Opinião

Reatância psicológica no tribunal do júri

Autor

  • Andrew Fernandes Farias

    é advogado criminalista. Sócio fundador do Andrew Advocacia. Graduado em direito especialista em ciências penais mestre em ciências aeroespaciais doutorando em direito constitucional.

17 de agosto de 2020, 15h27

Como é cediço, no Brasil, por determinação constitucional, os crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto etc) são submetidos à julgamento perante o tribunal do júri, o famigerado tribunal popular.

Porém, seja de competência ou não do tribunal do júri, todo e qualquer processo vive sob o signo da incerteza. Desse modo, em qualquer processo o culpado pode ser absolvido e o inocente pode ser condenado.

A prática forense revela que no tribunal do júri esse risco se intensifica, de modo que, com o objetivo de atenuar esse risco, no rito do júri o legislador previu duas fases (iudicium accusationis e iudicium causae).

A primeira fase (sumário da culpa) tem por finalidade exercer um filtro técnico-jurídico para que apenas sejam encaminhados para julgamento pelo tribunal popular os casos que realmente versarem sobre crime doloso contra a vida, e nos quais exista materialidade e indícios suficientes de autoria.

Destarte, uma vez que, na segunda fase do rito do júri, o réu é julgado pelos jurados que compõem o conselho de sentença, é fundamental que a imparcialidade destes seja preservada e não contaminada.

Assim, com o objetivo de preservar a imparcialidade dos jurados, o Código de Processo Penal, em seu artigo 478, I [1], determinou com clareza meridiana que durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referência à decisão de pronúncia como argumento de autoridade para beneficiar ou prejudicar o réu.

A decisão de pronúncia [2] é a decisão judicial que encerra a primeira fase do rito do júri, revelando-se como uma espécie de juízo de admissibilidade. Nessa oportunidade, o juiz togado não julgará se o réu deve ser condenado ou absolvido, mas apenas verificará se o caso versa sobre um crime doloso contra a vida e se estão presentes a materialidade do fato e existência de indícios suficientes de autoria.

Ao chegar à segunda fase, ganha destaque a figura do jurado, juiz leigo que decidirá, entre outras questões, se o réu deve ser condenado ou absolvido. Malgrado ser o titular exclusivo do julgamento sobre mérito do caso, o jurado possui profunda reverência ao juiz togado, tendo nele um porto seguro, digno de confiança, e autoridade técnica, que deve ser obedecido e seguido.

Assim, foi muito feliz o legislador ao proibir que as partes durante os debates façam uso da decisão de pronúncia como argumento de autoridade, pois, se assim procedessem, estariam furtando para si a confiança e autoridade que os jurados depositam no juiz togado, colocando-as a serviço dos seus argumentos, corolário lógico, os jurados estariam com sua imparcialidade comprometida.

Em síntese, acreditando que estariam acompanhando uma decisão judicial, os jurados em verdade estariam acolhendo a tese de uma das partes.

Ocorre que, na prática forense, não são raras as ocasiões em que durante os debates no tribunal do júri a acusação faz uso da decisão de pronúncia como argumento de autoridade para prejudicar o réu.

Contudo, para decidir se a sessão plenária deve ser anulada, primeiramente, deve ser verificado se no caso ocorreu prejuízo (ne pas de nullité sans grief). Porém, não raras vezes, a acusação faz referência à decisão de pronúncia com o objetivo de prejudicar o réu e, por fim, o réu é condenado. Assim, é inequívoca a presença de prejuízo.

Todavia, atualmente, buscando preservar a sessão de julgamento, os juízes togados, do alto de sua sensibilidade e erudição, ao constatarem que a acusação fez referência a decisão de pronúncia para prejudicar o réu, intervêm e, com o objetivo de atenuar a situação de ilegalidade, advertem que os jurados não devem levar em consideração a referida decisão judicial.

Diante desse cenário poder-se-ia pensar: uma vez que o juiz presidente advertiu os jurados para não serem influenciados pelas decisões dos magistrados togados, a ilegalidade foi purgada, inexistindo, assim nulidade.

Destarte, questiona-se: a conduta do juiz presidente ao advertir os jurados no sentido de que não deveriam considerar as decisões dos magistrados togados atenuou ou agravou a ilegalidade?

Em síntese: a conduta do juiz presidente melhorou ou piorou a situação?

Segundo revelam vários estudos científicos, essa postura do magistrado togado acarreta o agravamento e piora da situação, ou seja, após a advertência do juiz os jurados, ao invés de desconsiderarem a decisão de pronúncia, passam a ter curiosidade sobre ela e a considerar ainda mais os seus fundamentos, com o sentido emprestado pelo acusador.

Esclarece Cialdini [3] que, segundo a teoria da reatância psicológica, "sempre que a livre escolha é limitada, ou ameaçada, a necessidade de conservar nossas liberdades faz com que a queiramos… bem mais do que antes… Casais que sofrem interferência dos pais reagem aumentando a firmeza de seu relacionamento e sua paixão? De acordo com uma pesquisa realizada com 140 casais adolescentes do Colorado, isso é exatamente o que acontece".

Em relação à conteúdos limitados explica Cialdini [4] que "quase sempre, nossa reação ao material proibido é mostrar uma vontade maior de receber aquela informação e nos tornar ainda mais favoráveis a ele do que antes da proibição" (Ashmore, Ramchandra e Jones, 1971; Wicklund e Brehm, 1974; Worchel e Arnold, 1973; Worchel, 1992) (p. 245).

Ressalte-se que foram realizadas pesquisas especificamente em relação à aplicação da teoria da reatância psicológica no tribunal do júri [5], oportunidade em que os estudos revelaram que quando o juiz presidente aconselha os jurados a desconsideraram um dado, tal conduta surte um efeito contrário, ou seja, os jurados passam a considerar ainda mais aquela informação [6].

Nessa esteira de intelecção, se durante os debates a acusação fizer uso da decisão de pronúncia (ou silêncio do acuado; uso de algemas) como argumento de autoridade e a parte contrária e o juiz presidente não se manifestarem, a técnica persuasória terá surtido efeito. Por outro lado, se ao fazer uso da decisão de pronúncia como argumento de autoridade, a parte contrária se manifestar e o juiz togado advertir os jurados a não considerarem aquela questão, a consequência será de que a técnica persuasória surtiu ainda mais efeito.

A não anulação da sessão de julgamento em que a acusação faz referência à decisão de pronúncia como argumento de autoridade transforma o Código de Processo Penal (artigo 478, I) e a Constituição Federal (princípio da plenitude de defesa) em meros papeis manchados de tinta, sem qualquer densidade normativa (para ficar com a expressão utilizada pelo ministro Eros Grau) [7].

Por fim, sublinhe-se que o efeito pedagógico é devastador, pois, haja vista que "não dá em nada", o entendimento jurisprudencial poderá converter a técnica ilegal da utilização da decisão de pronúncia como argumento de autoridade em uma sofisticada técnica persuasória acolhida na prática. Com a devida vênia, o processo penal não é um vale tudo.

 


[1] "Artigo 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:

I– à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

II– ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo".

[2] "Artigo 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação".

[3] CIALDINI, Robert. As armas da persuasão. P. 239 e 242.

[4] CIALDINI, Robert. As armas da persuasão. P. 245.

[5] CIALDINI, Robert. As armas da persuasão. P. 247.

[6] "Muitas vezes num tribunal do júri, o juiz que preside a seção considera uma prova ou um depoimento inadmissível, podendo então aconselhar os jurados a desconsiderarem aquele dado. Dessa perspectiva, o juiz pode ser visto como um censor. A apresentação da informação ao corpo de jurados não é proibida – é tarde demais para isso. O uso da informação é que é proibido. Qual é a eficácia desse tipo de instrução de um juiz? Será possível que, para membros do corpo de jurados que se acham no direito de avaliar todas as informações disponíveis, as declarações de inadmissibilidade na verdade causem uma reatância psicológica, levando os jurados a considerar mais aquele dado? Com frequência, é exatamente isso que ocorre (Lieberman e Arndt, 2000)".

[7] STF, HC 95.009: "Juízes que se pretendem versados na teoria e prática do combate ao crime, juízes que arrogam a si a responsabilidade por operações policiais transformam a Constituição em um punhado de palavras bonitas rabiscadas em um pedaço de papel sem utilidade prática, como diz FERRAJOLI. Ou em papel pintado com tinta…".

Autores

  • Brave

    é sócio-proprietário do escritório Bayma & Fernandes Advogados Associados, advogado, especialista em Ciências Penais e mestre em Ciências Aeroespaciais pela Universidade da Força Aérea (Unifa), presidente da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Distrito Federal (OAB-DF) e membro do Instituto dos Advogados do Distrito Federal (IADF).

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