida na Inglaterra, estima perdas da ordem de US$ 59 milhões.3

Ainda a respeito da França, o agigantamento das perdas vem provocando discussão das mais interessantes, qual seja, a cobertura para pandemias futuras (para além da atual, provocada pela Covid-19), deverá ser concebida por meio de iniciativas público-privadas, isto é, seguros que deverão ser subscritos em parte pelo mercado segurador privado, em parte pelo Estado, a revelar instituto até então desconhecido pelo público brasileiro.4

Antes de comentar o status do tema em referência perante o ordenamento jurídico brasileiro, convém observar, sob a perspectiva jurídica, quais são as principais discussões havidas nos países mencionados.

Iniciando pelos Estados Unidos da América, ganhou relevância o caso Gregory Packaging, Inc. contra Travelers Property Casualty Company of America.5 A autora, uma indústria estabelecida em Nova Jérsei, dedicada à fabricação de sucos em caixa, contratou uma apólice compreensiva com a seguradora Travelers. Naquilo que diretamente importa às presentes notas, a cobertura para lucros cessantes prevista na apólice requeria, como condição, que houvesse danos físicos à propriedade tangível do segurado.

Em julho de 2010, por ocasião do início das atividades em uma de suas plantas, ocorrera vazamento de amônia do sistema de refrigeração de uma máquina, causando queimaduras a um funcionário que se encontrava próximo ao local. Em virtude da toxicidade da amônia, as instalações foram interditadas para que pudessem ser limpas, gerando danos materiais ao segurado.

A controvérsia posta em juízo decorre das versões das partes para o fato mencionado. O segurado ponderou que a explosão teria prejudicado o funcionamento da fábrica e, assim, ocasionado danos físicos e prejuízos à sua operação; a seguradora, por sua vez, contestou o argumento, frisando que ocorrência de danos físicos requer alterações visuais na propriedade tangível (material) do segurado, o que não ocorreu no caso concreto.

Em sua fundamentação, a Corte de Nova Jérsei respaldou-se em diversas decisões relacionadas à definição do que sejam os danos físicos à propriedade, apresentando construções do tipo “[…] in ordinary parlance and widely accepted definition, physical damage to property means ‘a distinct, demonstrable, and physical alteration’ of its structure.”6 Interpretando esta afirmação, a decisão vai além para formular que: “While structural alteration provides the most obvious sign of physical damage, both New Jersey courts and the Third Circuit have also found that property can sustain physical loss or damage without experiencing structural alteration”.7

Em síntese, a Corte norte-americana propôs uma releitura do conceito de dano físico e condenou a seguradora, gerando um precedente que vem sendo empregado em discussões que têm como pano de fundo os lucros cessantes provocados pela Covid-19.

Na França discussão de moldura fática similar também ganhou notoriedade. A Maison Rostand, controladora do restaurante Bistrôt d’à côté Flaubert, motivada pela paralização de suas atividades a reboque de decisão do governo parisiense pela interrupção de quaisquer atividades consideradas não essenciais, propôs ação judicial contra a Axa Seguros, requerendo lucros cessantes. Decisão de primeiro grau acolheu o seu pleito, rejeitando os argumentos da defesa, no sentido de que (i) a pandemia não poderia ser objeto de um contrato de seguro privado, considerando a magnitude das perdas em questão; (ii) a decisão governamental pela interrupção de todas as atividades consideradas não essenciais não teria implicado a paralização dos seus negócios, uma vez que em substituição ao atendimento presencial poderia ser adotado o sistema de delivery.8

Na Inglaterra, também com enorme relevância, em 20.7.2020 teve início julgamento em demanda proposta pela Financial Conduct Authority – FCA contra algumas dentre as principais seguradoras em exercício naquele país, que tem a finalidade de definir pela existência (ou não) de cobertura para lucros cessantes no contexto da Covid-19.9 O caso é complexo e compreende centenas de autores, em julgamento que deve alongar-se por vários dias.

A problemática estrangeira, com efeito, pode produzir efeitos colaterais no Brasil. Cumpre ressaltar, porém, que a maneira comumente aqui empregada pelas apólices empresariais para oferecer cobertura para lucros cessantes requer, como condição, que primeiramente ocorram danos físicos à propriedade tangível do segurado. É dizer que, e.g., se não houver um incêndio ou a quebra de um maquinário, não haverá que se falar na cobertura para lucros cessantes.

Esta estrutura empregada à cobertura para lucros cessantes, de maneira condicional, funcionou até a presente data sem sobressaltos, simplesmente porque, também até aqui, jamais houve riscos com os contornos próprios da Covid-19. Agora, o “inimigo” é invisível, não tem cheiro e tampouco pode ser tocado, algo completamente diferente do que se observou em apólices de property até hoje.

É preciso manter o olhar atento àquilo que se passa no exterior, mas, sem açodamento, convém prestigiar as cláusulas contratuais que, se bem redigidas, delimitaram corretamente os riscos cobertos e aqueles que foram excluídos dos contratos.10

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 Fonte: https://www.bbc.com/news/business-52659313, visitado em 23.7.2020.

2 Fonte. https://eco.sapo.pt/2020/04/06/ceo-da-axa-sugere-seguro-publico-privado-para-pandemias/, visitado em 22.7.2020.

3 Fonte: https://www.insurancejournal.com/news/international/2020/07/20/576166.htm, visitado em 22.7.2020.

4 Fonte: https://www.bilan.ch/entreprises/le-patron-de-baloise-plaide-pour-le-public-prive-face-aux-pandemies, visitado em 23.7.2020.

5 Conforme, Civ. No. 2:12-cv-04418 (WHW) (CLW).

6 Cf. Port Authority of N.Y. and N.J. v. Affiliated FM Ins. Co., 311 F.3d 226, 235 (3d Cir. 2002).

7 Ibid. p. 9.

8 Como consequência desta decisão de 1º grau, a seguradora francesa iniciou a estabulação de vários acordos com demandantes em posição similar à do restaurante. (Fonte: BIGOT, Rodolphe. Le caractère inassurable du risque pandémique: une « allégation fantaisiste » d’AXA. Dalloz Actualité, 28 de maio de 2020. https://www.dalloz-actualite.fr/flash/caractere-inassurable-du-risque-pandemique-une-allegation-fantaisiste-d-axa#.Xuuzb_JS_sE, acesso em 18 de junho de 2020). Para uma análise minuciosa do tema à luz do direito francês, recomenda-se: SABRINNI, Fernanda. PÓVOA, Marcos Fabrício. Os impactos da pandemia de Covid-19 sobre o seguro de lucros cessantes no direito francês. In Temas de Direito do Seguro. Coord. GOLDBERG, Ilan. JUNQUEIRA, Thiago. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. No prelo.

9 Fonte. https://www.insurancejournal.com/news/international/2020/07/20/576166.htm. Acesso em 22.7.2020.

10 Para uma análise mais aprofundada do tema debatido nestas notas seja permitido remeter ao nosso: GOLDBERG, Ilan. Covid-19, o conceito de ‘dano físico’ e a cobertura securitária para lucros cessantes. In Impactos jurídicos e econômicos da Covid-19. Coord. CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 271-292.

Autores

  • Brave

    é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), pós-Graduado em Direito Empresarial LLM pelo IBMEC, professor convidado da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e da Escola Nacional de Seguros (ENS-Funenseg), membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC), e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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