Opinião

Crianças têm direito de contribuir com responsabilização de seus agressores

Autor

  • Lívia Graziela Pini

    é delegada de Polícia Civil do Paraná titular do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes de Londrina e pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina.

15 de agosto de 2020, 11h11

Com a edição da Lei nº 13.431/17, o legislador brasileiro previu dois instrumentos para a realização de entrevistas com crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência: a escuta especializada e o depoimento especial.

A distinção entre eles encontra-se na finalidade e na profundidade da oitiva. A escuta especializada é realizada pelos órgãos da rede de proteção com a finalidade de garantir proteção social e provimento de cuidados, estando limitada ao estritamente necessário para esse fim [1]. Já o depoimento especial tem por finalidade o levantamento de informações que auxiliem na demonstração da ocorrência da violência (materialidade do fato) e de sua autoria [2], não havendo limitação legal quanto à sua abrangência e profundidade.

No presente texto, buscaremos esclarecer qual o instrumento adequado a ser utilizado pela Polícia Civil quando se deparar com a necessidade de ouvir criança ou adolescente no bojo de uma investigação criminal e em quais hipóteses a realização desta entrevista estará autorizada.

Sabemos que a função principal da Polícia Judiciária é a investigação criminal. Ou seja, a produção de elementos informativos que auxiliem na demonstração da materialidade e da autoria do crime. Por consequência, temos que sua atuação está muito mais ligada à responsabilização dos infratores do que à proteção social das vítimas (embora esta sempre deva permear a atividade policial).

Ainda que vislumbremos possível a realização de escutas especializadas pela Polícia Judiciária [3], este é um instrumento legalmente limitado à finalidade de proteção social e de provimento de cuidados. Assim, uma escuta especializada que transborde as finalidades protetivas inquestionavelmente se apresenta como uma escuta especializada ilegal.

Ora, para o esclarecimento dos fatos, a oitiva em sede policial terá como um de seus objetivos principais a identificação de fontes de prova [4] pessoais e reais. Tais informações muitas vezes são indiferentes para a proteção social da vítima. Por consequência, conclui-se que a escuta especializada não se apresenta como o instrumento ideal, restando, por exclusão, o depoimento especial.

Imaginemos, por exemplo, a entrevista que almeje identificar o trajeto realizado pela vítima quando da abordagem por seu agressor. O levantamento dessa informação é essencial para a localização de eventuais câmeras de segurança que possam ter registrado os fatos. Contudo, embora importantíssima para a persecução penal, essa informação é de pouca relevância para a proteção social da vítima.

Além de considerarmos que a finalidade da oitiva policial mostra-se incompatível com o instituto da escuta especializada, temos que o legislador previu expressamente a utilização do depoimento especial em sede policial nos artigos 8o e 20, §3º, da Lei nº 13.431/17 e no artigo 22 do Decreto nº 9603/18.

Observe-se que, concluindo ser possível a realização de depoimento especial em sede policial, infere-se que as previsões do artigo 11 quanto à observância do rito de produção antecipada de prova com contraditório ficam restritas ao depoimento especial judicial. Isso porque a investigação criminal é fase administrativa e inquisitorial, incompatível com as exigências trazidas por tal norma.

Certo é que na busca (louvável) pela redução do número de entrevistas a que as vítimas e testemunhas são submetidas, o legislador previu como ideal a realização de um único depoimento especial, preferencialmente em sede de produção antecipada de provas, com incidência de contraditório. Sabiamente, contudo, o mesmo legislador antecipou que inevitavelmente existirão situações em que a adoção de tal sistemática se mostrará inviável.

Ao prever o artigo 11 da lei que o depoimento especial, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado, temos que o legislador indiretamente admitiu que existirão situações em que esse depoimento poderá ser realizado mais de uma vez, em sedes outras que não a judicial de produção de antecipada de prova e/ou sem garantia da ampla defesa do investigado.

Essa foi a interpretação adotada no fluxo [5] produzido pelos representantes dos signatários do Pacto Nacional pela Implementação da Lei n° 13.431 [6]. O pacto foi assinado por representantes de CNJ, CNMP, DPU, Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Casa Civil, Ministério da Educação, Ministério da Cidadania, Ministério da Saúde e Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

O documento prevê expressamente as situações em que o depoimento especial policial poderá ser realizado. São elas: prisão em flagrante, quando for necessário apurar a autoria e quando for necessário apurar descrição do fato. Nos demais casos deve-se representar pela realização do depoimento especial judicial.

Faz todo sentido a adoção dessa sistemática. Caso fosse obrigatório que se aguardasse todo o trâmite do depoimento especial judicial, certamente seriam perdidos vestígios importantes do crime, seja pelo simples transcurso do tempo, seja pela cientificação do agressor acerca da investigação em andamento.

Imaginemos o caso de vítima que verbalizou em escuta especializada ter sido abordada na rua por seu professor e forçada à pratica de conjunção carnal sem uso de preservativos. Para a adoção de providências protetivas, o relato apresentado mostra-se suficiente. Contudo, não temos informações sobre o local da abordagem e, caso tenhamos que aguardar o trâmite processual do depoimento especial judicial para obtenção desta informação, existe grande risco de que eventuais gravações de câmeras de segurança se percam.

Ademais, o depoimento especial judicial pressupõe a existência de contraditório [7], ou seja, haverá participação do investigado. Sem dúvida, tão logo o investigado tome conhecimento de que o crime encontra-se sob apuração, empreenderá esforços para ocultar qualquer indício. Poderá ainda tentar influenciar a declaração que será prestada pela vítima ou testemunha, haja vista que ficará sabendo, com significativa antecedência, acerca da entrevista que será realizada.

O artigo 22 da lei impõe às polícias civis o dever de envidar "esforços investigativos para que o depoimento especial não seja o único meio de prova para o julgamento do réu". Como nos casos de violência doméstica e de crimes sexuais, a existência de testemunhas presenciais é algo raro, uma das únicas formas para se identificar a existência de outros meios de prova será o relato da vítima. Permitir o contraditório antes de tais diligências implicaria significativo prejuízo à busca da verdade.   

Conforme nos ensina a doutrina, "a justificativa da natureza inquisitorial (da investigação criminal) é de fácil entendimento. Afinal, caso os atos investigatórios dependessem de prévia comunicação à defesa, restaria frustrada a localização de fontes de prova e comprometida a eficácia da Polícia Judiciária, em grande parte calcada no elemento surpresa" [8].

Deve-se ter em consideração ainda que são extremamente comuns os casos em que os agressores são familiares ou pessoas com quem a vítima mantém (ou manteve) relação íntima de afeto. Isso faz surgir o risco de que, com o passar do tempo e com a repercussão social da notícia do crime, a vítima altere sua narrativa sobre o que ocorreu, negando os fatos e/ou não desejando mais contribuir com a investigação. Tal pode se dar por pressão de familiares ou pessoas próximas, medo (em caso de ameaças proferidas pelo agressor) ou mesmo pelo desejo de não prejudicar tal indivíduo. Caso isso ocorra antes do depoimento da vítima, se perderá a principal oportunidade de identificação de outros meios de prova existentes.

Realizado o depoimento especial policial [9], caberá ao juiz analisar se há necessidade de novo depoimento (em sede judicial) ou se dispensará [10] nova entrevista, com aproveitamento daquela realizada em sede policial. Lembramos nesse ponto que o artigo 155 do CPP permite que o juiz fundamente sua sentença em elementos informativos colhidos na investigação desde que corroborados por provas produzidas em contraditório judicial.

Por fim, frisamos que, embora realmente devamos buscar a redução no número de entrevistas durante as fases da persecução penal, este objetivo deve sempre ser sopesado com o direito das crianças e adolescentes de se manifestar no bojo de todo processo judicial ou administrativo que a possa afetar, formulando seus juízos e expressando livremente suas opiniões [11]. Assim, advertida acerca de seu direito de permanecer em silêncio [12], não podemos tolher as vítimas da oportunidade de contribuir com a responsabilização criminal de seus agressores.

 


[1] Artigo 19 do Decreto nº 9603/18.

[2] Embora o artigo 22 do Decreto use a expressão "finalidade de produção de provas", considerando que o mesmo artigo prevê a possibilidade de o depoimento especial ser realizado perante a autoridade policial, nos parece evidente a atecnia do legislador ao falar em "prova", termo restrito aos elementos produzidos sob contraditório judicial. Assim, conclui-se que o legislador utilizou a expressão em seu sentido vulgar, referindo-se a todo elemento pelo qual se visa demonstrar a ocorrência de um fato, abrangendo, portanto, as provas e os elementos informativos.

[3] Haja vista que a segurança pública integra a rede de proteção (artigo 19 do Decreto nº 9603/18), sendo a escuta especializada prevista como o instrumento a ser utilizado pela rede no cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados.

[4] Objetivando dar efetividade ao artigo 22 da Lei nº 13.431/17, o qual prevê que "os órgãos policiais envolvidos envidarão esforços investigativos para que o depoimento especial não seja o único meio de prova para o julgamento do réu".

[7] Artigo 11 da Lei nº 13.431/2017.

[8] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; COSTA, Adriano Sousa. Advogado é importante no Inquérito, mas não obrigatório. Consultor jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-14/advogado-importante-inquerito-policial-nao-obrigatorio. Acesso em: 19 jan. 2016.

[9] O qual somente será realizado após análise de sua real necessidade (artigo 22, §2º do Decreto nº 9603/18), sendo conduzido por profissional capacitado (arts. 26 e 27 do Decreto nº 9603/18), com observância dos protocolos de oitiva (artigo 11 da Lei nº 13.431/2017) e gravado por sistema audiovisual (artigo 12, VI da Lei nº 13.431/2017).

[10] Com fundamento no artigo 11, §2º da Lei nº 13.431/2017.

[11] Direito expressamente trazido pelo artigo 12 do Decreto nº 99710/90, que promulgou a Convenção sobre os Direitos das Crianças, e pelo artigo 5o, VI da Lei nº 13.431/2017.

[12] Artigo 5o, VI da Lei nº 13.431/2017.

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