Opinião

O espírito da Lei Maria da Penha: um pouco de sua história

Autores

  • Mauricio Januzzi Santos

    é professor no curso de graduação nas matérias de Direito Processual Penal e Prática Penal na PUC-SP advogado mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP) e Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.

  • Giovanna Cardoso Romano

    é presidente da Comissão da Jovem Advocacia OAB Butantã e advogada orientadora do núcleo penal do Escritório Experimental da OAB Butantã – Para Mulher.

16 de agosto de 2020, 6h03

A Lei 11.340/2006, promulgada no dia 7 de agosto de 2006, ficou popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, muito embora nenhuma parte de seu texto faça menção a quem foi essa mulher cujo nome batizou a lei.

Pois bem, em 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi atingida — enquanto dormia — por um tiro de espingarda desferido pelo seu então marido, vindo da Colômbia, naturalizado brasileiro e economista. Em decorrência da gravidade da lesão produzida, que atingiu duas vértebras de sua coluna, suportou consequências que a deixaram paraplégica.

Após esse episódio, passada menos de uma semana da primeira tentativa de homicídio, Maria da Penha retornou à sua casa, onde sofreu novo atentado contra a sua vida — dessa vez, enquanto tomava banho, recebeu uma descarga elétrica do seu agressor. Nesse momento, ela compreendeu por que seu marido estava utilizando o banheiro das filhas para banhar-se.

Em sua defesa, o agressor negava a autoria da primeira tentativa, pretendendo simular a ocorrência de um assalto. No que tange à segunda tentativa de homicídio, o agressor alegou em sua defesa que a descarga elétrica recebida por Maria da Penha "não seria capaz de produzir nenhuma lesão".

Em que pese a tentativa de ocultar a verdade, o réu foi denunciado em 28 de setembro de 1984. Finalizada a primeira fase do sistema bifásico do tribunal do júri, o agressor foi pronunciado em 31 de outubro de 1986, tendo sido condenado em 4 de maio de 1991.

A defesa recorreu da condenação alegando nulidade decorrente de falha na elaboração dos quesitos. O recurso foi acolhido e provido, fazendo com que o réu fosse submetido a novo julgamento, que ocorreu em 15 de março de 1996, quando restou novamente condenado à pena de dez anos e seis meses de reclusão.

Todavia, devido a sucessivos recursos e apelos apresentados pela defesa, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória demorou para ser alcançado, fazendo com que a prisão do agressor ocorresse apenas em setembro de 2002, isto é, após passados mais de 19 anos do fato.

Em virtude da lentidão processual e da gravidade dos fatos praticados, que configuram, por óbvio, grave violação aos direitos humanos, Maria da Penha lutou incessantemente para que seus direitos fossem respeitados. Apresentando, juntamente com algumas associações, petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, reportando todos os fatos ocorridos e a lentidão da Justiça brasileira no desfecho de caso tão grave envolvendo violência de gênero. Atente-se que à época em que foi protocolada esta petição o deslinde processual no território nacional ainda não existia.

Diante do exposto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou um relatório elencando as falhas cometidas pelo Estado brasileiro na apuração e julgamento dos fatos, uma vez que o Brasil, na qualidade de parte de tratados e convenções internacionais como o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos) e a Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), comprometeu-se a reprimir e prevenir esse tipo de violência baseada no gênero [1].

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, neste Relatório número 54/01 ressaltou:

"A ineficácia judicial, a impunidade e a impossibilidade de a vítima obter uma reparação mostra a falta de cumprimento do compromisso (pelo Brasil) de reagir adequadamente ante a violência doméstica".

"A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra as mulheres" [2].

É válido lembrar que, à época da emissão do relatório, em 2001, o agressor ainda não cumpria a pena privativa de liberdade.

A Comissão Interamericana tentou, em distintas oportunidades, contato com o Estado brasileiro, encaminhando a petição que relatava as violações à direitos humanos, bem como o próprio relatório por ela elaborado, mas — espantosamente — não obteve respostas, muito embora o Brasil tenha, inclusive, reconhecido a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Ante gigantesca inércia, foi aplicado o artigo 39 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, "com o propósito de que se presumisse serem verdadeiros os fatos relatados na denúncia, uma vez que havia decorrido mais de 250 dias desde a transmissão da petição ao Brasil e este não havia apresentado observações sobre o caso".

Mesmo diante da aplicação do dispositivo acima transcrito, nenhuma resposta foi emitida pelo governo brasileiro, tendo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aplicado como consequência de tamanha omissão o disposto no artigo 51.3 do Pacto de São José da Costa Rica, tornando público o Relatório 01/54 [3] para que toda a comunidade internacional soubesse do descaso do Brasil perante esse tipo de violência.

Desse modo, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Pena) foi uma reação demorada, mas essencial no combate à violência de gênero. Violência que é um problema político, cultural e social que, cada vez mais, tem que alcançar espaços públicos de discussão. O espaço e o debate de temas dessa natureza são importantes, uma vez que só é possível reclamar e exigir direitos que são conhecidos e positivados em nosso sistema jurídico.

Agradecemos à senhora Maria da Penha e a todas as mulheres que diante da violência sofrida não se calaram, pelo contrário, encontraram na exposição dos problemas "tidos como individuais" um meio de retirar do manto da invisibilidade da violência comum — a violência de gênero, auxiliando no mapeamento e na elaboração de políticas públicas no combate à essa verdadeira epidemia que assola o mundo e, em especial, a sociedade brasileira.

 


[1] Feminicídio. Uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. MELLO, Adriana Ramos de Mello.

[2] Violência Doméstica. Lei Maria da Penha – 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista.

[3] Violência Doméstica. Lei Maria da Penha – 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista.

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