Embargos culturais

A morte trágica de Euclides da Cunha e a voz feminina que não se escutou

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

16 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
A morte de Euclides da Cunha é um ato de uma tragédia que nos assombra. Trata-se de um drama que comprova as adversidades da vida. Difícil julgar. Os autos do processo que sobreveio a morte do escritor e as notícias colhidas na imprensa ao tempo dos fatos confirmam essa dificuldade de se alcançar uma opinião. Será necessário? Difícil definir quem tem razão, ou mesmo se razão há alguém. Tudo pode parecer tão sem razão. Procuro sintetizar os protagonistas, os fatos, os relatos, o julgamento e a herança sinistra dessa desgraça. É uma contribuição para que reflitamos no assunto, porque um tema do assombro da existência, que todos compartilhamos. É preciso estudarmos o Brasil e aqueles que pensaram o Brasil, no que escreveram, pensaram, agiram, viveram, morreram.

Trato de um crime passional. O morto, Euclides da Cunha, era proeminente escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, viajante experimentado, narrador da campanha de Canudos, estilista primoroso, recém empossado professor de lógica no Colégio D. Pedro II, amostra de homem com a honra despedaçada, no contexto e nos padrões morais do início do século XX. Ana (Dona Saninha), sua esposa, filha do General Sólon Ribeiro (ativo participante da proclamação da república), mãe dedicada (é o relato dos filhos), hostilizada por uma sociedade que (insisto, pelos padrões do tempo) não admitia o papel de adúltera que lhe imputavam. A exemplo de Capitu (personagem literária) Ana (personagem real) não teve um lugar de fala; não quiserem lhe ouvir. Ana levou uma culpa que provavelmente não teve, ou foi instrumento de um destino em relação ao qual não tinha controle.

Dilermando de Assis, o vilão (de acordo com os relatos tendenciosos), militar dedicado, passou a vida a justificar-se da acusação de ter “assassinado um Deus”, ainda que absolvido pelo Tribunal do Júri, o que se deve também a impecável defesa de Evaristo de Moraes, o vedete dos tribunais da época. Evaristo formou-se em direito depois de 20 anos de prática forense. É o exemplo do rábula, no que essa expressão não tem de pejorativo. Evaristo também advogou para Gilberto Amado (que era professor de Direito Penal) acusado de homicídio, disputando no júri (nesse caso) com o promotor Galdino Siqueira (exímio penalista). Há outros personagens, também trágicos, como o filho de Euclides (mais tarde também morto por Dilermando) e o irmão de Dilermando (Dinorah, ferido por Euclides, que ficou paraplégico, e que se suicidou mais tarde).

Ana teria conhecido Dilermando em São Paulo, quando levava seus filhos para os cuidados de um tutor. Há versões que, depois da morte do pai, Dilermando e seu irmão foram recebidos na casa de Euclides. Judith Ribeiro de Assis, em livro que foi levado à televisão, em forma de minissérie, dá conta da história de um trágico amor. Trata-se da série “Desejo”, de 1990, protagonizada por Tarcísio Meira (Euclides), Vera Fischer (Ana) e Guilherme Fontes (Dilermando). Judith afirmou que Ana e Dilermando se apaixonaram perdidamente. Ana, no contexto desse relato, vivia com dificuldade com Euclides, que seria uma pessoa difícil, irascível e de ímpetos incontroláveis. Por trás do escritor genial havia um homem genioso.

Em 1906, voltando da Amazônia, onde esteve em missão por 10 meses, Euclides encontrou Ana com gravidez bem avançada. Nasceu uma criança, que faleceu de inanição, com cerca de uma semana de vida. Foi registrado por Euclides como Mauro, mas Ana sempre se referiu à criança como Mário. Ao que consta, Ana teria acusado Euclides de provocar esse desfecho. Os relatos são muito contraditórios. Ana e Dilermando continuaram trocando cartas, voltaram a se encontrar, e uma segunda criança foi gerada. Foi batizada como filho de Euclides e Ana, com o nome de Luiz. Euclides reconhecia que o menino não era seu filho biológico, e a ele se referia como “um milharal no cafezal”.

Em agosto de 1909, depois de não encontrar Ana (que teria ido para a casa de sua mãe, viúva de Sólon Ribeiro) Euclides vestiu uma roupa velha, há muito tempo abandonada, conseguiu um revólver e foi até a casa de Dilermando, na Estrada Real de Santa Cruz, número 214, onde o tiroteio ocorreu. Euclides atingiu Dilermando e seu irmão. Dilermando revidou e Euclides caiu morto. Dilermando foi preso preventivamente e depois julgado pelo tribunal do júri, que o absolveu com fundamento na tese da legitima defesa. A sentença foi confirmada.

Alguns anos depois, em 1916, Dilermando também duelou com Euclides da Cunha Filho, que caiu morto em um cartório. Mais uma vez defendido por Evaristo de Moraes, Dilermando foi absolvido. O Superior Tribunal Militar confirmou a sentença da Auditoria de Guerra. Mesmo absolvido, Dilermando conviveu com insinuações e acusações. Em 1922, quando da exposição do centenário da independência, foi surpreendido com exposição de sua arma (tida como a arma do assassino de Euclides) ao lado do punhal que Manso de Paiva usou para assassinar o político gaúcho Pinheiro Machado. Requereu a devolução do revólver e protestou pelo fato de ser lembrado como assassino, o que é situação distinta de quem mata em legítima defesa.

Os autos do processo do caso de Euclides foram editados por Walnice Nogueira Galvão, maior autoridade em Euclides da Cunha que há no Brasil. Nas peças conhece-se, por exemplo, a tese da promotoria. José Saboia Viriato de Medeiros atuou como promotor no caso. Lê-se na conclusão da denúncia que se colhia com segurança “das peças do inquérito que o denunciado mantinha relações adulterinas com a esposa do conhecido escritor Dr. Euclides da Cunha”. Dilermando teria atingido Euclides quando o escritor já estava ferido, fora de perigo. Dilermando teria agido num “movimento de cólera e vingança, que bem denotam as palavras ‘espera cachorro’ ouvidas por uma das informantes”. Teria havido, por parte de Dilermando, excesso na reação, o que evidenciaria, na tese da promotoria, ação vingativa e reprovável. Segundo o promotor, “o perigo estava passado, o mal já consumado, os ferimentos, que impossibilitavam a continuação da agressão, visíveis e notórios, o agressor em retirada: o ato praticado em tais condições contra esse homem não foi de defesa, foi de exasperação e vingança”.

Foram exibidas cartas que Ana encaminhou ao marido. Afirmava que se julgava indigna, “por havê-lo traído espiritualmente na ausência dele, não sabendo se pelo bem-estar que tinha livre dos maus-tratos e pela falta de carinho com que ele a tratava”, achando que uma separação deveria ser prolongada, “já que ele era um homem de grande talento e estudos científicos”. Reconhecia a incompatibilidade de gênios. Ana sofreu muito; “procurou abortar ou mesmo morrer, tomando remédios para esse fim”.

Evaristo de Moraes insistia na tese da legítima defesa, a par de invocar que Dilermando agiu em estado de necessidade. No primeiro júri os 12 jurados eram homens (circunstância que a prática nos confirme como importante e até preponderante nesses casos). Houve empate: 6 votaram pela absolvição, e os outros 6 votaram pela condenação. Aplicou-se a velha máxima de direito, que decide pelo réu, em caso de dúvida (in dubio pro réu). Um dos jurados votou contraditoriamente, o que levou à composição de um novo júri. O novo júri contava com7 membros, para que não houvesse empate. Por 5 a 2 Dilermando foi absolvido. Foi posto em liberdade e retomou sua carreira no Exército.

Os jornais incensavam Euclides da Cunha, em campanha aberta contra Dilermando. Não se ouviu Ana de Assis. Em agosto de 1909, o Jornal do Comércio registrava que se vivia o espanto horrível causado pela notícia do absurdo e trágico assassinato do prezado e eminente colaborador Euclides da Cunha. Referia-se a um telegrama expedido de Cascadura as 12 horas e 30 da tarde do dia anterior que dizia laconicamente: “Euclides da Cunha, assassinado, Estrada Real, 214 (Assinado) Sólon da Cunha)”. E prosseguia o jornal: “Assassinado por quê? Como? Por quem? Parecia inverossímil a notícia. Ainda nos últimos dias da semana o ilustre escritor aqui estivera, em companhia de seu jovem filho, Euclides, irmão de Sólon da Cunha, signatário daquele despacho, uma inteligência e viva criança (…)”.

Segundo o Jornal do Comércio, Euclides era um “homem de uma integridade moral a toda prova, experimentado em provações de todo gênero, com uma alta compreensão de seus deveres cívicos, pelejador como poucos, intrépido até a temeridade” Afirmava-se que “Euclides da Cunha conservara da matemática a disciplina mental formidável, da poesia a ideia de beleza e o gosto da perfeição, da filosofia o sentimento de justiça, a vibração contínua e generosa, alguma coisa acima das misérias da terra”. Lamentava-se que tudo isto fora cortado por uma morte brutal, por um golpe da tragédia inenarrável”.

O Jornal do Comércio informava que Dilermando e seu irmão, depois da perda do pai, “encontraram sempre da parte do Dr. Euclides da Cunha e da sua esposa, D. Ana Sólon da Cunha a proteção e carinho que a mortes de seus pais lhes tinha roubado”. E ainda, “foi justamente este sentimento de amizade maternal que animava a Sra. D. Ana tão paralelamente ao que nutria o seu esposo, que, em um dado momento, malevolamente desvirtuado, cruelmente envenenado, deu causa ao tremendo drama e que caiu sem vida atravessado por uma bala, o laureado homem de letras que, pode-se dizer, sem rebuços, era o maior estilista de sua geração”. A imprensa seguia esse diapasão e condenava Ana.

No mesmo Jornal do Comércio lê-se que Euclides passou a suspeitar da esposa, “a fidelíssima companheira de 17 anos de uma existência cheia de lutas” que “ já não era mais a mesma; a amizade que dedicava ao aspirante Dilermando não podia ter este nome, porque era cousa muito diversa, era amor; cheio de culpa, cheio de crimes”. Segundo o jornal, “os espíritos malignos continuavam a sua obra, advinha num turbilhão de circunstâncias evidentemente desnorteadoras”.

Em 10 de agosto de 1909 lia-se no Jornal do Comércio que aquele crime não poderia ficar sem solução; o jornal clamava que tudo deveria ser esclarecido, especialmente porque “Euclides da Cunha era um homem que por assim dizer vivia permanentemente raciocinando. Nos seus trabalhos de história e geografia distinguia-se sobretudo pelo seu espírito de minúcia. Parece absurdo que um professor de lógica, como ele o era, decidisse de seu destino sem maior exame e sem mais atenta reflexão. Nós não queremos acusar ninguém, mas queremos a verdade”. Parece-me, a imprensa mostrava-se parcial, na defesa de Euclides e no ataque direto a Ana e indireto a Dilermando.

São várias as formas de pensarmos nessa tragédia. Preocupo-me com Ana. Euclides é o grande escritor, Dilermando foi amado por Ana. Ana casou-se com Dilermando, com quem teve mais filhos e seguiu a vida. Traída mais tarde por Dilermando, largou-o e seguiu com as crianças. Em que pese sempre perseguida pela infâmia e pela tragédia, educou as crianças, com carinho e zelo. Ana foi enterrada no cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro. Em seu túmulo uma sentença que nos faz pensar: “Feliz do homem que tem por bússola as lágrimas de uma mãe”. Creio que se traduziu em forma de aviso uma voz feminina que não se escutou.

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