Opinião

Os efeitos da revelia na arbitragem

Autor

  • Daniel Gustavo Magnane Sanfins

    é sócio do escritório Duarte Garcia Serra Netto e Terra – Sociedade de Advogados pós-graduado em Processo Civil pela Escola Paulista da Magistratura e em Direito Digital pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

17 de agosto de 2020, 19h11

A revelia — a situação em que o requerido deixa de apresentar defesa e/ou de participar do processo — e seus efeitos na arbitragem não são temas tratados comumente, o que, muito provavelmente, decorre de sua rara ocorrência, até porque, sendo a resolução de litígios pela via alternativa uma opção livre das partes, em tese, não há razão para que deixem de atuar na defesa de seus interesses, na hipótese da existência de qualquer controvérsia decorrente do contrato que alberga a cláusula compromissória.

O que se constata, na experiência prática, é que a parte que se nega a participar da arbitragem — pela qual optou livre e espontaneamente —, muito frequentemente, utiliza de tal expediente como uma tentativa de deslegitimar o procedimento arbitral para, ao final, atacar a sentença prolatada, com a arguição de nulidade que, em absoluto, não decorre de sua revelia. 

Sem dúvida, trata-se de uma estratégia sem qualquer fundamento legal e, além disso, de todo reprovável, coalhada de má-fé e absolutamente contrária aos princípios que, sobretudo, orientam o procedimento arbitral. 

A Lei nº 9.307/96 aborda a revelia em dois dispositivos. No parágrafo 6º do artigo 7º, para regular, no caso de cláusula compromissória aberta, a formação do compromisso arbitral, e no parágrafo 3º do artigo 22, para asseverar que a revelia da parte não impede a prolação da sentença arbitral. 

Em síntese, nos termos do parágrafo 6º do artigo 7º, dispõe a lei de regência, tendo como pano de fundo a cláusula de arbitragem vazia (ou em branco), que "não comparecendo o réu à audiência, caberá ao juiz, ouvido o autor, estatuir a respeito do conteúdo do compromisso, nomeando árbitro único", prestando-se a respectiva sentença como o compromisso arbitral (parágrafo 7º) que balizará o futuro procedimento arbitral. 

Não há dúvida de que, a despeito da revelia da parte na ação judicial de suprimento de vontade, poderá ela participar normalmente da arbitragem, com a plenitude das prerrogativas dos litigantes. O prejuízo do revel, no entanto — por não se ter desincumbido de seu ônus de integrar o procedimento para constituição do compromisso arbitral —, já se dá no ponto de partida, haja vista que o citado compromisso retratará exclusivamente a visão do adversário, sendo por ele sugeridos a estipulação das regras procedimentais e os pontos controvertidos que serão objeto de deliberação pelos árbitros, impedindo, exemplificativamente, quando já instalada a arbitragem, a dedução de pedidos pela parte ausente. 

O parágrafo 3º do artigo 22, por sua vez, é direto ao apontar que "a revelia da parte não impedirá que seja proferida a sentença arbitral", sendo essa expressa disposição legal o suficiente para afastar chicanas como aquela acima descrita. 

Como assevera Carlos Alberto Carmona, "a situação de total alheamento de uma das partes (a começar pela falta de colaboração na constituição do tribunal arbitral), como a falta de participação ativa de qualquer um dos atos do processo, não terá a menor influência quanto aos poderes dos árbitros, e a atitude negativa da parte não será um fator impeditivo da prolação da sentença" (Arbitragem e Processo – um Comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª ed. São Paulo:  Atlas, 2009, p. 331). 

Nesse mesmo sentido, aponta Joel Figueira Jr. que "se existe cláusula compromissória cheia e a parte não comparecer para apresentar sua defesa perante o tribunal arbitral já instalado, essa parte sofrerá efeitos similares aos da revelia do processo judicial. A pressão para que as partes participem da arbitragem é negativa, por se impedir que elas recorram ao Judiciário e por se criar uma situação de desvantagem no processo arbitral para a parte que não comparecer. Como regra tradicional, não há obrigação da parte apresentar a sua defesa, há um ônus; a não apresentação da defesa traz uma situação de desvantagem processual" (Arbitragem. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, item 6 do capítulo 3). 

Aliás, sob a perspectiva do prestígio à autonomia da vontade das partes, a participação na arbitragem não pode mesmo ser obrigatória, sendo possível que o procedimento arbitral seja instalado e tramite regularmente com a presença de apenas uma das partes, naturalmente com a assunção pelo ausente dos ônus decorrentes de sua inércia. 

Não se pode deixar de anotar, além disso, que a negativa da parte em integrar o procedimento arbitral em nenhuma conjectura poderia implicar na inviabilidade de sua instauração, uma vez que, se da inércia, deliberada ou não, decorresse o impedimento da formação do painel arbitral, a outra parte, salvo se renunciasse ao direito de solucionar a controvérsia no ambiente da arbitragem, restaria desprovida de meios para a resolução do litígio, já que a existência da cláusula compromissória impediria o acesso ao Poder Judiciário. 

O procedimento arbitral, nesse contexto, será regido pelas normas fixadas no cláusula arbitral cheia, no compromisso arbitral e no regulamento da Câmara de Arbitragem, que será especialmente relevante para disciplinar o tratamento a ser dispensado ao revel, na medida em que não há, na Lei de Arbitragem, regramento dos efeitos da revelia, ao contrário do que ocorre na jurisdição estatal, em que o Código de Processo Civil trata, ilustrativamente, da presunção de veracidade das alegações do autor (artigo 344) e da fluência dos prazos mesmo se o revel não constituir advogado (artigo 346). 

Esses princípios processuais, como, em regra, os demais previstos no Código de Processo Civil, não se aplicam no ambiente arbitral, não se operando a presunção de veracidade das alegações da parte adversa, tendo total liberdade os árbitros para perquirir a verdade real, com a produção de todas as provas que entenderem pertinentes, não se encontrando, de forma alguma impedidos de julgar, eventualmente, contra os interesses daquele que atuou ativamente no procedimento arbitral. 

A revelia somente poderia importar no impositivo reconhecimento da veracidade dos fatos apresentados pela parte contrária se, na cláusula arbitral cheia ou no compromisso arbitral, houvesse a expressa previsão desse efeito, já que se trataria de uma emanação da autonomia de vontade, fundamento principal da arbitragem. 

É fundamental registrar, por outro lado, que a validade do procedimento arbitral desenvolvido sem a presença de uma das partes está condicionada à estrita observância do contraditório, mediante a cientificação da parte revel acerca dos atos praticados, inclusive porque, a despeito de não ter integrado o procedimento desde o início, pode passar a nele atuar posteriormente — ainda com as limitações decorrentes de sua inação inicial —, sendo-lhe franqueada, ilustrativamente, a produção de provas. Haveria insanável nulidade no caso de supressão ou limitação do contraditório. 

Em suma. Uma vez existente cláusula compromissória, seja cheia ou vazia, que determine a instauração da arbitragem para a resolução de litígios, é irrelevante que a parte integre o procedimento arbitral para que ele se desenvolva regularmente, até a prolação da respectiva e válida sentença. A recalcitrância da parte, qualquer que seja a motivação, não tem o condão de impedir que a controvérsia seja solvida, existindo, para essa hipótese, instrumentos conferidos pela própria Lei de Arbitragem para que o tribunal arbitral seja constituído e possa, sempre com a garantia do contraditório, solucionar a disputa.

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