Estúdio Conjur

O Tema 210 no transporte de cargas: interpretação e modulação

Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    é advogado sócio fundador de Machado Cremoneze Lima e Gotas Advogados Associados mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos especialista em Direito dos Seguros em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca professor de Direito dos Seguros membro efetivo da Academia Nacional de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito dos Seguros (Aida-Brasil) do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) da Ius Civile Salmanticense (Espanha) vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp) presidente do Instituto de Direito dos Transportes (IDTBrasil) membro do Clube Internacional de Seguros de Transportes (Cist) autor de livros de Direito dos Transportes e Direitos dos Seguros associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da profissão.

15 de agosto de 2020, 9h14

"Se os fatos jurídicos não forem rigorosamente os mesmos, não há que se aplicar o precedente judicial (aliás, nem há precedente)", foi o que disse o ministro Fux, quase que com essas palavras, no curso de processo civil [1]. E isso é interessante para falar do Tema nº 210 de repercussão geral e da limitação tarifada da Convenção de Montreal.

Há muito digo que, em praticamente todos os casos de faltas e avarias de cargas, a Convenção de Montreal, pelo próprio espírito que a preenche, desautoriza a limitação de responsabilidade do transportador aéreo. Esta se mostraria cabível em desastres, acidentes de navegação, quando não causados por culpa grave. Aplicar a convenção é uma coisa; limitar a responsabilidade com base nela é outra, que pode ou não se seguir da primeira.

No transporte de mercadorias, o mero descumprimento contratual não se submete ao critério limitador. Isso, aliás, independe do pagamento do frete ad valorem. É a interpretação da Convenção de Montreal que penso ser correta; faço-a de acordo com a visão contemporânea do Direito Contratual informada pelo Direito de Danos da Universidade de Salamanca: aquele que maneja atividade de risco tem de responder de forma objetiva e integral pelos danos que causa, tal como inclusive nos relembra o parágrafo único do artigo 927 do nosso Código Civil.

No plano contratual, todo devedor de obrigação de resultado responde objetivamente pelo inadimplemento de sua obrigação. A reparação civil há de ser sempre ampla e integral, conforme se pode extrair dos incisos V e X do artigo 5º da Constituição Federal, com seu rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais, e do artigo 944 do Código Civil, a dispor que a indenização se mede pela extensão do dano.

Não há como justificar a limitação de responsabilidade do transportador aéreo de carga em caso de faltas e avarias, os danos derivados da desídia operacional e da incúria contratual. Embora o conceito de culpa seja um tanto estranho ao desenho geral da responsabilidade civil do transportador de cargas, ele pode e deve ser levado em consideração na análise concreta, ainda que permanecendo quieto, a um canto, em posição discreta, porém atuante, para afastar a limitação tarifada.

A culpa quase sempre está presente num contrato de transportes de cargas descumprido. A carga só se avaria ou extravia se o transportador fracassa nos deveres objetivos de guardar, conservar e entregar o bem que lhe confiaram. Não costuma ser necessário identificá-la em danos do gênero, o que não muda o fato de que ela está ali enraizada, ao quintal da casa dos fatos.

Há um século, na época em que se elaborou a Convenção de Varsóvia, base da Convenção de Montreal, a limitação tarifada até tinha cabimento. A indústria da navegação aérea dava seus primeiros passos no ar, e os riscos eram maiores que os atuais. Com a limitação de indenizações a valores além dos quais a transportadora não pagaria, a proteção ao setor se revelava importante, até para fomentá-lo.

Hoje mais crescida e madura, a navegação aérea não se cerca mais dos perigos da infância; dispensa os cuidados especiais da lei como quem deita fora as rodinhas da bicicleta. Hoje, empresas que fabricam ou montam aviões trabalham com o chamado risco zero. É bem difícil um avião cair; e quando cai, a causa costuma estar ligada à fabricação da aeronave, à falha humana.

A ratio mudou; o anel do passado não mais serve ao dedo presente; e a Convenção de Montreal, anacrônica neste aspecto, insiste em manter a limitação tarifada que toma o peso da mercadoria e o eleva à base de cálculo. No século XXI, esse instituto já caduco, rodeado de teias de aranha, surge como um perfeito estranho ao transporte de cargas tão leves quanto valiosas, ao exemplo de medicamentos ou chips de computador. A limitação de responsabilidade agora, antes de um erro jurídico, é um erro histórico.

O dano contratual e o modo como o Judiciário lida com ele trazem implicações, especialmente ante a análise econômica do Direito, com as interpretações que lhe dá a Escola de Chicago, e que, a despeito de questionamentos que naturalmente surgem, vem cada vez mais ganhando importância. Decisões judiciais não existem num mundo à parte, e projetam, nessa realidade una e concreta em que todas as ciências coexistem, consequências econômicas por vezes perigosas.

Um dos preceitos a levar em conta é este: não se pode prejudicar um setor de mercado inteiro para favorecer outro. Pagar ou não pagar o frete ad valorem, como meio de evitar discussão sobre a limitação tarifada, é detalhe bem menos importante quando, em face dele, consideramos os prejuízos, no mundo no seguro, que viriam da leniência com o descumprimento dos contratos de transporte.

A punição exemplar ao transportador desidioso, garantindo o princípio da reparação civil integral, oferece uma previsibilidade mercadológica, consubstanciada naquela certeza razoável sem a qual os negócios simplesmente não andam. Imagine: num dia a seguradora paga uma indenização de um milhão de reais e, sub-rogada nos direitos do segurado, sabe que conseguirá ressarcir-se deste valor. Ajuíza então sua ação de regresso; dali a uma semana a jurisprudência muda, e ela é informada de que, pelos critérios da Convenção de Montreal, receberá, em vez do milhão imaginado e indenizado, uns R$ 10 mil ou menos, porque a carga segurada, afora o valor considerável que lhe davam, não era afinal das mais pesadas.

Ora, o transportador sabe (ou pode saber) o valor do bem que por contrato lhe confiam. Não há como justificar a sua alegada ignorância de valores, ou cobrá-los em valor ridiculamente superior, a pretexto de lhe dedicar, sob o signo do ad valorem, uma presteza diferenciada. Isso é um abuso que prejudica o bom fluxo econômico. Valor conhecido, ou conhecível, é valor declarado. Ainda que a ciência se dê por outros meios, idôneos é certo, como pela consulta a faturas comerciais, exatamente como no RE 1.242.964/SP, em que, nas palavras do ministro Fux: "(…) o tribunal a quo concluiu que teria havido a declaração do valor da carga transportada, circunstância que, nos termos das referidas Convenções, afasta a limitação da responsabilidade do transportador".

Tudo isso prepara a seguinte afirmação: o Tema 210 de repercussão geral do STF não pode ser aplicado fora daquilo que o gerou: transporte aéreo internacional de passageiros e extravio de bagagem.

Urge lembrar o objetivo de introduzir os precedentes: oferecer segurança jurídica. Exatamente por isso essa aplicação não pode ser aleatória, sem levar em conta as peculiaridades de cada transporte; ela deve ser, desde já rendendo culto ao deus clichê — cirúrgica.

No transporte de passageiros, identificar o valor de cada coisa no interior da bagagem extraviada não é tarefas das mais práticas; logo, até mesmo em homenagem ao princípio da boa-fé e ao da preservação da empresa, busca-se a segurança jurídica e o bem comum. Aliás, é de se imaginar quão difícil seja, para a transportadora, provar que talvez o passageiro não estivesse carregando os cinco ternos Armani que ele jura terem sumido com as bagagens. A limitação da responsabilidade dela aqui seria… justificável.

Já as causas envolvendo mercadorias bem descritas e nomeadas devem seguir uma dinâmica diferenciada, em virtude dos procedimentos distintos e aspectos econômicos que também o são, e a decisão de repercussão geral, pouco a pouco, vai sobrando de canto, reclusa, inadaptada, menos popular do que se julgava.

Ao menos foi como fez crer o Supremo Tribunal Federal, no ARE 1.146.801/SP, da relatoria do ministro Alexandre de Moraes, sobretudo ao referir-se à atuação da seguradora sub-rogada, dentro do transporte de mercadorias:

"No caso dos autos, inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro".

Se parte dos órgãos julgadores estava seguindo do Supremo uma orientação que não era precisamente aquele que dele se supunha, seria o caso de segui-lo no entendimento do ministro Alexandre de Moraes, a afastar, com justiça, a limitação de responsabilidade para casos de transporte de mercadorias, regidos pela sub-rogação do segurador. Afinal, limitar a responsabilidade, em não poucos casos, é apenas e não mais do que limitar o direito da vítima.

É também com base na mesma Convenção de Montreal, no artigo 37 [2], que tribunais estaduais têm rejeitado as disposições tarifadas para o exercício do seu direito de regresso:

"PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. TRANSPORTE AÉREO. CARGA. AVARIA. SEGURO. REGRESSO. CONVENÇÃO DE MONTREAL. DECADÊNCIA. LIMITE. 1. Ainda que a Convenção de Montreal se aplique a indenizações por dano material relativas a carga, é certo que a própria convenção observou que não afetaria direito de regresso. O direito de regresso, então, segue normas internas. 2. Não cabe aplicação da indenização tarifada da Convenção de Montreal quando a carga transportada é devidamente informada, inclusive quanto a seu valor. 3. O Mantra Siscomex supre a falta de protesto. Diante disso, não há que se falar em decadência por falta de protesto. 4. A empresa que efetivamente presta o transporte é parte legítima para responder por danos decorrentes desse serviço. 5. Recurso não provido". (TJ-SP – Ap. Cível nº 1061664-45.2019.8.26.0100 – 14ª Câmara de Direito Privado – rel. Melo Colombi – J. 12/0/2020).

Na leitura muito prudente do desembargador Melo Colombi, a própria Convenção de Montreal acaba prevendo que o direito de regresso não pode ser por ela prejudicado, permanecendo a seguradora sub-rogada deste modo imune ao critério limitador.

Ora, na prática quase todo dono de carga se preocupa em obter uma cobertura do seguro de transporte; então, diante do prejuízo coberto pela apólice, a seguradora paga-lhe a indenização, sub-roga-se no crédito material e, assim, busca o ressarcimento em regresso do transportador. Exitosa na busca, por que ela haveria de receber, no fim, bem menos do que pagou no início?

Sem falar que o Tema 210 do STF, erguido em defesa contra a pretensão da seguradora sub-rogada, choca-se ainda com a Súmula nº 188 da própria Corte Maior [3].

O que já mostra que a situação não pode ser considerada sob um único aspecto. Divergindo os fatos, a natureza das partes que demandam, não há precedente válido. A complexidade que não poucas vezes envolve os desdobramentos econômicos do ressarcimento da seguradora é maior do que a de um passageiro cuja bagagem tenha sido extraviada com um punhado de roupas e meia dúzia de acessórios.

A aplicação do Tema 210 em um litígio de ressarcimento de seguradora sub-rogada contra transportador poderá fazer com que este, causador de um dano de R$ 10 milhões, não pague sequer 10% desse valor. E isso é um rematado absurdo, incompatível com o que há de mais antigo e de mais moderno no Direito.

Porém, mesmo que fosse aplicável o tema de repercussão geral também a esses casos, com todos os problemas que isso envolveria e dos quais acima já se tratou, seria preciso observar o seguinte: a modulação para os casos ajuizados antes do tema.

Sempre que um dos tribunais superiores declara um precedente, é preciso ter cuidado com a sua aplicação; pela importância de que se reveste, não pode ser aplicado a esmo, sem o devido cuidado com o encaixe fático, muitas vezes pretérito ao momento em que foi revelado. E justamente aí entra o conceito da modulação.

Modulação é, segundo Teresa Arruda Alvim, "o instituto concebido para concretizar, nos casos em que se entenda adequado prevalecer, o princípio da proteção à confiança (que se consubstancia na dimensão subjetiva da segurança jurídica), e portanto, no direito brasileiro, pode obstar o cabimento da rescisória, quando a jurisprudência dominante muda de rumo ou quando a lei, em que se baseia a decisão, seja tida por inconstitucional" [4].

As partes que demandaram confiantes na jurisprudência dominante não podem ser prejudicadas pela aparente guinada [5] promovida pelo Tema 210, não sendo viável que, sem realizar os devidos ajustes no processo de transição que se lhe seguirá,  um Tribunal Superior mude num talho de foice o entendimento jurisprudencial de longa data, consolidado nos Tribunais em geral. Oferecem amparo a esse modo de ver, além do artigo 927, §3º, do Código de Processo Civil, os artigos 23 e 24 da LINDB, ali introduzidos pela Lei 13.655/2018 (Lei da Segurança Jurídica).

Como diz a professora Teresa Arruda Alvim, comentando o último dispositivo citado: "O artigo 24, por sua vez, tem o alcance que, a nosso ver, deve ser efetivamente atribuído ao instituto da modulação. Diz que, quando o Judiciário revê certo ato, contrato, ajuste etc., que tenha se completado à luz de 'orientações gerais da época', para se verificar da sua validade, devem-se levar em conta, como parâmetro, exatamente as orientações urgentes à época da ocorrência do ato, do contato etc., e não aquelas decorrentes de mudança de posicionamento posterior".

Quando realizou o pagamento da indenização e buscou judicialmente o ressarcimento, a seguradora se via num cenário; no curso da disputa judicial, simplesmente do nada, o ambiente insinuou tornar-se outro, capaz de lhe reduzir às migalhas o direito de regresso. Ajuizara a ação crente da integridade do ressarcimento, sabedora do caráter legal da sub-rogação, ancorada no artigo 786 do Código Civil e fiel à efetividade da Súmula 188 do STF. E assim, por respeito à segurança jurídica, deve continuar.

Este escrito não é nem pretende ser um manifesto contra os precedentes — o que dificilmente faria sentido. Ele apenas intenta reconhecer-lhes os limites, preocupado com as exigências simétricas de sua aplicação. Em suma, em casos iguais, aplica-se; em casos diferentes, não; e havendo dúvida entre a proximidade e a distância das situações, também não.

Sinceramente espero e desejo que a cultura dos precedentes cresça no Brasil, que a sociedade aprenda sua importância, diminuindo a quantidade desoladora de disputas judiciais em curso e contribuindo para a cultura da conciliação. O que não desejo nem espero, porque seria a receita certa para a desordem, é o abuso do remédio — que para virar veneno basta um erro na dose.

 


[1] Curso online de Direito Processual Civil – Instituto Nêmesis – Aula: precedentes judiciais

[2] "Nenhuma das disposições da presente Convenção afeta a existência ou não do direito de regresso da pessoa responsável pelo dano, contra qualquer outra pessoa".

[3] "O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro".

[4] Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 15.

[5] A FORÇA DA JURISPRUDÊNCIA NO CPC DE 2015 E A MODULAÇÃO, https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/1/2020_01_1389_1410.pdf

Autores

  • Brave

    é advogado, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência e diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes.

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