Ambiente Jurídico

Aquecimento global, coronavírus e o pior dos cenários

Autor

15 de agosto de 2020, 8h01

Não existe dúvida de que o pânico e, às vezes, o estresse e a histeria coletiva causados pela Covid-19 são um prenúncio do que vai ocorrer, em maiores proporções, com o agravamento do aquecimento global. Ações antrópicas alteraram dramaticamente os ecossistemas, o funcionamento dos serviços ambientais e o próprio clima do planeta. As crises climáticas vão se agravar neste século, muitas das quais mais catastróficas do que as enfrentadas até hoje. A questão principal é a real possibilidade de limitação do aumento das temperaturas em um patamar que — ainda que com um grande custo social, psicológico e econômico — não inviabilize a prevenção dos desastres ambientais e das ecocrises. Se assim não for, esses eventos futuros e inevitáveis vão sobrecarregar as capacidades de sobrevivência da nossa civilização. Este fato, aliás, é descrito com brilhantismo, e rara elegância, na recente obra de Mark Lynas, "Our Final Warning: Six Degrees of Climate Emergency" [1].

Spacca
Lynas, célebre jornalista e ativista britânico, publicou há alguns anos, na preparação para a conferência climática de Copenhague, o não menos festejado "Six Degrees: Our Future on a Hotter Planet" [2]. Sua nova e erudita publicação é uma sequência estilizada da obra anterior. A diferença entre os livros é que no último constam previsões ainda mais sombrias do que no anterior, em virtude do aumento das emissões de gases de efeito estufa e as suas cada vez mais evidentes externalidades negativas demonstradas por dados científicos. Hoje, sem sombra de dúvida, esta relação entre as emissões antrópicas e as crises ecológicas resta demonstrada também pelos fatos e dados empíricos.

Lynas, no livro recém-lançado, refere que não tem mais certeza se os seres humanos podem sobreviver às mudanças climáticas. Não se pode discordar do autor, pois as nações que produzem e consomem combustíveis fósseis em grandes quantidades são indiscutivelmente as responsáveis pela elevação da temperatura do planeta em mais de um grau Celsius em relação ao período pré-industrial. Essa elevação, por si só, já pode ser considerada um grave risco. Para se ter uma ideia, a cada segundo, a quantidade de carbono e de metano emitidas equivalem à explosão de três bombas de Hiroshima [3]. O observatório de Mauna Loa, no Havaí, como se não bastasse, registrou um novo recorde no final de maio deste ano, ou seja, uma concentração de 417 partes por milhão de CO2 na atmosfera. Não há precedente como este nos últimos três milhões de anos.

Os automóveis, o desmatamento, as queimadas, os sistemas de calefação e a construção civil emitem cerca de 35 bilhões de toneladas de CO2 por ano. É bem verdade que os oceanos e as florestas absorvem mais da metade desta quantidade, mas ainda assim permanecem na atmosfera 18 bilhões de toneladas de CO2 anuais.

Lynas consegue ilustrar o trágico momento pelo qual atravessa a natureza e, para fins ilustrativos, em sua culta narrativa, vai da Groenlândia (onde as taxas de derretimento de gelo já alcançaram inacreditavelmente o nível previsto para o ano de 2070), passa pelas florestas ao redor do globo (que convivem com um aumento de um quinto nos incêndios) e finaliza nas áreas urbanas da Ásia e do Oriente Médio, onde nos últimos verões foram medidas as mais altas temperaturas registradas de forma confiável na Terra, aproximando-se dos 54 graus Celsius. A morte dos corais nos trópicos, como consequência deste cenário aterrador, leva a um colapso de 90% no processo reprodutivo dos peixes ao longo da Grande Barreira de Corais, a maior estrutura viva do planeta. Observou-se na Austrália, em dezembro passado, como noticiado na grande mídia e nas redes sociais, milhares de pessoas fugindo desesperadamente de resorts de luxo para as cidades com a finalidade de escapar do fogo vindo das montanhas.

De acordo com o autor, se nos mantivermos na atual trajetória de desenvolvimento insustentável, como de costume, poderemos atingir um aumento de temperaturas de dois graus logo no início da próxima década, três graus por volta dos meados deste século e quatro graus no ano de 2075. Se esse cenário somar-se ao descongelamento da permafrost no Ártico e à destruição das florestas tropicais, o aumento das temperaturas pode chegar a inacreditáveis cinco ou até seis graus em 2100, tendo como referência inicial a era pré-industrial.

Com um aumento de apenas dois graus, em uma visão otimista, o Oceano Ártico ficará sem gelo no verão, permitindo a navegação comercial e turística. O aumento de dois graus na temperatura, no entanto, poderá causar um derretimento de 40% da permafrost, o que, por sua vez, liberaria enormes quantidades de metano e de carbono, o que causaria um aumento na temperatura global para mais de três graus. Nesse cenário, o aumento do nível do mar resultaria no deslocamento de 79 milhões de refugiados climáticos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a proteção de cidades e das vilas vulneráveis ao aumento dos oceanos, ao longo da costa leste, com a precautória construção de diques e de muros de contenção, custaria a astronômica cifra de um milhão de dólares por pessoa.

Os pesquisadores, como por demais noticiado, esperavam no início deste século que um aquecimento modesto, de dois graus centígrados, pudesse aumentar a produção de alimentos. Essas expectativas, contudo, não se confirmaram. Ao contrário, estudos preveem que o aumento no patamar de dois graus reduzirá a disponibilidade global de alimentos em cerca de 99 calorias por dia. As cidades, por seu turno, terão uma população cada vez maior e serão cada vez mais quentes. Diante do cenário do aquecimento global atual todos no hemisfério norte já estão se movendo para o sul cerca de 12,5 milhas por ano. Isso significa meio milímetro por segundo.

Ao ultrapassar os dois graus e entrar em um cenário de três graus de aumento de temperaturas a civilização estará a ponto de colapsar. Um aumento de três graus na temperatura levará a um nível de calor global que nenhum ser humano jamais experimentou. Temperaturas assim foram observadas apenas no Pleistoceno, três milhões de anos atrás, antes da Era do Gelo. Em seu último volume, Lynas disse que os cientistas pensavam que o início do colapso da camada de gelo da Antártida Ocidental aconteceria somente com um aumento de quatro graus nas temperaturas, mas agora entendem que isto pode acontecer com um aumento de apenas dois graus. Importante não ignorar que o aumento do nível do mar significa, por si só, novas incidências de tempestades cada vez mais devastadoras.

Os recordes de calor de 2019 serão considerados no futuro um verão excepcionalmente frio em um mundo três graus mais quente. Mais de um bilhão de pessoas passaria a habitar zonas do planeta impossíveis de trabalhar com segurança fora de ambientes artificialmente resfriados, mesmo na sombra. Esse cenário poderia levar à morte da Amazônia e à desintegração definitiva da permafrost. Referida mudança do clima se retroalimentaria de si mesma, em um processo contínuo e constante, agravando ainda mais a situação que já seria catastrófica.

No caso de um aumento de quatro graus de temperatura, os seres humanos como espécie ainda não enfrentariam a extinção. Mas a atual sociedade industrial e de risco, com os seus padrões de consumo de materiais e de uso de energia — inserida na chamada era da modernidade —, passaria a agonizar. No Texas e em Oklahoma, Missouri e Arkansas, as temperaturas máximas a cada ano seriam mais quentes do que as que agora já são registradas no Vale da Morte. Três quartos da população mundial, então, estará exposta ao calor mortal em mais de 20 dias por ano. Em Nova York, o número de dias com o chamado calor mortal será de 50 ao ano, e em Jacarta todos os 365 anos do ano serão considerados de calor mortal. Um cinturão de inabitabilidade percorrerá o Oriente Médio e a maior parte da Índia, do Paquistão, de Bangladesh e da China oriental. Desertos, em expansão, consumirão países inteiros do Iraque ao Botsuana.

Dependendo do estudo, o risco de mega incêndios no oeste dos EUA aumentará entre 100% e 600% e o risco de enchentes na Índia se elevará em vinte vezes. Nesse cenário, o risco de que as maiores regiões de cultivo de grãos tenham falhas simultâneas devidas à seca é praticamente zero, mas com um aumento de temperaturas de quatro graus esta probabilidade chega em 86%. Vastas ondas de calor irão varrer também os oceanos. Um estudo projeta que em um mundo de aumento de quatro graus a temperatura do mar ficará acima do limite de tolerância térmica de 100% das espécies em muitas regiões marinhas tropicais. As extinções da vida na terra e no mar serão certamente as piores desde o fim do Cretáceo, há 65 milhões de anos, quando um asteroide ajudou a acabar com a era dos dinossauros.

Se as temperaturas atingirem um aumento de cinco ou seis graus em 2100, de acordo com Lynas, os vivos vão realmente invejar os mortos. Nesse mundo as pessoas vão tentar se aglomerar na Patagônia ou talvez na Ilha do Sul da Nova Zelândia, um mundo onde os oceanos se tornam anóxicos, ou completamente privados de oxigênio. Com um aumento de seis graus os danos serão similares à época do fim do Permiano, quando ocorreu o maior cataclisma biológico da história do planeta e 90% das espécies desapareceram.

Nada disso pode ser descartado, pois os desmatamentos, as queimadas, os veículos e as fábricas estão aumentando as emissões de CO2 em um ritmo cerca de dez vezes mais rápido do que os gigantescos vulcões siberianos que provocaram aquele desastre. E, o que é mais grave, governos negacionistas persistem em ignorar a ciência e os fatos que ora se apresentam.

De outro lado, há cerca de uma década o preço da energia renovável começou a cair, e esse declínio continua acelerando. O preço por quilowatt hora da energia solar caiu 82% desde 2010. O preço das baterias estão diminuindo com a mesma intensidade. Em poucos anos, será mais barato construir novas matrizes solares do que a manutenção em operação das termelétricas. Investidores começaram a avançar decisivamente em direção à energia renovável. Campanhas de ativistas, com o engajamento de pesquisadores comprometidos de modo independente com a tutela do meio ambiente, também começaram a enfraquecer o poder político da indústria de combustíveis fósseis e dos poluidores, que têm usado seu poder econômico nas últimas décadas para bloquear a transição para novas formas de energia sustentáveis.

As vastas reservas de petróleo e de gás que atualmente sustentam o valor de algumas empresas no mercado de ações precisam ser abandonadas gradativamente. Infraestruturas como oleodutos e usinas termelétricas precisam ser fechadas muito antes da sua vida útil terminar. Esse processo certamente criaria mais empregos do que os eliminados, mas os sistemas políticos em todo o mundo, no entanto, são mais sensíveis aos atuais detentores do poder econômico do que se pode imaginar. Não se deve esperar, com certeza, que as nações mais pobres paguem tanto quanto as nações ricas pela transição energética. As nações mais pobres já são lesadas com o altíssimo custo financeiro da elevação do nível do mar e do derretimento das geleiras, para os quais, aliás, contribuíram muito pouco, em face do seu desenvolvimento econômico tardio.

Embora o cenário, em nível global, não seja encorajador para os defensores do meio ambiente, inegável é que um aumento de temperaturas de 1,5°C é melhor que 2°C, assim 2°C é melhor que 2,5°C, 3°C é melhor que 3,5°C e assim por diante. O que as nações não podem fazer, em qualquer hipótese, é desistir das metas estabelecidas em Paris e na observância da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. De acordo com a recente obra de Lynas, se atingirmos um aumento de dois graus nas temperaturas, isso, repito, retroalimentará um movimento de novos aumentos de temperaturas. Chegará um momento, portanto, que o aquecimento global de causas antrópicas atingirá graus incontroláveis. Portanto, sem dúvida alguma, é melhor prevenir do que remediar.

É fundamental que até o ano de 2030, como previsto no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em 2018, seja alcançada uma transformação fundamental dos sistemas energéticos. Essa transformação levaria a uma queda de 50% nas emissões. Do contrário, as metas estabelecidas em Paris podem escapar do controle das nações.

A pandemia da Covid-19, por outro lado, está proporcionando uma avaliação reflexiva, mais técnica e criteriosa do trinômio crise-tempo-governança. Uma abordagem correta, calcada nos princípios da prevenção e da precaução, podem fazer toda a diferença em tempos de crise. A Coréia do Sul e os EUA, por exemplo, relataram suas primeiras baixas causadas pela pandemia no mesmo dia, em janeiro deste ano. O governo Trump, diferentemente do governo de Seul, deixou de aplicar as necessárias medidas de prevenção e de precaução no mês de fevereiro, limitando-se a disseminar, de modo pouco racional, algumas bravatas. O resultado dessas ações distintas foi de que a Coreia do Sul está mais próxima da normalidade, e os Estados Unidos lideram o ranking mundial de infectados e de mortos pela Covid-19. Em um único dia de julho, por exemplo, o Estado da Flórida relatou mais casos do que a Coréia do Sul havia registrado desde o início da pandemia. A velocidade dos fatos e da história e a priorização dos princípios da dignidade da pessoa humana, da precaução e da prevenção importam agora, mais do que nunca, neste cenário pandêmico.

Protestos como o Black Lives Matter lembram que o ativismo pode ser bem-sucedido e que os esforços ambientais precautórios precisam estar fortemente ligados a outras campanhas por justiça social e climática.

A pandemia demonstra o quanto teremos que mudar, especialmente adotando uma governança holística, para enfrentar o desafio das mudanças climáticas. Empreendimentos foram afetados duramente ao longo de 2020, empresas fecharam, outras faliram, em todo o planeta. A população mundial mudou o estilo de vida. Cessaram as viagens aéreas e diminuíram os deslocamentos por terra ou pelo mar motivados por negócios ou turismo. O resultado final foi a queda nas emissões de gases de efeito estufa, mas bem abaixo do que se poderia esperar. A maioria dos cálculos indicam que as emissões vão diminuir, no máximo, modestos 15% este ano. Esse fenômeno indica que a maior parte das ações humanas que causam danos ao meio ambiente e desestabilizam o clima estão ligadas aos sistemas políticos, sociais e econômicos que as operam. Somente alterando a operação desses sistemas, extinguindo a indústria dos combustíveis fósseis e a substituindo integralmente pelas energias renováveis, acabando com o desmatamento e as queimadas é que poderá o aquecimento global ser enfrentado pela humanidade com alguma chance de êxito.

 


[1] LYNAS, Mark. Our Final Warning: Six Degrees of Climate Emergency. London: Fourth Estate, 2020.

[2] LYNAS, Mark. Six Degrees: Our Future on a Hotter Planet. London: Fourth Estate, 2020.

[3] McKIBBEN, Bill. 130 Degrees in The New York Review of Books. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2020/08/20/climate-emergency-130-degrees/. Acesso em: 13/8/2020.

Autores

  • é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, "Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental".

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!