Opinião

A denúncia nos processos penais envolvendo o crime de lavagem de dinheiro

Autores

  • Claudia da Rocha

    é advogada professora de Processo Penal Prática Penal Criminologia e Psicologia Jurídica no Centro Universitário Unifamma pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC em Direito e Processo Penal pela UEL pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM e mestranda em Direito Negocial na UEL.

  • Gabriel Bertin de Almeida

    é advogado professor de Processo Penal na PUC-PR mestre e doutor em Filosofia pela USP.

15 de agosto de 2020, 6h04

O processo penal envolvendo o crime de lavagem de dinheiro possui como característica especial a necessidade da presença de justa causa duplicada, que se refere ao lastro probatório mínimo quanto à lavagem e quanto à infração antecedente.

Nesse contexto, uma denúncia que se limita a narrar, por exemplo, que o sujeito teria dissimulado a natureza, a origem, a localização e a movimentação de valores provenientes de crimes contra a Administração Pública, de maneira genérica, é considerada apta, a teor do que dispõe o artigo 41 do Código de Processo Penal?

Em primeiro lugar, não basta a demonstração da presença de elementos mínimos quanto à ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores, sendo indispensável que a denúncia também seja instruída com suporte probatório que evidencie que tais bens, direitos ou valores são provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, conforme preceitua o artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/98, com a redação dada pela Lei nº 12.683/2012.

Por sua vez, o artigo 2º, §1º, da Lei nº 9.613/98 preceitua que a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente.

Desse modo, embora seja dispensada a efetiva condenação anterior, "é necessário que na denúncia ou queixa o acusador narre, concreta e especificamente, — além dos meios utilizados para o branqueamento ou lavagem em si — em que constituiu a infração antecedente, e quais os bens, direitos ou valores, que dela provieram, direta ou indiretamente" [1].

Além da indispensabilidade de se indicar o crime antecedente, em todas as suas circunstâncias, a denúncia deve apontar quais produtos ou proventos obtidos ilicitamente formaram o objeto material sobre o qual recaíram as condutas descritas no tipo penal de lavagem de capitais, na medida em que não é qualquer dissimulação ou ocultação de valores que constitui a figura típica, mas tão somente aquela que incidir sobre o bem ou valor que seja produto do crime antecedente.

Com efeito, sendo o objeto material do crime de lavagem de capital justamente o "bem, direito ou valor" de origem criminosa que será objeto das ações típicas de "ocultação ou dissimulação', é indispensável a indicação do nexo supostamente existente entre o produto dos crimes antecedentes e os valores ilícitos advindos desse crime que constituem objeto da lavagem de dinheiro. Desse modo, a denúncia tem de descrever a origem ilícita dos valores que seriam, então, o objeto do verbo nuclear do tipo penal "ocultar" ou "dissimular".

Assim, respondendo à pergunta inicialmente proposta, para ser apta, a denúncia deve demonstrar que "aqueles" valores obtidos com a prática "daqueles" crimes antecedentes foram o objeto da ocultação ou dissimulação. É imprescindível estabelecer-se o vínculo econômico entre o crime antecedente e o valor supostamente "lavado", sob pena de inépcia formal da denúncia.

Conforme esclarece Marco Antônio de Barros: "É absolutamente indispensável narrar a ocorrência do crime antecedente e demonstrar a existência de seus indícios, identificando-o com as circunstâncias que estabelecem a conexão com a ‘lavagem’ de dinheiro" [2].

Sobre o tema, destaca-se, ilustrativamente, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 132179, de relatoria do ministro Dias Toffoli, DJe: 8/3/2018:

"8. A denúncia não descreve minimamente os fatos específicos que constituiriam os crimes antecedentes da lavagem de dinheiro, limitando-se a narrar que o paciente teria dissimulado a natureza, a origem, a localização, a disposição e a movimentação de valores provenientes de crimes contra a Administração Pública.

9. Não há descrição das licitações que supostamente teriam sido fraudadas, nem os contratos que teriam sido ilicitamente modificados, nem os valores espuriamente auferidos com essas fraudes que teriam sido objeto de lavagem.

(…)

11. O fato de o processo e julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro independerem do processo e julgamento dos crimes antecedentes (artigo 2º, II, da Lei nº 9.613/98) não exonera o Ministério Público do dever de narrar em que consistiram esses crimes antecedentes".

No mesmo sentido, tem-se a compreensão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC nº 106.107, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas, DJe: 1º/7/2019:

"PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO. INÉPCIA DA INICIAL ACUSATÓRIA. REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. JUSTA CAUSA DUPLICADA. NÃO DEMONSTRAÇÃO DA CONDUTA ANTECEDENTE E DE LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. RECURSO PROVIDO.

(…)

3. A denúncia de crimes de branqueamento de capitais, para ser apta, deve conter, ao menos formalmente, justa causa duplicada, que exige elementos informativos suficientes para alcançar lastro probatório mínimo da materialidade e indícios de autoria da lavagem de dinheiro, bem como indícios de materialidade do crime antecedente, nos termos do artigo 2º, § 1º, da Lei 9.613/98".

Portanto, tratando-se de crime de lavagem de dinheiro, a denúncia deve necessariamente realizar a correlação entre os valores apontados como "lavados" e os crimes antecedentes, sendo essa uma condição para a instauração da ação penal e para o exercício do direito de defesa.

 


[1] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz.Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei 12.683/2012. 2ª edição. São Paulo: RT, 2013, p. 274.

[2] BARROS, Marco Antônio. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 206.

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  • Brave

    é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina e mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Processo Penal e de Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.

  • Brave

    é advogado, mestre e doutor em Filosofia pela USP e professor de Processo Penal na PUC-PR.

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